Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 256
19 de julho de 2014
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Hoje eu gostaria de falar um pouco sobre o tema da maturidade, que está evidentemente ligado a questão das doze camadas. Existem vários níveis em que podemos tratar desse assunto, mas, em princípio, como é o interesse de todos nós nos adestrarmos para uma participação frutífera na vida intelectual, então o que nos vai interessar é sobretudo a maturidade do homem de estudos.
Se você está inserido numa determinada comunidade profissional acadêmica, então certamente o seu nível de avanço, a sua qualificação, será medida pelos seus pares e pela sua adequação à profissão que ali é exercida. Essa profissão é exercida hoje numa base que imita a das ciências, onde cada um faz uma contribuiçãozinha muito especializada, e aquilo vai somando um efeito e criando uma espécie de consenso entre uma comunidade de profissionais. Comunidade que hoje é multitudinária, quase ilimitada.
Porém, isso se coloca de algum modo nos antípodas do que seria a educação tal como a entendia Sócrates, Platão e Aristóteles e como a entende toda a tradição filosófica, onde o que se tem em vista não é a adequação a um grupo profissional, mas a criação de um spoudaios, um homem maduro. Poderia não existir um conflito entre essas duas coisas, mas o fato é que existe e, na situação atual, elas se tornam quase que incompatíveis. Eu acho que é muito difícil o indivíduo se enquadrar direitinho numa profissão universitária e ser aceito pelos seus pares, desempenhar lá as suas funções, criar o seu curriculum e ao mesmo tempo adquirir uma maturidade intelectual. Essa coisa está se tornando cada vez mais impossível pelo fato mesmo de que a filosofia está se tornando uma atividade especializada, quer dizer, ela só lida com determinados pedacinhos, usando critérios consensuais de ciências inteiras e devendo se submeter aos critérios de validade já aceitados numa discussão coletiva. Fazer um trabalho de filosofia hoje é como fazer qualquer trabalho científico. Acontece que o trabalho científico não se destina aos leitores em geral, ele não é feito para entrar no debate cultural geral, mas apenas para servir a determinadas finalidades profissionais e econômicas muito claras, muito definidas. Por exemplo, vamos supor que o indivíduo está pesquisando um remédio qualquer e descobre o remédio. O que ele vai fazer com isso aí? Vai publicar em tudo quanto é jornal? Não interessa isso aí. Vai publicar numa revista científica para que isso chegue na orelha de algum laboratório, e o laboratório então possa criar os meios de industrializar aquele remédio. Ou seja, isso se destina a um público ainda mais especializado do que o primeiro círculo de leitores que são os colegas. Por exemplo, o sujeito escreve um trabalho médico, e isso só é lido pelos colegas e não chega na orelha de laboratório nenhum, simplesmente não teve efeito.
Nós sabemos que as publicações médicas --- e eu mesmo sei disso porque durante anos fui editor de duas revistas médicas importantes que eram Atualidades Médicas e Clínica Geral (não sei se elas existem ainda, mas na época eram sem dúvida as mais importantes) ---, sabemos que toda a bibliografia médica, toda a produção de revistas médicas giram em torno de laboratórios. O laboratório decide o que você vai escrever, decide o que você vai receitar. E antes, por exemplo, na hora de planejar uma edição da revista, já tínhamos que ver quais são os remédios que serão receitados e quais são os laboratórios beneficiados. É lá mesmo que vamos pedir anúncio. Então fica um círculo de repetição.
Mas isso é normal nessa profissão. Quer dizer, o público a que se dirige a pesquisa médica é de dois tipos: os próprios médicos e o pessoal do laboratório, sem dúvida. E também os chefes de departamento de pesquisas etc. que podem dar mais verba para o sujeito continuar estudando. Isso não entra no debate cultural geral de maneira alguma por causa precisamente das aplicações técnicas e industriais que tem esse tipo de trabalho. Mas pergunto eu: que aplicação técnica e industrial tem os trabalhos de filosofia? Nenhuma, zero.
Imitar o procedimento das ciências no campo da filosofia vira uma coisa simplesmente caricatural. Quer dizer, você está fazendo trabalhos profissionais apenas para os seus colegas que vão ler e comentar, e aí continuar discutindo, discutindo indefinidamente, sem que isso jamais possa se integrar seja no debate cultural geral, seja no processo econômico. Economicamente não tem função alguma e como função social tem apenas a de manter e alimentar esse mesmo círculo de pessoas. Então vira uma atividade altamente masturbatória.
É evidente que quem se forma aí é orientado por um critério de respeitabilidade, de seriedade que é o da sua comunidade profissional. Mas pergunto eu: o que esse critério tem a ver com a verdadeira maturidade intelectual? Absolutamente nada. É como nas ciências: para fazer um trabalho científico muito bom na área da matemática ou da física, por exemplo, não precisa de maturidade intelectual, basta um treinamento especializado naquele ponto. Ele pode ser um sujeito infantil, pode ser um psicopata, pode ser até um retardado mental com um gênio especializado. Então o problema da maturidade intelectual não se coloca aí de jeito nenhum.
Mas, ao lado disso, existe a cultura geral e o debate público. E aí, esse tipo de pessoa, quando entra, não tem absolutamente nada para dizer. No máximo, eles vão fazer mais ou menos como o Júlio Lemos faz: arrotar uma superioridade que vale dentro do seu círculo profissional, mas que não tem como se integrar no debate cultural geral.
E você vê mais ainda que a tendência de modelar a filosofia pelas ciências exatas e naturais hoje em dia é muito forte. Houve duas ondas disso: uma, no século XIX, e não produziu absolutamente nada além do prestígio universitário científico para algumas pessoas. Mas quando investigamos o que sobrou de toda essa filosofia [0:10] inspirada nas ciências do século XIX vemos que não restou nada. Assim como o que se faz também não vai permanecer. Eu duvido muito que essas coisas continuem tendo interesse depois da morte dos seus autores.
Se você repara, por exemplo, que às vezes o sujeito passa anos especulando a estrutura de um determinado argumento lógico, escreve um tratado de 950 páginas sobre aquilo. Primeiro lugar, não está garantido que ele resolveu o problema, e essa discussão pode continuar indefinidamente. Não existe, em filosofia, o critério da verificabilidade final, como não existe nas ciências também. Nas ciências, o debate prossegue, só que você vai tirando dele o proveito técnico-científico que é natural nessa ordem das coisas. Só que no mundo filosófico a coisa continua, e continua sem proveito técnico-científico nenhum. Então essa atividade toda já tem em si mesma um elemento quase psicótico.
E não é de estranhar que as pessoas que estão envolvidas nisso, em geral, quanto mais se aperfeiçoam nas técnicas, na lógica, na arte da argumentação etc., menos tem alguma coisa interessante a dizer sobre a realidade. Então elas vão procurar a realidade no quê? Nas ciências, porque lá sempre existe alguma realidade, não tem como escapar. Por exemplo, hoje existe um ramo que se chama neuro-história da arte muito interessante. Tem um autor chamado Michael Baxandall, que escreveu coisas muito interessantes, mas isso não é filosofia, isso é uma pesquisa científica.
Como a ciência é uma atividade altamente progressiva que está a toda hora substituindo a si mesma, é evidente que as teorias científicas são todas de durabilidade muito limitada. Vejamos, o que é uma pesquisa científica? É o processo de isolar um certo número de fatos que parecem ter uma unidade por trás e tentar descobrir esta unidade, a unidade de uma causa, a unidade do fenômeno etc. É isso o que se faz. Depois vem outro sujeito que descreve de outra maneira, e assim por diante. A coisa não pára. Então essa idéia do aperfeiçoamento é inerente à própria ciência.
Agora, a filosofia, por sua vez, busca princípios de inteligibilidade que devem durar, ela não está inventando princípio de inteligibilidade que vale só para agora. Podemos dizer que, na filosofia, em vez de você ter o elemento progressivo, você tem o elemento acumulativo, quer dizer, onde tudo aquilo que foi conquistado ao longo dos tempos conserva a sua atualidade. Você não pode dizer que Platão foi superado, que Aristóteles foi superado. Não. Simplesmente outras coisas se empilharam ali e se somam com aquela. Então você vai criando um patrimônio que é o dos esforços humanos para atingir a inteligibilidade. Portanto, a própria estrutura da atividade científica é um pouco contrária à atividade filosófica. As teorias científicas se destinam a substituírem-se umas as outras, a desbancar uma e impor uma outra, que em seguida por ser derrubada também e assim por diante, indefinidamente.
Em filosofia é impossível você fazer a mesma coisa. Quer dizer, não existe nenhuma maneira de você superar uma filosofia no sentido que uma teoria científica superar a outra, isto é, impugnando uma teoria anterior e propondo uma nova. Não é assim. Quando um filósofo supera outro significa que ele integrou no seu pensamento tudo aquilo que o outro contribuiu. Aquilo permanece inteiro. Essa absorção dialética, essa superação dialética é uma coisa que em ciência não existe, não pode existir. Você não vai poder assimilar todas as teorias anteriores, integrá-las na sua e seguir adiante, isso não dá para fazer. Na filosofia isso ocorre porque ela é uma atividade voltada eminentemente ao adestramento da inteligência humana e da consciência humana, e não à produção de fatos sobre este ou aquele ponto. Esta produção de fatos prossegue indefinidamente com base na autodestruição.
Qual é o critério científico dominante hoje? Não é o critério da falseabilidade do Popper? Quer dizer, uma teoria é científica na medida em que ela possa ser mostrada falsa, isto é, a sua estrutura lógica admita a própria refutação. Se não há refutação possível, mesmo que a refutação seja errada, então não é uma teoria científica. Isso evidentemente não se aplica à filosofia de maneira alguma, porque a finalidade da filosofia não é impor teses --- isso é uma coisa fundamental. Às vezes você vê a obra de um filósofo cujas teses já caíram todas, mas ela conserva seu valor. Isso porque a filosofia não se destina a produzir uma teoria final sobre o mundo ou uma descrição factual do mundo, mas a aprimorar cada vez mais a capacidade humana de inteligir. Em última análise, a filosofia é pedagogia, é uma espécie de guiamento da consciência. Para isto, mesmo os erros são importantes.
Em filosofia, todos os erros filosóficos não estudados e discutidos; em ciência, eles são abandonados. Quando você estuda história das ciências, você vê que o que os autores geralmente fazem é colocar as teorias que tiveram algum sucesso e que serviram de base para as teorias seguintes e esquecem tudo aquilo que foi flagrantemente errado e vão dizer que é pseudociência. Porém, a pseudociência é ciência, ela não é outra coisa, ela não é uma atividade formalmente distinta, ela é simplesmente uma ciência errada. Mas, é claro, a pseudociência não se integra na história da ciência, ela é expelida, ao passo que as filosofias erradas integram na história da filosofia como momentos dialéticos de um contínuo aperfeiçoamento da consciência humana, onde certos erros às vezes são erros felizes e até necessários no caminho dialético para a percepção de uma realidade mais profunda.
Sinceramente, eu não vejo como conciliar uma formação filosófica com a formação científica. Elas são coisas que evidentemente podem ser integradas, mas continuarão heterogêneas. Por exemplo, se o indivíduo estuda neurofisiologia e ao mesmo tempo ele é um filósofo, ele pode usar uma coisa na outra e a outra na uma, mas ele não pode fundi-las, não tem como fundir as duas coisas: são contribuições heterogêneas. Assim como, por exemplo, um filósofo que é um pintor, um desenhista, vai poder aproveitar alguma coisa para a sua filosofia proveniente da sua experiência de pintou ou desenhista, mas ele não vai criar uma atividade sintética que seja ao mesmo tempo pintura e filosofia. Não há síntese possível.
Aí você entra no problema das famosas ontologias regionais de que falava o Edmund Husserl: na estrutura da realidade existem domínios que são independentes e incomunicáveis. O famoso exemplo que ele dava: não existe uma biologia dos triângulos nem uma trigonometria dos leões. Você não tem como fundir uma coisa com a outra; você pode estudar trigonometria e pode estudar a biologia dos leões, mas não vai fundir isso de jeito nenhum, ainda que a coexistência desses dois campos de conhecimento na sua mente possa ter um efeito inspirador ou heurístico e possa lhe dar idéias etc. Mas essa confusão de campos, essa confusão de gêneros nunca vai produzir nada de valor. Não existe a fusão, a síntese, nesses domínios. E a formação científica continua perfeitamente distinta da formação filosófica, ainda que se possa às vezes aproveitar, em filosofia, muitas das descobertas científicas aqui e ali.
Porém, é necessário perceber que, ao longo da história, em todos os sistemas filosóficos, as partes mais frágeis, mais perecíveis, são justamente aquelas que dependiam dos conhecimentos científicos da época. Na medida em que esses conhecimentos científicos são superados, aquela parte da filosofia é atingida e é prejudicada por esse ponto. Por exemplo, as obras de Schelling possuem muitos elementos trazidos da biologia (ele leu muita biologia na época), porém, aquelas teorias todas já foram superadas, não funcionam mais. Quando você lê esses trechos do Schelling, você tem de separar [0:20] o que é a concepção filosófica do que é a argumentação ou exemplificação científica que ele está dando. E você verá que, em geral, a primeira vale independentemente da segunda, ou seja, a elaboração filosófica está correta e é útil ainda que o embasamento científico esteja falso. Isso é uma constante na história da filosofia.
O exemplo mais clássico é o de Aristóteles com o negócio das órbitas circulares dos planetas. Ele acredita que as órbitas têm de ser circulares porque o movimento circular é um movimento mais perfeito, mais acabado que existe. E, evidentemente, na época se entendia por céu mais ou menos como uma versão visível do mundo dos arquétipos, então teria de ter mais regularidade e uma forma mais perfeita do que qualquer acontecimento terrestre. E quando mais tarde Kepler descobre que as órbitas são elípticas, isso impugnou a idéia do Aristóteles, do contraste entre o mundo dos arquétipos permanentes e o mundo terrestre do fluxo da impermanência? Não, continua válido do mesmo jeito, só o exemplo que ele deu que não funciona. Podemos dizer que a astronomia de Aristóteles foi derrubada, mas não a filosofia dele. E assim por diante.
O século XIX está repleto de exemplos. Quantos filósofos não se deixaram enganar por aquela famosa regra do Ernst Haeckel de que a ontogênese emita a filogênese, ou seja, o desenvolvimento do indivíduo passa por etapas que são similares ao desenvolvimento da sua espécie. Sabemos que as coisas não são assim, mas, no século XIX, muita gente boa acreditou nisso e pode ter tirado conclusões filosóficas. A validade das conclusões filosóficas evidentemente não depende desse exemplo científico, e assim por diante. Quer dizer, não faz sentido ao mesmo tempo afirmar que a ciência é uma atividade constantemente autocorretiva e autocrítica, onde tudo pode ser reexaminado e visto de outra maneira, e querer dela o modelo para a filosofia, onde justamente essa idéia da progressão por substituição não vale e o que vale é a acumulação de perspectivas.
Quando você estuda Anaximandro, Sócrates, Pitágoras, Platão etc., você está simplesmente aprendendo a olhar os fenômenos por várias perspectivas possíveis. Essas perspectivas constituem o repertório das possibilidades da inteligência humana. Cada vez que você olha pelos olhos de um, você abre uma janela, você está aprendendo de outra maneira, por outro lado. Este lado não impugna os outros lados, ele se soma.
Por exemplo, a famosa intuição de Pitágoras de que tudo é feito de números. Isso é objetivamente válido, sim ou não? As duas respostas são verdadeiras porque onde quer que você procure nas coisas um aspecto matemático calculável, você vai encontrar. Mas isso não quer dizer que a estrutura matemática seja a base ou o fundamento da realidade, porque o fato é que nenhum fenômeno, nenhum ente, chega a nós sob a forma de um elemento matemático; somos nós que tentamos apreender, por trás das suas formas infinitamente variadas e caóticas, alguma regularidade matemática. E levamos esse esforço até o grau de tentar matematizar o próprio caos -- o que, sem dúvida, é possível até certo ponto. Então a intuição de Pitágoras vale ou não? Resposta é sim e não. Mas ela é uma maneira de olhar que se tornou indispensável. Ou seja, ao longo dos séculos, haja o que houver, sempre em algum momento você vai ter de olhar as coisas matematicamente. Como expressão de uma lei objetiva de constituição do cosmos, o preceito de Pitágoras nem vale nem não vale. Mas como descoberta de uma perspectiva que é útil e frutífera para a mente humana, isso não podemos negar.
Por exemplo, veja a idéia platônica que remonta a Parmênides de que existe o mundo do fluxo da impermanência e, por cima dele, existe o mundo dos arquétipos estáveis ou da eternidade. Isso é assim objetivamente? Jamais saberemos. Sabemos que temos de olhar as coisas desse jeito porque, quando olhamos, descobrimos muita coisa. Ou seja, cada filosofia não é uma nova teoria da objetividade do mundo. Não é. Como teoria, como descrição do mundo, ela pode ser muito falha, por quê? Porque o filósofo descobre uma perspectiva, descobre uma direção do olhar que é importante e que é útil, mas isso não quer dizer que ele vai obter sucesso em fazer dessa perspectiva uma descrição apropriada da realidade, o que ele não pode realizar por meios filosóficos, teria de realizar por meios científicos. E, por meios científicos, nenhuma descrição jamais será completa e adequada, a coisa vai continuar mudando e mudando e mudando indefinidamente.
Se, na formação científica, você tende não só a uma especialidade cada vez maior, mas a estabilização -- pelo menos temporária de certos critérios de validade, e você deve em princípio operar só dentro desses critérios de validade, sem apelar a outros conhecimentos que não estejam validados por aquela ciência em particular --, em filosofia é exatamente o contrário: você tem de ampliar o número de perspectivas indefinidamente, mesmo sem poder sintetizá-las numa teoria. Portanto, são dois tipos de educação completamente diferentes. E, claro, todo mundo pode adquirir as duas e talvez deva fazê-lo, mas pergunto eu: por que uma educação científica para um filósofo seria mais importante do que uma educação artística, uma educação moral, uma educação religiosa? Por exemplo, sabemos que se uma pessoa não tem experiência de práticas espirituais, experiência da busca constante de Deus, então ela não tem intuição de uma série de realidades da vida; ela só vai obter isso mediante a prática. Portanto, é claro que isso é um domínio da realidade tão importante e tão universalmente presente quanto qualquer outro.
Por exemplo, o essencial é estudar as ciências? Alguma ciência vai lhe dar o domínio da linguagem? Não, mesmo que você estude Lingüística a sua vida inteira. Então acontece que se você não domina a linguagem, se você não tem a expressão oral e escrita adequada, você não domina os seus pensamentos, simplesmente você não sabe o que está falando. Eu considero que, de tudo, o mais importante é a formação literária. Por quê? Porque em todas as civilizações existe literatura oral e escrita. Absolutamente todas. E é através delas que se transmite a própria religião. Portanto, o literário, sobretudo o narrativo, vem primeiro -- isso na ordem da filogênese. Quando você não entende um fenômeno, não entende algo que você viu, ainda assim você é capaz de narrar aquilo, ou seja, você narra o formato do enigma, o formato da sua confusão; isso é sempre possível fazer. E sem isto não dá para depois desfazer a confusão.
Então se o indivíduo não sabe se expressar, não sabe narrar, [0:30] não vai ter domínio de coisa nenhuma e, por isto mesmo, ele vai tentar se apegar desesperadamente a critérios lógico-técnicos que são válidos num campo muito restrito. E isso vai criar uma espécie de idolatria babaca das chamadas ciências duras, o que é uma bobagem, porque, como já dizia o Max Weber, é muito mais fácil você calcular com exatidão o resultado provável de uma próxima eleição do que saber em quantos fragmentos uma pedra vai se estilhaçar quando cair no chão (a divisão de ciências duras e ciências moles é coisa de gente de cabeça dura e miolo mole; esta distinção não existe absolutamente, é uma convenção; na verdade, é um pouco a mitologia ginasiana. Quando eu era moleque já tinha essa mitologia: se você é menino, tem de estudar física, matemática; se é menina, letras, história, etc.; então já botava o mundo das ciências humanas para baixo).
Quando eu vejo a plêiade de cientistas que se tornaram famosos no século XX, pergunto quantos deles conseguiram extrapolar do seu domínio científico estrito algumas conclusões que fossem, não digo válidas, mas valiosas para outros domínios. Só fizeram isso aqueles que tinham grande formação humanística, como Werner Heisenberg. Se você ler as memórias dele, verá que estão cheias de idéias filosóficas maravilhosas. Mas ele era um garoto que com 12 anos estava lendo Platão, Malebranche, adquirindo uma cultura literária e filosófica enorme, antes de fazer a sua carreira científica.
Agora, quando você vê, por exemplo, as idéias políticas de um Albert Einstein, de um Julius Robert Oppenheimer, você vê que são pessoas absolutamente infantis, não enxergavam um palmo adiante do nariz. Então são pessoas cujo trabalho só vale dentro de um domínio profissional especializado, desde que as suas conclusões possam ser aproveitadas tecnicamente, industrialmente, militarmente etc. --- só serve para isso. Não são cultura propriamente dita, não são idéias, não são exemplos de grandes inteligências. Sinceramente, não acredito que Einstein fosse uma grande inteligência. Era uma grande inteligência especializada num ponto, mas, quando abria a boca sobre outras coisas, só saía besteira. E você vê sobretudo pelas suas atitudes ao longo do tempo.
A história dos Julius Robert Oppenheimer que todo mundo diz que era uma vítima, que foi perseguido. Não, ele não era vítima, ele realmente colaborou com a espionagem soviética. Então eu digo: esse sujeito ajudou a inventar a Guerra Fria. Você acha que isso é lucidez? Você imagina como a história teria sido diferente se a URSS não tivesse bomba atômica, para a qual ela não contribuiu nada para as pesquisas, foi tudo roubado. Sem isso, você não teria a expansão do comunismo na Ásia, na África, na América Latina; milhões de vidas teriam sido poupadas e assim por diante. Diz-se que o Oppenheimer morreu atormentado porque ele tinha gerado a morte. Eu digo: ele não apenas gerou, mas a multiplicou, entregou para o outro lado. Quer dizer, é uma falta de lucidez monstruosa.
Se você vê a história de Bertrand Russell, vê que ele escreveu coisas de lógica-matemática exemplares. Mas quando tentava analisar a realidade do mundo, ele falava cada besteira descomunal. Por exemplo, ele propôs o bombardeio atômico preventivo da URSS. Eu digo: que legal, vamos lá, matamos dois bilhões de pessoas, está tudo resolvido. Isso é idéia de jerico, evidentemente. Depois mais tarde ele mudou de lado --- era anticomunista, passou para o lado dos comunistas --- e terminou sendo propagandista do Ho Chi Minh. Então é claro que é uma total falta de lucidez, não é uma pessoa intelectualmente madura. É uma inteligência especializada num ponto que é atrofiada em tudo o mais. Não em tudo o mais, na verdade, porque Bertrand Russell foi um escritor excelente. Quando lemos sua História da Filosofia Ocidental, vemos que ele se especializou profundamente em não entender a filosofia alheia. O capítulo dele sobre Hegel é uma das coisas mais ridícula que vi na minha vida, parece com o Júlio Lemos falando do Mário Ferreira dos Santos: com aqueles ares de superioridade de quem não entendeu coisa nenhuma.
Uma pessoa verdadeiramente culta, uma pessoa intelectualmente madura não cai nesses negócios. Claro, todo mundo tem o direito de dizer uma besteira aqui ou ali de vez em quando, tem o direito de errar, inclusive de errar moralmente, mas você pode incorporar esses erros estruturalmente no seu pensamento e na sua atuação pública. Sobretudo, você não tem o direito de fazer isso inocentemente, quer dizer, sem perceber que está fazendo. Como foi precisamente o caso de Einstein, Oppenheimer, Bertrand Russell e outros.
Para nós, os grandes modelos de maturidade intelectual ainda são os gregos Platão e Aristóteles. Santo Tomás de Aquino dizia que a filosofia é o conhecimento de todas as coisas sem o conhecimento individualizado de cada ente. É um modo de dizer que é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa, estamos dizendo mais ou menos a mesma coisa. É possível realizar isso por meio de alguma ciência? Absolutamente impossível. Não existe ciência nenhuma sem a delimitação de um território muito específico, com métodos e critérios de validade muito específicas também e, portanto, sem o reconhecimento daqueles domínios ontológicos independentes e incomunicáveis.
Acontece que, Husserl dizia, não existe a trigonometria dos leões nem a biologia dos triângulos, mas, para o filósofo, existem triângulos, existem leões, existe biologia e existe trigonometria, e ele vai ter de algum modo se virar no meio disso. Ele não vai poder todas as ciências um por uma, mas ele tem de conhecer precisamente as fronteiras dela---isso é absolutamente fundamental. Ou seja, saber onde uma ciência chega ao limite da sua validade ou da sua autoridade e onde começa um outro domínio diferente, porque se trata de outro campo ontológico absolutamente independente.
Essa noção, por exemplo, de campos ontológicos independentes é absolutamente fundamental porque se a filosofia é o que diz Santo Tomás de Aquino, ela consiste eminentemente no conhecimento da articulação entre os campos ontológicos. Portanto, consiste também conhecer os limites da generalização possível --- os vários âmbitos em que é possível uma generalização ou não. Isto não vai terminar nunca pelo simples fato de que o alimento de que a filosofia se inspira são os fatos, e a filosofia não tem de buscar os fatos por si, quem busca os fatos são as ciências, a história. E os fatos continuam acontecendo, e não só continuam acontecendo, como continuam sendo desencavados. Então a cada geração tem-se uma coleção nova de dificuldades e de enigmas. E o filósofo vai ter de usar tudo aquilo que aprendeu na história da filosofia e mais alguma coisa para poder se adequar a essa situação.
Sem esse esforço de articulação --- note bem, não é o esforço de encontrar uma teoria geral de tudo, não é mesmo, é apenas o esforço de criar uma mente capaz de se orientar dentro do mapa dos campos ontológicos, é só isso, a filosofia faz isso e nada mais ---, se não existe esse esforço permanente, o próprio diálogo científico se torna impossível, [0:40] a não ser dentro de um domínio muito especializado no qual um cientista não entende o que o outro está fazendo. É perfeitamente possível você apresentar projeto de pesquisa a um diretor de departamento que não entende aquele projeto e que vai aprovar ou desaprovar às cegas. Isso porque para entender aquilo, ele próprio precisaria se dedicar àquela pesquisa durante anos, e ele não pode fazer isso.
Mas alguém tem de ser capaz de articular essas duas situações: o ponto de vista do cientista que apresenta o projeto e o ponto de vista do diretor que o julga. Alguém tem de fazer isso sem precisar conhecer profundamente cada caso em particular. E justamente essa é a especialidade da filosofia. Por isso é normal que os filósofos de algum modo tenham uma opinião de tudo o que aparece na frente deles, porque eles estão aí para isso, eles não estão aí para descrever para você como é o mundo, mas para manter essa atividade de adestramento da inteligência sempre viva e sempre se renovando. A filosofia não se destina a chegar a conclusões, ela tem o que eu chamo de patamares: conquistas que não podem mais ser ignoradas --- mas isso não no sentido de teorias científicas que foram provadas. Anaximandro jamais provou o ápeiron; Pitágoras jamais provou a onipotência dos números, mas você precisa integrar essas perspectivas porque elas são aspectos necessários da inteligência humana. E deve haver outros que não foram nem descobertos ainda e que vão aparecer com o tempo.
Fora disso, você cai na aberração de pessoas que conhecem profundamente um assunto, mas não sabe onde esse assunto está. Eles dizem que têm um conhecimento especializado, mas espécie, que eu saiba, é uma coisa que sai de dentro de um gênero. Portanto, aqui tem uma espécie, aqui tem uma espécie do mesmo gênero, lá tem os outros gêneros, e você sabe onde a coisa está.
Outro dia eu até escrevi uma coisinha no Facebook só para provocar as pessoas: se você possível explicar as percepções pela fisiologia do cérebro, não seria necessário haver objetos. Por que pergunto eu: que objeto está contido no cérebro, além do próprio cérebro? O cérebro tem neurônios, sinapses, proteína, mais isso e mais aquilo. Mas ele não contém nenhum elefante, ele não contém uma montanha, ele não contém nem sequer uma lagartixa. E a percepção, que eu saiba, é a apreensão de traços objetivos de entes que existem fora do nosso cérebro. Portanto, toda percepção é uma relação entre um sujeito percipiente e uma coisa percebida, relação que, evidentemente, não pode ser reduzida a um deles. Por exemplo, se a visão que eu tenho de um elefante pudesse ser explicada inteiramente pelo meu cérebro, eu não precisaria do elefante.
Então o sujeito pode estudar neurociência durante quarenta anos e nunca perceber isto e, portanto, nunca perceber a diferença entre uma percepção e a fisiologia da percepção. A fisiologia da percepção, claro, só interessa pelos mecanismos fisiológicos da percepção, mas não pela percepção em si mesma, isto é, pela relação sujeito e objeto. Por exemplo, qualquer objeto que eu perceba de alguma maneira tem a sua própria constituição, a sua modalidade ontológica, os seus componentes físico-matemáticos etc. Nada disso depende de mim, nada disso está no meu cérebro. Quando o percebo, percebo algo disso. Ou seja, eu tenho de traduzir esses dados objetivos em termos cerebrais. Mas eu não posso produzi-los todos. Se eu pudesse produzi-los, então bastaria um único cérebro, e esse cérebro seria o universo inteiro e não haveria mais nada além disso.
Ou seja, a idéia de explicar a percepção pela fisiologia do cérebro é uma idéia filosoficamente infantil, é pueril, um erro imperdoável. No entanto, se o sujeito estuda essa coisa anos a fio, ele fica orgulhoso daquela maçaroca de conhecimentos que ele obteve e nem percebe que nenhum desses conhecimentos se refere a um objeto, que tudo se refere somente ao sujeito. Aliás, nem mesmo ao sujeito, mas a um pedaço do sujeito. O sujeito diz: "vamos explicar tudo pela neurofisiologia cerebral". Eu digo: muito bem, então quer dizer que não precisa de sangue, músculo, osso etc., o cérebro percebe sozinho? Ou seja, que eu entenda a percepção que supõe o corpo do cidadão percipiente esteja em algum lugar no espaço, o qual não depende do cérebro dele, e que ele esteja cercado de objetos perceptíveis que têm as suas próprias constituições, as quais não dependem da fisiologia cerebral.
Nos últimos três séculos, a atenção que a filosofia prestou ao sujeito cognoscente --- com Descartes, Kant, Fichte, depois a psicologia experimental etc. --- foi tão obsessiva que, quando chegou no século XX, o Edmund Husserl teve de lembrar os caras de que existem objetos, existem coisas. Tem gente, no entanto, que não acordou para isso até hoje. Claro que tudo isso vira uma imensa massa de ilusões solipsísticas que, quando bem examinadas, às vezes se revelam quase psicóticas. Quando examino a filosofia do Kant, eu vejo que tem fortes elementos de delírio psicótico ali no meio --- delírio de interpretação, não psicose alucinatória, não é alucinação. Quer dizer, o sujeito está vendo as coisas certas, mas ele interpreta errado. Isso porque não sabe expressar, não sabe contar para si mesmo o que ele está percebendo.
A famosa idéia do Kant de que todas as impressões sensíveis são caóticas em si mesmas e o nosso cérebro que ordena tudo. Eu digo: quem ordena meu cérebro? Dentro da minha cabeça eu tenho um cérebro, você pode abrir a minha cabeça e ver o meu cérebro: o meu cérebro é caótico e é você que o está ordenando ou ele existe em si mesmo? Por que é você que vai botar ordem no meu, e não o meu que vai botar ordem no seu? Então a idéia de percepções caóticas ordenadas no cérebro humano é uma das idéias mais idiotas que alguém já pensou ao longo do tempo. Mesmo porque, para aprendermos a ordenar os nossos pensamentos, nós temos de pautar as nossas percepções por condições externas objetivas: direção no espaço, peso, velocidade etc. Nós temos de aprender tudo isso aí antes sequer de aprender os nomes.
Por exemplo, distância. Um bebezinho pequeno estende a mão para pegar uma coisa que está a três metros; mais tarde ele aprende que tem de ir até lá e pegar o objeto. A distância está no cérebro dele? Não, o cérebro está tão longe do objeto quanto está a mão dele, nem o cérebro nem a mão vão chegar lá. Aí quem estava certo era o Auguste Comte quando dizia que você tem de regrar o interno pelo externo. Ele estava certíssimo ao dizer isso aí. Quer dizer, você tem de aprender as formas, as medidas, as distâncias, as sucessões etc., e tudo isso não está no seu cérebro, isso é a estrutura do mundo real, do qual o seu cérebro faz parte, o seu cérebro está submetido a tudo isso. Ele também é uma massa que existe espacialmente, que tem o seu peso, a sua densidade etc. Nesse ponto até um pouco de materialismo ajuda a corrigir o engano.
Eu acabei de falar da neuro-história da arte. A neuro-história da arte é uma área da neurofisiologia? Não. Onde estavam os quadros, estavam no cérebro? Se ninguém pintou os quadros não vai ter neuro-história da arte coisíssima nenhuma. Portanto, tem de ter o elemento externo que não está no cérebro do observador, mas que está no cérebro do pintor e passou para mão e passou para tela, para que pudesse haver essa articulação --- articulação que é muitíssima interessante. Mas é interessante até o ponto em que você não cai na ilusão de achar que a neurofisiologia vai explicar as obras de arte. Porque ela vai explicar a fisiologia da sua percepção delas e ponto-final. Talvez se possa, como faz Max Weber, [00:50] escrever até uma história dos modos de percepção, ou seja, das distintas articulações neurofisiológicas que presidiram a observação das obras de arte ao longo do tempo. Isto é até possível, mas você nunca vai poder explicar uma coisa pela outra nem a outra pela uma.
[Intervalo]
Antes de responder às perguntas, eu queria complementar um pouco o que disse. Para uma pessoa jovem, o esforço maior dela é o de se integrar na sua geração e no seu tempo, o de encontrar um lugar na sociedade entre pessoas que se pareçam com ela ou com as quais ela deseje parecer. Esse é um esforço monstro. Inclusive o artigo que escrevi para o Digesto Econômico1 é precisamente sobre isto, quer dizer, a imitação do meio ambiente. Esse esforço é de grande importância porque ele inclui a sua diferenciação em relação à geração anterior, quer dizer, o desejo de se destacar da geração anterior para sentir-se integrado na própria. Caso contrário, você se sente isolado e muito enfraquecido.
Acontece que as duas ou três gerações imediatamente anteriores foram aquelas onde se formaram as condições nas quais você vive hoje. Então, de certo modo, a situação do jovem é sempre a de, para se integrar no seu tempo, ignorar as condições que o geraram. Então é uma espécie de ignorância obrigatória: você não pode sentir e ver as coisas como a geração anterior. Quando você o faz, é sempre de uma maneira de repulsa e até de desprezo caricatural. Então você acaba não sabendo de onde saiu aquele mundo no qual você está querendo se integrar. Então, evidentemente, vem a impressão de que a sua geração é normal, de que o normal é ser como ela, e tudo o que estava antes era anormal ou pelo menos se tornou anormal nas condições de hoje.
Isso é a mesma coisa que dizer que a ignorância histórica se torna obrigatória, sobretudo a história mais recente -- isso é muito importante. Você pode saber a história de Roma etc., mas a história das gerações anteriores, que é a mais decisiva para você, se torna até certo ponto incompreensível porque você não pode participar dos modos de percepção, de sentimentos dessas gerações. Quer dizer que tudo o que você encontra na sociedade, aquele sistema no qual você deseja se integrar é, para você, um mistério, uma coisa que caiu do céu, e que é natural que seja assim, que sempre foi assim, e você não tem a menor condição de julgar isso.
O curioso é que as pessoas vivem falando de duas coisas: relativismo cultural e consciência crítica. E justamente essas duas coisas estão proibidas. Se você tem de considerar o seu tempo como o modo de ser normal e normativo e os tempos anteriores como anormais e insuficientes, então acabou o relativismo cultural. Você tem aí o que eu chamo cronocentrismo: a época em que estou é não só o cume, mas é de certo modo a eternidade, as outras épocas são evanescentes, são coisas que não têm mais direito à existência, são apenas esquisitices já superadas e assim por diante. E, por outro lado, que consciência crítica eu posso ter se eu não posso saber de onde saíram os hábitos, os valores, símbolos etc., aos quais eu estou tentando me amoldar? Quer dizer, o conhecimento da origem fica proibido. Você não pode exercer pensamento crítico em cima de um corpo de valores e atos que você está querendo incorporar para você se sentir normal e igual aos outros. É absolutamente impossível. Essa fase é inevitável no desenvolvimento de qualquer um. Quando você vive mais um pouco, porém, você pode retroagir, pode rastrear os tempos anteriores. Mas se você o faz com o mesmo espírito de superioridade da sua época, então significa que os modos de sentir e de perceber das gerações anteriores lhe parecerão inverossímeis, você não se identifica com eles. A formação humanística consiste justamente em abrir o sujeito para sentir e perceber como os homens de todas as épocas sentiram e perceberam, sobretudo das imediatamente anteriores, que são as mais decisivas para a sua vida.
Por exemplo, outro dia estava havendo um bafafá a respeito de música. É evidente que se todo mundo está tocando determinado tipo de música, a sua geração toca aquele tipo de música, você quer se integrar naquilo para você sentir que é uma pessoa igual, que é normal. Quer dizer, está todo mundo tocando rock, funk etc., e você só sabe canto gregoriano, você vai se sentir um cara muito esquisito. E ninguém quer se sentir esquisito, o ser humano precisa de afeição. E a afeição do grupo social é vendida muito cara.
Por exemplo, um assunto que é absolutamente central para você entender a sua vida, o ambiente social no qual você está, a cultura do seu tempo, o conjunto de sentimentos e valores que você está assimilando, para você entender tudo isso é uma coisa que você não pode jamais se permitir ignorar é: de onde saiu tudo isso? Quem inventou tudo isso? Modas culturais, modas artísticas, modas indumentárias etc. não nascem como banana, alguém inventou. E quando inventou, tinha um motivo para inventar. Todo mundo sabe disso em princípio, mas não tira disso a conseqüência. Sabe que alguém inventou, mas continua achando que é natural ser daquele jeito, e só daquele jeito. Então você não pode exercer a tal da consciência crítica, você tem de aceitar.
Como as pessoas sabem que alguém inventou, elas imediatamente aplicam a isso o esquema das causas econômicas: quem inventou foram as grandes companhias de música, é o interesse capitalista. Isso existe, certamente há. Porém, sabemos que, por exemplo, no Brasil tem certos... Quem é o sujeito que mais vendeu disco no Brasil ao longo de toda a história brasileira? Um sujeito chamado Amado Batista, que é cantor de empregadinha doméstica. Não foi o Caetano Veloso, não foi nenhum grupo de rock, não foi o pessoal da Bossa Nova, não foi nada disso. Interesse capitalista por interesse capitalista, os caras querem vender disco, e não criar novas modas. Ao contrário: se existe uma moda que já está consolidada, a indústria vai pegar justamente aquele e vender para o povo aquilo que o povo já está acostumado a consumir, é a coisa mais óbvia do mundo. Então pode tirar o cavalo da chuva que os planejadores das modas musicais, indumentárias etc. não são os grandes capitalistas, de jeito nenhum. São, na verdade, intelectuais: gente que pensa e que tem planos para o curso da história. Só pessoas que querem influenciar a sociedade no seu todo inventam essas modas.
E essas pessoas fazem isso só, por conta própria, porque veio na cabeça delas ou porque elas já pertencem a movimentos políticos e ideológicos que já estão fazendo isso há muito tempo? Eu digo para vocês: não tem nem uma moda musical cuja origem não esteja de algum modo na KGB. Vocês não têm idéia do esforço monstruoso que o pessoal da KGB fez, desde a década de 1930, para criar essas modas no Ocidente. Investiram [1:00] rios de dinheiro, criaram milhões de técnicos e entraram em tudo quanto é indústria de disco, canal de TV, estação de rádio etc. desde a década de 1930.
Quando eu digo que a KGB foi a maior organização de qualquer tipo que já existiu, isso tem de ser levado a sério numericamente. O número de colaboradores da KGB era praticamente ilimitado porque militante do Partido Comunista, em qualquer lugar do mundo, podia a qualquer momento ser chamado a colaborar e jamais diria "não". Quer dizer que, além do número de agentes profissionais, você tinha um exército limitado de colaboradores. Nunca ninguém teve isso no mundo. O pessoal não mede. Por exemplo, as pessoas acreditam que propaganda comunista consiste em louvar as virtudes do regime comunista e descer o cassete no regime capitalista, então tudo é muito claro: eu sou a favor do comunismo, você é a favor do capitalismo. Mas isso é muito ingênuo, isso é muito pueril. Muito mais do que pregar o comunismo, o pessoal da KGB se incumbiu, desde a década de 1930, de um objetivo prioritário, que é corromper a sociedade capitalista -- isso é prioritário, segundo Lenin. E música, moda, droga, hábitos morais e sexuais, tudo isso é prioritário. Quando você rastreia, você acaba sempre chegando na mesma fonte. Existem livros sobre isso, só que ninguém mais lê.
Pessoas que estão com 20 ou 30 anos não acompanharam a mudança dos costumes nos últimos 50 ou 60 anos, elas só pegaram a fase atual. Elas não têm idéia de como as pessoas sentiam antes e dificilmente são capazes de imaginar isso, isso não tem a elas verossimilhança. Elas sempre têm a impressão de que as pessoas das gerações anteriores viviam na irrealidade, e você está na realidade. Aí temos de lembrar o famoso dito de Leopold von Ranke: "Todas as épocas são iguais perante Deus". O coeficiente de realidade que se conhecia a 50 anos atrás não era menor do que o que se conhece hoje. As pessoas não eram mais burras, não eram mais ingênuas, nem você é o cume da evolução humana. Eu consigo rastrear a coisa porque estou com 67 anos, eu vi a mudança e guardo na memória tudo isso. Não procurei me adaptar ansiosamente às novas modas nem as rejeitei, via aquela coisa acontecendo, ia anotando na minha cabeça para chegar a alguma conclusão. Mas quem está com 20 ou 30 anos não acompanhou isso aí e não tem material para estudar e ver essas modificações.
Por exemplo, se você pegar a própria história psicológica do Brasil (não digo do mundo) nos últimos 40 anos, não se tem nada: zero, zero, zero. Não existe pesquisa sobre isto, sobre a mudança da vida familiar, sobre os novos valores e símbolos que se incorporaram na cultura. E até hoje ninguém conseguiu explicar sequer como é que um partido que, durante 30 anos, teve só 20% dos votos, de repente pegou o poder em tudo, assumiu o poder em todos os campos. Nem isso o pessoal consegue explicar.
Se você pegar a nossa literatura, ela não documentou essas modificações. O último sinal de que a literatura estava pegando algo do estado de espírito da população foi anos 60-70. Por exemplo, esse pessoal da esquerda, o canto de cisnes dele foi o romance Quarup, do Antonio Calado, e o Pessach, do Carlos Heitor Cony, onde você via que eles estavam notando uma mudança de sensibilidade num certo grupo social, que, aliás, era o grupo deles mesmos, que era a intelectualidade carioca -- pelo menos isso eles documentaram. No resto, você não vê nada, só vê estereótipo, bobagem. A literatura não tem força documental nenhuma, então tudo o que aconteceu já foi esquecido, foi uma longa noite. Se você não tem nem mesmo o material para ler, como é que você vai saber o que aconteceu?
Agora, quando você aplica isso ao mundo, você observa, por exemplo, que as modificações da sociedade americana foram tão brutais, mas tão brutais, e todas elas foram exatamente no sentido visado pela propaganda soviética. Aquilo que, nos anos 1950, saía no Pravda, hoje sai no New York Times, na CNN, aquela opinião igualzinha. Como é que eles conseguiram convencer as pessoas disso aí? Um dos principais meios era justamente a passagem de gerações, e você tornar natural para a geração seguinte o que a geração anterior não conseguiria nem imaginar. E as modas musicais são importantíssimas para isso. Por exemplo, dissolver a fronteira entre música popular e música clássica. Isso foi o objetivo prioritário da União Soviética desde os anos 20. Quando chega nos anos 70, você pega a intelectualidade francesa... Existe até um livro muito interessante, saiu na época e expressava o espírito dos tempos, de dois autores, Philippe Rivière e Danchin Laurent, e o livro chamava Linguistique et culture nouvelle. Ele falava: antes tínhamos uma cultura que era determinada pela leitura dos clássicos, por isso e mais aquilo, e agora nós temos uma outra que é determinada pela lingüística, música pop e --- eu acho --- neurofisiologia --- alguma coisa assim (risos).
O que ele estava dizendo não expressava um fato, mas um projeto, porque, na verdade, até aquele momento as pessoas ainda estavam recebendo a educação antiga. Esse projeto hoje se considera realizado, e as pessoas não sabem de onde isso saiu, não têm a menor idéia, para elas é natural. E naturalmente todo mundo tem opiniões --- já dizia Dirty Harry, "Opinião é como bunda, todo mundo tem [uma]" ---, o sujeito cria uma opinião e não tem idéia de que corrente histórica ele está se inserindo com isso. E essas mesmas pessoas continuam falando de consciência crítica e relativismo cultural. Então é evidente que tudo isso é uma palhaçada, um circo.
O que é tornar-se um intelectual responsável, um filósofo nessa altura? É você realmente conseguir se levantar acima dessa redoma da sua época e absorver os sentimentos e valores de outras épocas como se fossem os seus. Já dizia o Benedetto Croce: o homem é um microcosmo não no sentido biológico, mas no sentido histórico; ele diz: se não existe em mim nada da piedade cristã nem do espírito revolucionário, eu não posso entender a Idade Média nem a Revolução. Então nós temos de puxar de dentro de nós essas possibilidades que estão lá guardadas e desenvolvê-las para que possamos nos identificar com essas sucessivas gerações, sobretudo com as imediatamente anteriores que foram aquelas que formaram o ambiente da nossa vida. Senão nós estamos nos condenando a só nos integrar no presente com a condição de ignorar de onde ele saiu, ou seja, é uma espécie de inconsciência obrigatória. Não preciso enfatizar a gravidade disso.
É claro que para a maioria da população não existe saída, eles vão estar nisso mesmo. Mas se queremos estudar, entender o curso das coisas, nós temos de nos levantar acima disso de alguma maneira. E o número de conhecimentos que você pode necessitar para isso é praticamente ilimitado, você vai passar o resto da sua vida buscando. Tem perguntas, gente, que eu formulei há quarentas anos na minha cabeça e que às vezes só fui encontrar um livro sobre aquilo quarenta anos depois. Quando eu digo a origem dessas coisas na União Soviética, eu sempre soube disso. Isso porque eu lia coisas sobre a ofensiva cultura soviética etc., mas eu não tinha as conexões de detalhe: quem contratou o que para fazer o quê etc., e como é que isso entrou aqui nos EUA. Chegou-me agora este livro aqui: Rhythm, Riots and Revolution (Ritmos, arruaças e revoluções), [1:10] David Noebel. Eu vou pedir para o Cesar Kyn traduzir e publicar isso aqui, este livro é de uma importância extraordinária.
Quando ele foi publicado, em 1966, parecia teoria da conspiração. Hoje, você vê que era tudo exato. Como o efeito sociocultural foi calculado, planejado, posto em ação e funcionou. Hoje nós podemos ver, mas, na época, só um gênio assombroso poderia entender, em 1966, o que esse sujeito que é um gênio percebeu. Raramente eu vi um livro tão bem documentado quanto este. Ele pega cantorzinho por cantorzinho de rock, quais são os contatos, quem ensinou as coisas para ele, qual era a ideologia que formou a cabeça dele, quais eram os planos, o que ele fez e o que resultou. Eu sei disso há muito tempo, mas eu sabia só o macro desenho, não sabia o micro, os detalhes. Na verdade, eu só acredito em micro história. A história de você fazer grandes generalizações a partir de nomes de correntes culturais ou fatores impessoais, não, isso aí você faz quando você não tem a história real, você só tem o genérico, você não tem o específico. Você está na fase do que o Mário Ferreira dos Santos chamava síntese confusa. Mas agora a síntese não está mais confusa, agora eu já sei todos os detalhes da história.
Quando surgiu a discussão sobre música, essa discussão se travou com pessoas que não acompanharam a modificação da mentalidade. De largada, elas já entraram em um terreno antecipadamente preparado para isso e geralmente não tinham idéia de onde as coisas vieram e de qual era o efeito social global que se visava. Uma coisa que para mim já é uma conclusão acertada é que os processos de revolução cultural não foram inventados por Antonio Gramsci, foram inventados pessoalmente por Stalin nos anos 20 e postos em ação nos EUA, com um sucesso espetacular. A revolução cultural é praticamente irresistível. Onde você decidir corromper a moralidade de uma nação, fazer perder o espírito patriótico, afastar os caras da religião, criar um caos geral, fazer todo mundo virar drogado, você consegue. É quase irresistível; primeiro, por causa da massa de recursos que é colocada nisso. A indústria de discos perto disso é nada. O que é a indústria de disco perto da KGB? O orçamento da KGB nem o Parlamento soviético sabia; quer dizer, é dinheiro ilimitado.
Porém, existe uma dificuldade que nem Stalin nem Antonio Gramsci jamais pensaram: a revolução cultural é feita, mas como é que você opera depois (o que Mao Tsé-Tung chamaria o salto qualitativo da corrupção capitalista que você mesmo gerou para o socialismo)? Isso é quase impossível, mesmo que você esteja nominalmente no poder. Isso você vê que acontece no Brasil: a revolução cultural derrubou tudo e ao mesmo tempo o partido comunista, que é o PT, toma o poder, controla o Estado, controla a educação, controla tudo, tudo. E cadê o socialismo? Ele não veio até agora. Essa passagem, eu já cheguei à conclusão de que ela só é possível mesmo pelo método leninista. Quer dizer, você toma o poder numa insurreição, mata todos os seus adversários, faz a guerra de classes no sentido físico da coisa, você extermina a classe, você mata os seus representantes e escraviza os que sobraram. Aí sim você passou para o socialismo. O que é o socialismo? É a unificação de poder político e econômico, é entregar todo o poder econômico aos políticos. Eles fizeram isso na União Soviética e fizeram na China.
Essa estratégia cultural é brutalmente eficaz para corromper o capitalismo e transformar num caos. Mas, em primeiro lugar, ela é incontrolável. Você consegue expandi-la, mas não consegue controlar todos os movimentos que surgem. De dentro das modificações que você criou surgem subcorrentes, oposições, variações etc., e vira um caos que você mesmo não pode controlar. Quando o pessoal levanta assim: "Mas existe heavy metal cristão, heavy metal gospel", eu falo: faz parte do processo, está no meio da confusão, vale tudo. Isso não significa nada em si mesmo, o que importa é o efeito global que a coisa tem sobre a sociedade, quer dizer, uma modificação de costumes e de valores que é uma coisa absolutamente drástica. Se você falasse para uma pessoa dos anos 50, "daqui a 50 anos haverá casamentos homossexuais reconhecidos pelo Estado", o sujeito pensaria que você estava louco, "Isso é teoria da conspiração, isso não vai acontecer nunca". E, no entanto, aconteceu.
Assim como quando eu disse que a pedofilia seria legitimada em breve, todo mundo disse que eu estava louco. Mas eu conheço os planos dos caras, eu conheço o que eles estão planejando fazer. Não fui eu que previ, eu li lá. Agora está aí. Hoje mesmo o Richard Dawkins disse que a pedofilia leve não faz mal nenhum --- o Alessandro que me contou. Quer dizer, a pedofilia leve é nos outros; se fosse nele, ela não era leve. Quer dizer, o processo de legitimação da pedofilia está em curso e chegará às suas conseqüências. De modo que, daqui a alguns anos, os pais que recusarem seus filhos ao pedófilo irão para a cadeia. Não tenho a menor dúvida de isso vai acontecer. Isso faz parte do movimento quase que automático de expansão da revolução cultural. Mas a transfiguração da revolução cultural em socialismo eu acho que é quase impossível. Ou seja, eles não conseguem fazer o socialismo, mas transformam o capitalismo num inferno. E, na mais arrojada das hipóteses, evolui para um regime de tipo chinês, que, na verdade, é a economia fascista globalizada, não nacional, mas o mesmo esquema: você tem lá meia dúzia de grandes grupos econômicos que dividem o poder com a elite governante e, pronto, eles mandam em tudo. E tem sempre uma plêiade de cientistas trabalhando para eles.
Esses elementos de guerra cultural são difíceis de rastrear. Nós percebemos o que está acontecendo, mas às vezes você não tem documentos, não sabe quem fez, não sabe onde fez, não sabe por que fez, você observa os efeitos. Às vezes as pessoas conservadoras, cristãs etc. ficam chocadas com isso, e elas saiam gritando que é uma conspiração. Mas eles também não têm a conexão, então eles soam ridículos. Quando você vai ver, esses caras que denunciam conspirações têm muito mais razão do que eles imaginavam. Você veja, quando o tal do John McCarthy disse que havia 52 riscos de segurança infiltrados em altas esferas (ele não disse nem agentes soviéticos), todo mundo caiu de pau afirmando ser teoria da conspiração. O cara virou o senador mais odiado de todos os tempos. Hoje, quando já se decifrou os códigos Verona --- que é a comunicação entre a embaixada soviética e o governo de Moscou --- e quando se abriu os Arquivos de Moscou etc., já se sabe que eram mais de mil. O cara que falou 52 foi escorraçado. Hoje eu falo: Mas não é que o homem tinha razão? Só que ele tinha muito mais razão do que ele imaginava. Quando ele falou "uma conspiração tão imensa", 52 era uma conspiração imensa para ele, mas era muito mais imensa ainda.
O tamanho desta coisa é dificilmente imaginável, ultrapassa o critério de verossimilhança do cidadão comum, e você precisa estudar muito História para habituar a sua visão a essa escala. Se você pensar quantas indústrias de disco foram fundadas aqui nos EUA com dinheiro soviético e com propósito soviética, são várias. Às vezes isso só é descoberto 50 anos depois. E se se descobre na hora, quando divulgado ninguém acredita. Só vai se acreditar quando os seus efeitos tiverem chegado às suas últimas conseqüências.
Prestem atenção! Para nós, que queremos ser intelectuais responsáveis e fazer algum benefício para a sociedade, é absolutamente obrigatório compreender e olhar tudo isso com uma calma imperturbável. Claro que podemos ficar tristes diante de tudo isso; mas ficar revoltado, chocado, [1:20] ter ataque apoplético, só vai nos colocar no ridículo e dar ainda mais vantagem para as forças que estão produzindo esse processo. Nós temos de entender a coisa na sua profundidade e obter a hegemonia intelectual, ou seja, temos de enxergar mais do que eles. Como se diz: eu sei quem você é e vi o que você fez; foi isso e mais isso e mais isso; por isso, por isso e por isso. A hora que você entende esse esquema, em grande parte você já está livre disso aí, você já não participa mais dessas correntes culturais, morais, psicológicas etc., como um personagem, mas como um espectador científico que está querendo entender. E, evidentemente, está querendo diminuir os efeitos letais daquilo.
Aluno: Tendo em vista a fundamental importância de expressar o que pensamos e a deficiência que muitos de nós possuímos, quais seriam as modificações necessárias nos currículos escolares para reduzir esse problema?
Olavo: Essa pergunta é crucial, mas não temos autoridade sobre isso. Mas vamos raciocinar em termos de hipótese ideal. Vamos supor que eu tivesse autoridade sobre a educação brasileira, o que eu faria. A primeira coisa seria reduzir drasticamente o currículo e ensinar as crianças pequenas aquilo que é absolutamente necessário para que elas por si mesmas adquiram novos conhecimentos. Porque o sujeito vai para a escola hoje para se preparar para um mundo que será dali a vinte anos e que ele não conhece e o professor dele também não conhece. Quanto mais moldada estiver a cabeça dele, pior. Você tem de dar uma flexibilidade para ele poder se adaptar. Então esta é a primeira coisa; seria aquele famoso triângulo: ler, escrever e fazer conta -- isso é a coisa básica. Precisa ensinar geografia? Depende. Você deixa lá um livro de geografia, e se ele souber ler, escrever e fazer conta, ele pega o livro de geografia e lê.
Em segundo lugar, eu incentivaria as práticas artísticas com um fundo moral. As práticas artísticas servem para integrar o menino à comunidade, para desenvolver habilidades, para desenvolver o sentimento, percepções e para desenvolver os sentimentos morais. Quer dizer, eu resumiria a educação nisso aqui, sairia muito mais barato do que as pessoas fazem hoje. Em terceiro lugar, eu diminuiria drasticamente o número de professores. Isso porque 80% do professorado no Brasil não têm capacidade para isso. Não tem capacidade, não tem vocação, não tem coisa nenhuma. Entrou na profissão porque foi o emprego que apareceu. E nós não podemos entregar as crianças nas mãos dessas pessoas.
Por exemplo, a minha mãe só tem o curso primário. Minha mãe escreve perfeitamente, faz qualquer cálculo possível, tem uma caligrafia maravilhosa, desenha maravilhosamente e, até hoje, é gratíssima a professora de ensino primário dela chamada dona Cimira que ensinou tudo aquilo para ela. Mas é claro que essa dona Cimira é uma abnegada, uma pessoa que adorava fazer aquilo e que a vida dela era aquelas crianças. Quantas pessoas são assim? Quando você vê toda hora professor fazendo greve, querendo aumento etc., e ao mesmo tempo estão lá ensinando homossexualismo para criança. O que é isso? Que gente é essa? Não podemos permitir que essas crianças fiquem nas mãos dessa gente.
Então, sanear o professorado, diminuir o currículo, simplificar e restaurar aquelas práticas que têm o sentido de uma moralidade maior, de uma humanização maior, de uma abertura para os sentimentos e a compreensão humana etc. Isso é o que eu faria, mas não vou fazer porque não tenho autoridade nenhuma. E ninguém vai fazer.
Aluno: O historiador Henri-Irénée Marrou dizia que a história é um esporte para a idade madura. A maturidade necessária para ser um historiador é a mesma necessária para ser um filósofo?
Olavo: Sem sombra de dúvida. Agora, quando nós falamos maturidade, também estou querendo dizer o domínio intelectual dos fatores que plasmaram a sua vida: de onde eu saí? Que idéias entraram na minha cabeça e de onde elas vieram? Como eu fui desenvolvendo as minhas reações, os meus sentimentos, os meus hábitos etc.? Em última análise: a quem eu estou seguindo sem saber? Quando você segue uma pessoa que conhece (por exemplo, você foi lá e ouviu o padre Paulo Ricardo, ele mandou você fazer assim e você fez), então você sabe de onde veio a ordem. Mas aquilo que está disseminado na cultura, você não sabe de onde veio. E em geral as fontes não querem ser identificadas, elas permanecem discretas. Isso porque elas querem que você as obedeça acreditando que você está seguindo a sua própria inclinação natural. O sujeito adere a uma moda, ele pensa que fez isso com total liberdade. Mas como com total liberdade se você não sabe nem de onde veio?
Por exemplo, a história das suas idéias, das suas crenças, das suas opiniões. Já fiz esse teste milhares de vezes: perguntar para o brasileiro de onde ele tirou essa idéia, ele começa a argumentar em favor da idéia. Eu digo: não foi isso que eu perguntei, eu perguntei a história, de onde saiu. Eles não lembram. Não têm nem a menor idéia de que de algum lugar veio. Dá a impressão de que tudo saiu espontaneamente do seu próprio cérebro. Então como vai falar de consciência crítica e de relativismo cultural numa condição desta? É impossível.
A maturidade humana, em termos das camadas, você alcança com a camada 7. E a maturidade intelectual tem de pular mais duas camadas. Primeiro, você precisa ter passado pela etapa da crise, que é exatamente esta pergunta: de onde eu saí? O que fez de mim aquilo que eu sou? Quem me influenciou sem eu saber? De onde vieram minhas idéias, meus sentimentos, minhas atitudes etc.? E julgar tudo isso criticamente. Só depois de fazer isso que você tem o que se chama personalidade intelectual. A partir daí as suas idéias, as suas crenças começam a ser o fator determinante da sua conduta --- só a partir daí.
O normal seria você ter, num país do tamanho do Brasil, muitos milhares de pessoas assim, com uma personalidade intelectual definida, que estão trocando uma idéia. O fato é que não tem, o pessoal está ocupando postos de camada 9, até 10, mas humanamente pararam na camada 4 ou 5; não passa daí. E isso é a grande tragédia da sociedade brasileira: são pessoas imaturas que desempenham uma função social de homens maduros e responsáveis. Você vê pelas atitudes que os caras tomam. É incrível, pessoas que se gabam além das suas realizações --- é uma coisa incrível, incrível. Isso no Brasil é a coisa mais comum. O sujeito tem um conceito superior dele mesmo, muito bem, mas o que você fez, qual é o seu currículo, quais são as suas obras realizadas? Nada.
Tem pessoas que acham que porque leram determinado livro já incorporaram as virtudes do autor, como se elas o tivessem escrito. Isso aí lembra aquela piada do padre que estava fazendo um exorcismo, falou para o diabo: "Em nome de Jesus Cristo, sai daí". E o diabo: "Jesus Cristo eu já ouvi falar, mas você quem é?". Então é este o problema: os caras vão com uma autoridade que é totalmente emprestada e que eles não sabem que é emprestada, eles acreditam que incorporam aquilo. Quando, na verdade, essa gente tipo Júlio Lemos, Caio Rossi, essa gente toda falando, é tudo assim. Eu falo: cadê as suas realizações? Eles sentem que falam em nome dos grandes autores que leram. Eu digo: mas você ter lido um autor é mérito dele, não é seu, foi ele que lhe ensinou. Eu quero ver o que você fez, o que você escreveu, o que você ensinou. Aí você vê endêmica a síndrome de Dunning-Kruger. E isso nós temos de vencer absolutamente, não pode ficar assim. Claro que muitas vezes você vai ter de cair do cavalo para isso, mas é caindo do cavalo que você aprende.
A maturidade de um historiador é a de no mínimo 40 anos. Mas você vê essas pessoas, os Julios Lemas e Caios Rossis, estão com 40 anos e ainda são menininhos rebeldes, [1:30] acham que podem fazer carreira só fazendo fofoca, falando mal dos outros e não precisam fazer nada, não precisam ter uma folha de realizações, não precisam ter coisa nenhuma. Claro que no Brasil existe muito esse sentimento de inferioridade, é um país de gente complexada e fracassada. Nós podemos nos livrar disso, mas apenas se fizermos esse trabalho, quase uma anamnese: de onde saí, quais foram os fatores que me plasmaram e quem botou essas idéias na minha cabeça, quem me ensinou a ser assim? E será que eu quero mesmo ser assim ou quero ser outra coisa?
As outras perguntas têm de ficar para a próxima porque essa explicação aqui eu achei que era urgente. Eu repito aqui o meu apelo: eu preciso desesperadamente de uma secretária bilíngüe. Não para as finalidades que a Bispa Fumacedo imagina, mas para trabalhar.
Até a semana que vem. Muito obrigado.
Transcrição: Jussara Reis de Abreu.
Revisão: Éricson Rojahn.
Footnotes
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Link do artigo: http://www.olavodecarvalho.org/a-destruicao-da-inteligencia/ ↩