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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 243

22 de março de 2014

Boa noite. Sejam bem-vindos.

Na última aula eu estava descrevendo o processo pelo qual ao longo do tempo inúmeros fatores externos, sem relação com o desenvolvimento interno e próprio do projeto filosófico, foram interferindo na Filosofia e modificando o seu perfil até torná-lo irreconhecível (daí resultando naquela situação descrita por Wolfgang Stegmüller, na qual qualquer definição da Filosofia tornara-se impossível pela variedade e até pela incomunicabilidade das suas várias manifestações entre si). Apesar de ter procurado, não encontrei nenhum estudo específico sobre este tema. Embora eu não esteja em condições de fazer por conta própria um tal estudo histórico - o que levaria muitos anos -, pelo menos, as suas linhas gerais é o que esboçarei nesta aula. Inclusive, aqueles que quiserem dedicar dez ou quinze anos de suas vidas a este tema não terão perdido seu tempo -- tal estudo é de uma importância extraordinária.

Na aula passada, depois de descrever a situação da filosofia escolástica, foram abordados três novos fatores que iriam interferir ainda mais no curso do processo filosófico, modificando ainda mais a figura da Filosofia. No caso da filosofia escolástica o que aconteceu, obviamente, foram dois processos mais ou menos simultâneos e mesclados. Por um lado, houve a formação das universidades e, portanto, a instituição da Filosofia como profissão universitária (com regulamentos, programa pré-determinado, seleção prévia de textos permitidos e proibidos, entre outros). Por outro lado, havia as relações da Filosofia com a Teologia, a qual, na época, predominava enormemente como atividade intelectual sobre a Filosofia. Essa foi a época de formação das chamadas Sumas, que eram as primeiras grandes tentativas de sistematizar a doutrina cristã a partir dos textos revelados, e a atividade filosófica aparece como um complemento desse monumental esforço teológico feito na época.

A expressão philosophia ancilla theologiae ("a Filosofia é serva da Teologia") não deve ser interpretada no sentido de que os filósofos escolásticos resolvessem questões filosóficas baseando-se em premissas teológicas -- coisa que não faziam, pois mantinham as duas atividades bastante distintas e separadas (quem tiver dúvidas sobre isto que compare a Suma Teológica com a Suma Contra os Gentios. ambas de Santo Tomás de Aquino - a primeira escrita para os cristãos, e a segunda para os judeus e mulçumanos), mas, sim, no sentido de que concorria à mesma finalidade da Teologia e dava-lhe uma espécie de suporte externo, baseado em argumentos de pura racionalidade humana, sem apelo à autoridade das escrituras. De modo que a Filosofia torna-se assim uma espécie de complemento da Teologia, e, neste sentido, não tinha uma vida autônoma: em última análise, ambas estavam concorrendo para o mesmo fim. Em grande parte, essa filosofia assume, então, o sentido de uma apologética cristã (quer dizer, uma apologética puramente filosófica, sem apelo à autoridade da Revelação, mas ainda assim uma apologética). Pode-se imaginar o quanto isto está distante das preocupações originárias de Sócrates, Platão e Aristóteles, que nem conheciam o Cristianismo.

Em seguida, vêm três novos fatores. O primeiro, acho que cheguei a explicar, foi o retorno das modas ocultistas: Astrologia, Alquimia, Magia, etc., sobretudo pelas mãos de pensadores italianos: Giordano Bruno, Tommaso Campanella e outros. Eram saudosistas da ciência exotérico-ocultista greco-romana, que a reintroduziram então no mundo da alta cultura. Não que essas ciências tivessem sido totalmente banidas. Elas não foram. O próprio Santo Tomás escreve um tratado sobre as forças sutis da natureza, que tem algo a ver com este departamento. Mas de qualquer modo, na síntese escolástica, ocupavam um lugar muito modesto ou até marginal. Então, inconformados com isso, esses cultores das antigas ciências ou arte, as reintroduziram no universo da alta cultura.

Em reação a isso é que surge a filosofia mecanicista. Em Galileu, esta intenção ainda não está muito clara; mas, sobretudo em René Descartes e Marin Mersenne, já é bem nítida esta intenção de barrar o caminho à onda ocultista e, portanto, restaurar uma filosofia cristã em bases mais racionais.

A figura de Marin Mersenne é muito importante nesse aspecto porque, embora não fosse um grande filósofo criador, ele era o sujeito que interconectava todos os grandes pensadores da época; apresentava um pro outro, outro pro um; copiava as cartas e às vezes até mandava as cartas pessoais e secretas, pensamentos que o sujeito não queria divulgar ainda, Mersenne copiava e mandava para os outros - ele achava que, agindo assim, estaria servindo para o progresso da ciência. Então todo o diálogo científico da época gira em torno dessa pessoa: Marin Mersenne. A intenção dele, assim como a de Descartes, era muito clara: ele achava que antiga física escolástica, baseada em Aristóteles (portanto, na idéia das formas substanciais), ainda deixava aberta uma brecha para o ocultismo e que era preciso fechar essa brecha. E daí que surge, então, a idéia do método matemático, que Aristóteles havia recusado, porque ele achava que nenhum processo natural é exato (tudo é meio na base do probabilismo, da conjectura). Na sua época, não havia uma matemática desenvolvida suficientemente pra estudar a lei das probabilidades. O que ele fez? Deixou de lado o método matemático, por não ter instrumentos matemáticos para estudar a Natureza. Nessa época, essa nova matemática começa a se desenvolver; sobretudo, com a invenção do cálculo, por Newton e Leibniz, torna-se possível levar a matematização dos fenômenos naturais até um nível de detalhe realmente infinitesimal. Então, Descartes e Mersenne acreditavam que pelo uso do método matemático superavam-se fraquezas e fragilidades que tornavam a física aristotélica-escolástica vulnerável ao ocultismo. Então eles acreditavam piamente estarem servindo ao Cristianismo - essa era a idéia.

Ao mesmo tempo, junto com esse fenômeno e mesclado com ele, existe o fenômeno do surgimento dos novos estados nacionais. Ou seja, são blocos nacionais inteiros que rompem com o império e afirmam a sua independência, cada um deles com a intenção de tornar-se, por sua vez, o núcleo do novo império mundial.

A esta altura, uma antiga competição que já vinha ocorrendo fazia séculos, que era a competição entre a Igreja e os reis (os governos), para ver que iria ter o controle das universidades, chega ao seu máximo. Na época, a Igreja saiu vencedora e manteve o controle das universidades e o resultado, eu já expliquei isso em aulas anteriores, começa a se formar uma nova intelectualidade extra-universitária, constituída sobretudo de aristocratas ou de servidores da corte. Vamos dizer, uma intelectualidade palaciana. O sinal de independência dessa intelectualidade é a fundação da Royal Society, na Inglaterra, sob a presidência de Elias Ashmole. Nessa primeira geração de intelectuais palacianos existem muitos que ainda estão contaminados de ocultismo (o próprio Elias Ashmole era um alquimista; aliás, Isaac Newton também). Mas, aos poucos, pelo menos a imagem externa do cientista moderno acaba perfilando-se como alguém que é totalmente adepto ao método matemático e que não quer conversa com ocultismos. Esta imagem é uma falsidade histórica, mas foi assim que ficou consolidada.

Notem bem que nenhum desses acontecimentos que estou narrando (nem a formação das universidades, nem a onda ocultista, nem o surgimento do mecanicismo, nem a formação da nova intelectualidade extra-universitária) [00:10], nada disso pode ser considerado um desenvolvimento natural e lógico da proposta filosófica grega. Simplesmente não tem nada que ver, são fatores histórico e sociológicos da época que interferem no e modificam o rumo da Filosofia. De modo que nós não sabemos o que teria sido a Filosofia se, em vez de responder a essas necessidades imediatas do meio europeu, ela se inspirasse mais profundamente no exemplo e na proposta grega. Nós podemos dizer que, durante muito tempo, isso se tornou impossível, porque muitos dos textos tinham desaparecido. Eles só começam a reaparecer por volta do século XII e XIII. Mas alguma coisa sempre tinha sobrado.

Nunca será demais enfatizar que aquilo que se chama de filosofia, a partir da Idade Média, não é a mesma coisa que se chamava na Grécia. São atividades totalmente novas, que respondem a situações histórico-culturais da época e que mantêm alguma referência à filosofia grega - e até que ponto vai essa referência é exatamente o que nós temos que sondar; ou seja, em que medida essas sucessivas mudanças de fisionomia da filosofia conservaram algo da inspiração originária, e em que medida mudaram completamente - esse é justamente o tema da investigação que estou esboçando aqui.

Mas, de qualquer modo, é importante notar que não podemos jamais encarar a Filosofia ou a história da Filosofia como um desenvolvimento natural e linear de uma proposta grega. Não foi isso. Foi uma história cheia de percalços e de interferências externas.

Por incrível que pareça, no fim do século XVIII e ao longo do século XIX, desenvolve-se, sobretudo com Hegel, uma concepção da história da Filosofia, que é exatamente o contrário do que estou dizendo aqui. [00:12:30] Os dois livros mais significativos desta corrente (deste método, por assim dizer) são As Lições Sobre a História da Filosofia Universal, do próprio Hegel, e, já no fim do século XIX, o livro A Crise da Filosofia Ocidental, de Vladimir Soloviov, filósofo russo. Então eles descrevem a história da Filosofia como se fosse o desenvolvimento dialético de uma seqüência de pensamentos. Quer dizer, cada filosofia vai surgindo dialeticamente em resposta à, ou como complementação da, anterior, como se constituísse, para usar o termo de René Girard, "um longo argumento, do princípio ao fim". Essa descrição parece muito persuasiva, quando você a lê; então você tem a impressão de um desenvolvimento interno das potencialidades da Filosofia, que vai se atualizando à medida que cada filosofia traz dentro de si alguma brecha que dá margem ao antagonismo e, desse antagonismo, desenvolve-se a filosofia seguinte. Assim, para dar o exemplo de Vladimir Soloviov, quando começa a narrativa na Idade Média (ele não vai para a filosofia antiga), ele diz que na Idade Média surge o problema das relações entre a Teologia e a Filosofia -- portanto, entre a Fé e a Razão, para usar o termo popular. E ele diz que na medida que se começa a discutir isso então, evidentemente, só quem pode arbitrar essa briga é a própria razão. Então a razão já sai vencedora. Então, de certo modo, de dentro da escolástica surge já a proposta racionalista e mecanicista de Descartes, dentre outros e assim por diante. As filosofias vão surgindo umas de dentro das outras, como se estivesse partindo do elemento opositivo interno, que cada uma trazia. Esse é o método de Hegel e até hoje muita gente ensina filosofia assim, quer dizer, uma seqüência de doutrinas, que em princípio e aparentemente estão interessadas nos mesmos pontos e que vão discutindo aqueles pontos e emergindo umas de dentro das outras, por um processo dialético. Quando você lê isso, fica muito impressionado porque tem a impressão que está vendo o próprio desenvolvimento do espírito humano, ao longo dos tempos. Mais tarde, é claro que apareceram outros historiadores dizendo: "Não, não se pode fazer assim. Nós temos que levar em conta os fatores culturais e históricos, alheios à Filosofia, etc. Mas escrever a história das intrusões ou das modificações da Filosofia causadas exclusivamente por fatores externos, acho que ninguém fez. É justamente esse estudo que pode elucidar o problema descrito por Wolfgang Stegmüller, que é da confusão geral do panorama e da perda de uma identidade da própria Filosofia.

Acontece que as modificações não pararam aí. Elas continuaram a acontecer e sempre por fatores externos totalmente alheios a qualquer atividade filosófica. A primeira coisa que aconteceu foi que a nova intelectualidade extra-universitária, a intelectualidade palaciana, por assim dizer, que era inicialmente composta só por aristocratas, começou a crescer formidavelmente e ultrapassou os limites do círculo palaciano e ganhou a adesão de centenas de milhares de pessoas, que vinham da classe média, da burguesia, dos militares ou de qualquer outro lugar, que passaram a escrever coisas que alguma relação tinham com temas filosóficos. No século XVIII, a proliferação dessas pessoas foi um negócio absolutamente assombroso, de modo que se pode falar ainda de uma intelectualidade extra-universitária, mas não mais palaciana.

Isto, por sua vez, acontece por causa de dois fatores, que também não tem nada a ver com Filosofia: o primeiro é o progresso da imprensa. Vejam como a imprensa progrediu, a biblioteca pessoal de René Descartes tinha cem volumes apenas (devido ao preço e à dificuldade de acesso aos livros). Já no século seguinte, aquilo era uma indústria próspera, que se espalha por toda a Europa, então aparecem livros, jornais, panfletos, etc e, automaticamente, aparece toda uma nova classe de profissionais que vive disto, que seriam os antepassados dos nossos jornalistas. Então não há mais limites para a discussão filosófica ou pseudofilosófica.

A segunda causa que contribui para isso é aquilo que denominei de burocracia virtual. Acontece que quando os estados modernos formam-se eles têm necessidade de criar uma burocracia estatal para administrar o seu território. Essa burocracia, então, torna-se, para muitas pessoas, o único canal possível de ascensão social. Quer dizer, arrumar um emprego no Ministério do Tesouro ou Ministério da Justiça era a única maneira que um pé-rapado tinha para subir na vida. Claro que havia ainda os dois canais clássicos, que eram o Clero e o Exército, mas fora isso, havia muitas oportunidades na burocracia estatal. Para formar os funcionários dessa burocracia estatal, o governo cria escolas. Essas escolas treinam as pessoas. Então vem o garotinho do interior, filho de um camponês, para estudar na cidade e depois tentar arrumar um emprego na burocracia estatal. Acontece que há muito mais candidatos do que vagas. Então se espalha pela Europa uma multidão de frustrados da burocracia, que eu chamo de burocracia virtual. Caras cuja única chance na vida seria entrar para burocracia, mas não conseguem. Então vão se ajeitando em atividades menores, entre as quais, evidentemente, escrever livros, panfletos, tornar-se algum editor, escritor ou alguma coisa assim.

No século XVIII, o número dessas pessoas se multiplica formidavelmente, o que acelera um bocado o debate de idéias. No tempo de René Descartes, o essencial da circulação das idéias já não era o debate universitário, como nos tempos de São Tomás de Aquino, mas a troca de cartas, entre os sábios. Leibniz ou Descartes escreviam milhares de cartas. Então a correspondência era o meio de unificação do debate de idéias. [00:20] Já no século XVIII o debate perde essa característica quase privada e torna-se uma coisa pública, que todo mundo lê, todo mundo participa. Nas cortes, nos salões todo mundo discute idéias e criam-se essas grandes figuras de escritores altamente populares, que todo mundo lê, como Voltaire ou Diderot. Isso não existia antes. Se for ver o público de Voltaire comparado com o público de René Descartes é como comparar um país com um botequim - é uma desproporção enorme.

Evidentemente, isto também vai afetar o perfil da Filosofia, porque dessas pessoas que têm idéias e advogam pelos princípios do Iluminismo e da Revolução Francesa chamam-se "philosophe". São todos "philosophe". Então a Filosofia torna-se um debate público, que já não se distingue do que mais tarde iríamos chamar de ideologia. Isto também modifica e muito o perfil da Filosofia. Não podemos esquecer que mesmo as idéias de Isaac Newton só adquiriram popularidade na Europa através do livro de Voltaire, Elementos da Filosofia de Newton, que vendeu milhares de cópias. A explicação de Newton ninguém entendia, só matemáticos. Mas Voltaire trocou aquilo em miúdos e popularizou o negócio, de maneira que houve um primeiro momento do mecanicismo em que essa ciência é subscrita apenas por sábios. Mas houve uma segunda onda de mecanicismo, por causa do livro do Voltaire, que inverte o sentido do mecanicismo, já que esse tinha nascido como uma maneira de restaurar a filosofia cristã e exorcizar a onda ocultista. No século XVIII, o mecanicismo torna-se um argumento anticristão. Isso aconteceu quase um século depois do seu advento inicial. Da filosofia mecanicista, então, se deduz toda sorte de argumentos contra o Cristianismo, contra a existência de milagres, etc. Então, de algum modo, isso também faz parte, de algum modo, do debate filosófico. Mas se você perguntar: "Mas o que diria Sócrates, Platão e Aristóteles sobre isso aí?" Eles nem entenderiam do que estavam conversando. É uma coisa enormemente distante dos objetivos originários da Filosofia.

No século XIX, a coisa agrava-se ainda mais, porque após a Revolução Francesa ocorre a estruturação do estado burguês, portanto, do ensino burguês, e, evidentemente, a Filosofia torna-se um dos meios preferenciais para a formação dos jovens que deverão exercer funções no Estado, na nova república burguesa. [suprimido "então se organiza"] Por exemplo, na França, o ensino de filosofia nos ginásios é uma coisa de uma vastidão e de uma riqueza enormes. Mas a Filosofia já está totalmente estruturada como disciplina colegial. E ela já está profundamente infectada pela mentalidade mecanicista e cientificista, a esta altura. Então, por mais de 100 anos na França, a primeira disciplina que estudava era a psicologia experimental, depois estudava-se lógica, depois filosofia geral, que era uma mistura de tudo, e um pouco de ética. De qualquer modo, era um ensino bastante rico e bastante exigente. Isso por um lado.

Por outro lado, surge em resposta não à evolução filosófica, mas em resposta à Revolução Francesa, surge a escola positivista com Augusto Comte. É importante notar o que motiva essas pessoas é sempre a reação ao estado de coisas que está presente na sociedade e na cultura, e não alguma tomada de posição em função dos temas levantados por Sócrates, Platão e Aristóteles. Então, aí a Filosofia já tinha mudado de fisionomia completamente.

A escola positivista responde a um estado de coisas criado pela Revolução. A Revolução, segundo via Comte, havia feito uma série de conquistas, mas havia esvaziado a alma européia. Então era preciso infundir nas consciências um novo sentido da vida, uma nova esperança. Enfim, um novo sentido religioso. Ele cria, então, a escola positivista para isso: com o culto da humanidade, o culto dos grandes heróis do passado, o culto da nação, etc.

Logo em seguida surge, em 1848, o Manifesto Comunista, de Karl Marx, pelo qual a função da Filosofia já não é a de interpretar o mundo, mas a de transformá-lo. Então a Filosofia, que tinha sido uma serva da Teologia, torna-se serva da Revolução. A partir daí, toda a tradição marxista tem uma maneira de filosofar muito peculiar: a elaboração teórica e a prática revolucionária misturam-se de tal maneira ao ponto de se tornar inextricáveis. E é assim que chegamos ao século XX.

No século XX acontece então uma coisa extraordinária. Os progressos da ciência histórica e da Filologia, que começam na verdade no século XIX, condensam-se em uma profusão de pesquisas sobre a Antigüidade e, de repente, Sócrates, Platão e Aristóteles voltam à moda. Isso aconteceu só no século XX. Ou seja, o problema que estou tocando aqui - em que medida a evolução histórica do Ocidente é um desenvolvimento da idéia filosófica originária? Em que medida é uma amálgama de outras coisas completamente diferentes, que acabaram por desfigurar totalmente a fisionomia da Filosofia? - só aparece com plena consciência no século XX. Todo mundo sabe que esse problema existe. Estou dizendo que não houve um estudo específico sobre este ponto. Mas, de algum modo, todo mundo sabe que ao longo da história algo se perdeu e esse algo tem que ser encontrado em Sócrates, Platão e Aristóteles.

Ainda assim, a noção de que algo se perdeu aparece, no começo, de maneira muito deficiente. Por exemplo: quando nos anos 1870 o Papa Leão XIII publica a encíclica Aeterni Patris, ele fala de um retorno, mas é um retorno a Santo Tomás de Aquino. Passados uns 40 anos, Edmund Husserl também clama por um retorno, mas é um retorno a René Descartes. O verdadeiro retorno a Sócrates, Platão e Aristóteles acontece não propriamente dentro do debate filosófico, mas do debate histórico-filológico. Quer dizer, são as pesquisas históricas que vão escavando, cada vez mais, e notando esta espécie de ausência da filosofia grega ao longo de todo o desenvolvimento da filosofia ocidental.

De repente, a reinterpretação da filosofia de Aristóteles torna-se um tema urgente. Ou seja, muitos estudiosos perceberam que simplesmente eles não estavam entendendo Platão e Aristóteles. Então precisavam começar de novo. No começo do século XX aparece uma seqüência enorme de livros maravilhosos sobre a filosofia grega, dentre os quais há, evidentemente, o livro do Paul Friedländer sobre Platão, os dois livros do Werner Jaeger: Paidéia, A Formação do Homem Grego [localizado na internet um título diferente do citado] e o Ensaio sobre o desenvolvimento do pensamento de Aristóteles. E esses livros vão criando um novo debate no qual você vê que os rumos da Filosofia têm de ser decididos por uma reinterpretação da filosofia antiga. O mais radical desses empreendimentos vem, evidentemente, de Martin Heidegger, que diz ser preciso voltar até antes de Sócrates, Platão e Aristóteles, que é preciso voltar aos pré-socráticos. [00:30] Então, de repente aparece o sujeito e diz: "Pera aí, mas nós nunca entendemos os pré-socráticos. Nós não sabemos do que eles estavam falando!"

Foi justamente observando tudo isso que eu constatei a necessidade de estudar a Filosofia não pelo seu desenvolvimento interno ― que não houve, praticamente, durante mil e quinhentos anos ―, mas pelas intervenções externas que a modificaram. Uma espécie de "histórias das cascas" da Filosofia.

No entanto, durante todo esse período, têm vários elementos da filosofia antiga que se conservam. O primeiro é a estrutura do sistema das ciências, tal como Aristóteles a descreveu, que permanece mais ou menos inalterada. Todo o mundo ainda a tem como referência. Por exemplo: a distinção entre as ciências lógicas, as ciências naturais e as ciências humanas é de Aristóteles, e ela permanece.

Mas os temas que são discutidos nunca são aqueles de Sócrates, Platão e Aristóteles. E, sobretudo, a natureza da atividade filosófica que se desempenha ao longo de todo esse tempo, com todas as modificações, não é a de Sócrates, Platão e Aristóteles. Então, nós temos de perguntar: "qual era? O que Sócrates, Platão e Aristóteles estavam fazendo e que nunca se fez depois? ".

Em primeiro lugar, no próprio livro A crise da filosofia ocidental, o Vladimir Soloviov assinala que, diferentemente de todas as outras atividades cognitivas, a Filosofia é sempre uma coisa "pessoal", é sempre uma iniciativa "individual". Ele tem razão ao dizer isso, mas é claro que isso não basta. A Filosofia é, evidentemente, uma atividade "pessoal", mas ela não é uma atividade solitária. Ela se desenvolve ali com Sócrates na base do diálogo e da confrontação, e nessa confrontação, ele não buscava uma ciência universal, definitiva, sobre todas as coisas. Em nenhum momento Sócrates buscava isso. Quando ele diz: "só sei que nada sei", ele está, evidentemente, negando-se a formular uma doutrina definitiva sobre o que quer que seja.

O Eric Voegelin diz com muita razão que a Filosofia surge como um esforço de buscar um novo princípio de ordem. A ordem que regia a sociedade grega antes era a chamada "ordem cosmológica", isto é, a sociedade era uma imagem do cosmos. A ordem social refletia a ordem cósmica. Porém, chega um ponto em que as instituições baseadas nesse símbolo começam a falhar, a mostrar brechas, contradições; a fé das pessoas nesse esquema vai se desgastando. Então, o indivíduo se vê "solto" num mundo mais ou menos caótico, incompreensível. Então, ele começa a buscar um princípio de ordem dentro da sua própria alma. É isso que faz Sócrates.

O que faz Sócrates, em primeiro lugar, é dialogar consigo mesmo e buscar ser sincero e dizer as coisas como realmente está vendo. Claramente, isso não irá produzir nenhum modelo mágico de nova ordem, mas mostra que a alma humana surge, então, como um novo modelo de compreensão do cosmos. O filósofo busca a ordem na sua própria alma, articulando, como eu disse, "a unidade do conhecimento com a unidade da consciência", e ele conversa sobre isso com as pessoas, buscando não provar alguma tese, mas puxar de dentro desses ouvintes o testemunho da sua interioridade. O interesse de Sócrates não era formar uma doutrina inteiramente provada e apodíctica, ele não tem essa pretensão; mas ele aposta tudo no que se chamaria mais propriamente a "persuasão", não a persuasão retórica, que é baseada nas opiniões comuns, isto é, você raciocina a partir daquilo que a comunidade já pensa; a "persuasão" socrática é baseada no testemunho interior do ouvinte, ou seja, na confissão. Você tem de confessar que sabe o que sabe e que não sabe o que não sabe.

Quando Platão condensa isso nos diálogos socráticos, ele ainda está fazendo a mesma coisa. Portanto, nós podemos entender que o que vigorava na Academia Platônica ainda era o diálogo na base socrática. Nós sabemos que a Academia não tinha uma doutrina fixada e que haviam muitas idéias correndo ali dentro. E o próprio recurso que o Platão faz ao mito, quando ele tenta explicar as realidades supremas que são quase indizíveis, mostra que não havia a menor presunção de se chegar a uma prova definitiva de coisíssima nenhuma.

Aristóteles aperfeiçoa a ciência da Lógica, mas na maior parte dos assuntos em que ele toca, ele usa antes o método dialético, que é o método dialogal e de confrontação de hipóteses, e ele reconhece que para a maior parte dos problemas filosóficos não há uma solução definitiva, mas apenas uma solução de razoabilidade.

Então, essa idéia da sinceridade, da razoabilidade, da confissão e, portanto, do aprimoramento da consciência individual: este é o ponto de todo o esforço filosófico grego.

Em todos os contextos sociais seguintes, esse problema simplesmente não existe. A Filosofia se torna uma atividade profissional, que se destina a sustentar uma doutrina que pretende ser definitiva. Inclusive, os grandes sistemas filosóficos do racionalismo clássico, como os de Descartes, Spinoza, Leibniz, todos eles vêm com a presunção de ser universalmente explicativos, de ser, como se diria hoje, "a teoria final" ― atualmente, quer se atingir a síntese entre a relatividade e a teoria quântica e dar a explicação geral de tudo.

Isso escapa formidavelmente das pretensões da filosofia grega. É natural que essa pretensão tenha aparecido a partir da revelação cristã porque esta vem com a chancela da palavra de Deus. Só que a palavra de Deus não é uma doutrina, mas sim uma série de acontecimentos que o próprio Deus faz acontecer e que têm de ser interpretados e, às vezes, não é fácil interpretá-los, porque eles conservam/apresentam um coeficiente de mistério enorme. Ao mesmo tempo em que existe um esforço para formalizar e estruturar a doutrina cristã, existe, por outro lado, nos depoimentos, dentre os vários cristãos, daquelas pessoas que realmente conheceram Deus, o reconhecimento de que se trata de uma experiência indizível. A coisa transcende de tal maneira ― porque quando se fala do processo de santificação e divinização do homem, eles insistem que isto não é uma figura de linguagem e sim uma transformação ontológica ― que eles não conseguem dizer mais nada a respeito.

Esse contraste entre a vontade de dizer tudo e a impossibilidade de dizer o que quer que seja marca todo o pensamento cristão com esse eterno conflito entre o teólogo e o místico. Existe um belíssimo artigo do Ortega y Gasset ― com o qual eu não concordo, mas que está muito bonito ― chamado "A defesa do teólogo frente ao místico". Nele, ele retoma o argumento de Hegel, que diz que "aquele que, numa discussão, apela à autoridade do seu guru interior, do seu mestre interior, é um inimigo da humanidade", isto é, "eu falei com Deus, Deus me disse assim e assim, mas eu não posso explicar". Esse é o argumento de um filósofo moderno, bem racionalista, contra os místicos. Mas o fato é o seguinte: o número de depoimentos dos místicos, associado ao fenômeno dos milagres cristãos, nos mostra que existe aí um mistério real, que não tem como negar.

Mas imaginem a distância que poderia haver entre as discussões escolares, universitárias, [0:40] entre os mestres, cada um usando o melhor da lógica de Aristóteles ― já bastante aprimorada ― para provar as suas teses; e o conhecimento experimental de Deus que essas mesmas pessoas tinham, o que se expressa claramente nas palavras finais de Santo Tomás de Aquino, que disse: "perto do que Deus me mostrou agora, tudo o que escrevi não é nada". É o tal negócio: quanto mais você tenta se explicar, mais a coisa fica inexplicável. Na medida em que ela é inexplicável, ela não faz parte mais do universo das idéias e doutrinas, mas faz parte do universo da realidade mesma. Nós podemos discutir doutrinas, eu posso impor minha doutrina sobre a sua, mostrar a superioridade da minha sobre a sua, mas o controle sobre a realidade da experiência nós não temos. Ela vem do jeito que ela quer e passa por cima de nós como um trator. Vejam a que distância isso estava da modéstia do esforço grego, que é simplesmente a busca de uma sinceridade e não de uma doutrina definitiva ― nem natural, nem revelada ―, mas a busca, simplesmente, de uma ordem na alma.

O fato é que, ao longo do tempo, à medida mesma em que se aprimorava a doutrina da Igreja e junto com ela a própria filosofia escolástica, os místicos vão perdendo cada vez mais a voz no cenário público. O século XVIII, por exemplo, é o século em que Santo Afonso de Ligório publica a sua majestosa teologia moral. São oito volumes enormes, tudo está sistematizado e arrumadinho. Nesta mesma época havia a negação geral do milagre. E isto está a[42:31] uma distância formidável da iniciativa e da atividade de Sócrates, Platão e Aristóteles.

Quando eu defino a Filosofia "como a unidade do conhecimento na unidade da consciência", estou apenas complementando a idéia do Voegelin da busca da ordem. É verdade, eles estão buscando a ordem na alma para fazer desta um espelho no qual a ordem da sociedade e do cosmos apareça de uma maneira mais clara ― na medida do possível, que é bastante limitado. É isso que eles estão fazendo. Mas como eles fazem isso? Qual é o processo concreto pelo qual eles fazem isso? Esse processo se torna mais claro do que nunca na própria obra de Aristóteles, onde todas as questões filosóficas que ele coloca partem da discórdia reinante. Ele diz: "começamos por coletar as opiniões dos sábios". Acontece que os sábios discordam uns dos outros. Então, a massa dessa confusão é a matéria-prima com que o filósofo tentará reencontrar um princípio de ordem na sua própria alma para poder daí projetar essa ordem sobre essa confusão. Claro que isto é um empreendimento limitado: você vai só até certo ponto e pára, mesmo porque depois que você morre a confusão continua. Os sábios continuam dando opiniões e elas continuam divergindo. Portanto, não há uma doutrina definitiva com a qual nós possamos "fechar negócio", embora haja, como diz o Mário Ferreira dos Santos, "uma série de pontos conquistados", que no começo deste curso eu chamei de "patamares". São questões filosóficas que foram realmente resolvidas e que não precisa voltar a elas. Mas, para cada questão resolvida, aparecem outros milhares.

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Aluno: Se há uma necessidade de resgatar Sócrates, Platão e Aristóteles para recuperar a própria Filosofia, a aplicação ao estudo destes três filósofos, num primeiro momento, não poderia ser uma alternativa à sua recomendação de estudar a Filosofia a partir de temas, e não a partir de autores, desde que é claro que o estudo de Sócrates, Platão e Aristóteles seja simultaneamente o estudo da realidade mesma.

Olavo: Olha, sim e não. O estudo de quaisquer autores antigos vai colocar para você uma série de problemas de ordem filológica, de compreensão do texto. Para isso, você vai precisar da ajuda dos intérpretes modernos de Sócrates, Platão e Aristóteles. Aquela história do Mortimer Adler de você pegar o texto e entregar para o sujeito ler como se tivesse acabado de ser publicado funciona para as finalidades do Mortimer Adler, que era simplesmente formar um cidadão consciente, etc., etc. As nossas finalidades são um pouco diferentes e se nós não temos consciência do hiato histórico que existe entre nós e o autor, e de toda a dificuldade de interpretação que surge aí, por causa das referências à coisas da época e etc, daí nós não vamos entender nada mesmo. A idéia de estudar primeiro Sócrates, Platão e Aristóteles vai acabar não funcionando, mas estudá-los é uma coisa que você vai fazer durante toda a sua vida. Você nunca vai largar, você sempre vai voltar a eles.

Aluno: Certa vez, eu ouvi o senhor falando sobre a noção de progresso na sociedade e fiquei com uma dúvida: se existe ou não progresso numa sociedade, e o que seria o progresso?

Olavo: O progresso, de modo geral, significa "melhorar alguma coisa". Mas melhorar em função do quê? Em geral, toda a noção de progresso que circula pelos debates públicos é baseada na idéia absolutamente insensata de que a história humana toda caminha para uma finalidade de perfeição máxima, isto é, teremos um dia uma sociedade onde todos os problemas estarão resolvidos, onde ninguém sofrerá, onde ninguém será ofendido, onde ninguém vai estar triste. Essa idéia é de uma estupidez tão monumental, que ela só pode entrar mesmo com uma espécie de pressuposto oculto, porque se você declara, todo mundo vê que é bobagem, mas raciocinar com base num pressuposto oculto e imbecil, todo mundo pode sem ser desmascarado na primeira. O pessoal continua raciocinando assim. Em função disso, as sociedades são medidas pelo lugar que, supostamente, elas ocupam no trajeto em direção a essa finalidade. Mas, primeiro, ninguém provou que essa finalidade existe, que ela é factível, e também ninguém resolve o problema seguinte, isto é, se a sociedade chegasse a um estado de absoluta perfeição, o que seria de todos aqueles que morreram antes? Aí seria como diziam os juristas romanos: "a suma justiça seria a suma injustiça", isto é, todos aqueles que foram excluídos não tiveram nada para que nós pudéssemos ter tudo. Seria a injustiça consolidada.

Então, é o seguinte: a injustiça, o mal, o sofrimento, tudo isso faz parte da estrutura da vida humana e nunca vai acabar. Nunca, nunca e nunca, em hipótese alguma. O sujeito precisa ser muito burro, muito teimoso, para achar que não, achar que vai haver um estado melhor. Então, todo progresso é, evidentemente, relativo a um estado anterior e ao estado seguinte alcançável, mensurável. Mas sempre será muito limitado. Essa ideologia do progresso é na verdade uma metafísica terrestre, que transforma o futuro numa espécie de apocalipse. Em vez do Juízo Final após o término do Cosmos, nós teremos um capítulo final da História que será o reino da justiça eterna. Para usar o termo do Eric Voegelin, é a "imanentização da escatologia", isto é, o fim do mundo torna-se mais um capítulo da história do mundo. É um raciocínio inteiramente absurdo.

Isso não quer dizer que não possa haver melhoras nisto e naquilo numa sociedade, mas mesmo essas melhoras sempre terão algum custo. Quando você tem uma sociedade na qual as pessoas alcançaram um alto nível de satisfação das suas necessidades materiais, o que acontece? A primeira geração fica muito contente: "nós nascemos pobre e agora estamos melhorzinhos, temos um carro, uma casa, etc., etc.". Mas a geração seguinte já nasce com tudo isso na mão e para ela isso não significa absolutamente nada e ela começa a achar que tudo isso é um direito. Então, começa a ficar insatisfeita e a desenvolver uma espécie de culto do "eu", "eu tenho direito a isto, a mais aquilo e mais aquilo".

Então você cria uma horda de pessoas da mais baixa [0:50] qualidade, justamente em função da qualidade da sociedade. Sempre tem essa tensão.

A minha experiência me diz que regimes piores criam pessoas melhores e os regimes melhores criam pessoas piores. Nem sempre é assim evidentemente, mas pode ser. Por isso é que eu não acredito que pobreza cria criminalidade. Se pobreza criasse a criminalidade, a Humanidade seria constituída de criminosos desde o primeiro dia, porque ela nasceu pobre. Se você imaginar qualquer comunidade primitiva, sem recursos tecnológicos, essa comunidade está, literalmente, num mato sem cachorro.

Você pega, por exemplo, os índios do Alto do Xingu: a alimentação não é um problema, porque o peixe é abundante e a mandioca é abundante. Pronto! O sujeito vive comendo peixe e mandioca a vida inteira; ele nunca vai sentir falta do Mc Donald ou querer ir no La Tour d'Argent. Ele não tem esse problema. Mas tem coisas que são escassas: por exemplo, a possibilidade de defesa contra os animais ferozes. A defesa deles é incipiente, é elementar; uma onça come um índio na maior facilidade. E é por isso que o falecido Orlando Villas Bôas dizia: "Vocês pensam que índio gosta de mato? Eles odeiam mato e não saem da taba de jeito nenhum. Só quem é profissional, com muitos anos de treinamento, sai; os índios ficam ali na taba morrendo de medo do que está em volta".

Então é uma vida muito arriscada, perigosa e que corresponde literalmente à pobreza; você tem apenas meios de subsistência. É muito fácil você estar em Nova York, em um hotel cinco estrelas, idealizando a vida do primitivo: "Que maravilha eles estavam integrados na natureza". Estavam integrados coisa nenhuma! Estavam Fugindo da natureza. O Wilhelm Worringer, no livro A Essência do Estilo Gótico, mostra isso, que todas as culturas mais primitivas desenvolvem uma arte de tipo geométrico, abstrato. Como que volta as costas à natureza e só quer pensar em formas ideais. É só mais tarde, quando a cultura já está mais avançada, que surge o naturalismo. Então o homem dentro da cidade, protegido, começa a achar que a natureza é linda e começa então a desenhar florestas, bichinhos, etc., mas de longe; enquanto ele estava lá só queria pensar em quadrado, triângulo, coisas que estão no mundo platônico.

A pobreza é o estado natural do ser humano; ao longo dos tempos isso foi assim. E as tentativas de eliminar a pobreza têm como efeito a criminalidade, a violência, as drogas, etc. Então, vamos parar de buscar um estado confortável neste mundo, que não existe; isto aqui é ruim, esse lugar é ruim. O universo é hostil e a humanidade é inviável. E nós fomos feitos para viver na imortalidade; esta é a nossa escala. A hora que você percebe a imortalidade, tudo para você muda de tamanho. E inclusive o problema do progresso: você percebe o quanto é ridícula, o quanto é patética, esta busca do progresso.

Na mesma pergunta ele pede alguns livros sobre a Revolução Francesa, os movimentos que deram origem. Bom, acho que a primeira coisa que você tem de ler é esse aqui: Le Livre Noir de La Révolution Française (O Livro Negro da Revolução Francesa): ele reúne uns vinte historiadores, mostrando que a coisa não foi o que se diz nas escolas ou o que a mente popular diz. Eu acho que esse é o começo de tudo. Você pode também ler todos os livros do Jean Sévilla; muitos deles abordam isso. E esse livrinho aqui do Jean Dumont, que é uma maravilha: La Révolution Française ou Les Prodiges du Sacrilège (A Revolução Francesa ou Os Prodígios do Sacrilégio). Este é um livro de combate e eu estou propositadamente indicando livros que são hostis à Revolução, porque a propaganda está por toda parte e nós precisamos de uma substância de contraste.

Aluno: O senhor pode me explicar encarecidamente o que significa desinformação?

Olavo: Bom, eu já expliquei isso muitas vezes, mas não custa resumir. Ao longo da história você vê que em todas as guerras e na alta política sempre houve um uso, uma utilização, da mentira, do engodo. Isso foi sempre assim. Porém no século XX, na União Soviética, os caras inventaram um processo mais requintado disso aí. Você simplesmente espalhar mentiras para enganar o inimigo, você pode ser desmascarado na primeira. Então, o truque é você usar o próprio inimigo como fonte da informação que vai enganá-lo. Uma informação falsa e que pode ser prejudicial a um governo --- seja prejudicial a sua imagem, seja, pior ainda, prejudicial a sua estratégia (porque vai orientá-lo a tomar atitudes suicidas): isso aí funciona muito melhor se a fonte for de confiança da vítima. Não é a mesma coisa você ouvir uma notícia na rádio de Moscou e lê-la no The New York Times; no primeiro, nós temos uma credibilidade baixa, e, no segundo, uma credibilidade altíssima.

Então a desinformação é feita, sobretudo, através da infiltração de (o que se convencionou chamar de) agentes de influência: são pessoas que não são militantes comunistas, às vezes não são nem membros do partido, são agentes profissionais. No Brasil está cheio disso e agora já tem a listinha da KGB, publicada pelo Mauro Abranches. Está lá o nome dos fulanos. São pessoas que não são militantes comunistas, não estão comprometidos com a política comunista, mas que, nos momentos decisivos, divulgam ali a informação que interessa ao criador dessa desinformação, que, no caso, seria o governo soviético.

Aluno: Como os filósofos cristãos, em suas investigações, articulam os impactos das práticas religiosas, orações, sacramentos, dons sobrenaturais, etc., as quais ressoam no mundo sutil espiritual, com as transformações e construção do mundo objetivo. Como o filósofo percebe essas influências no curso da história e na psique, no caráter dos seus agentes?

Olavo: Quando Cristo diz que não entrareis no reino dos céus se não ficares como as criancinhas, o que quer dizer as criancinhas? As criancinhas é o estado do fiel principiante que é conduzido pelo Espírito Santo sem perceber e sem saber. Então tudo que o fiel tem de fazer é isso aqui: ele vai lá reza, se submete aos sacramentos e ele está sendo conduzido para a sua finalidade sobrenatural sem perceber.

Então eu, pessoalmente, entrei no estado de criancinha há muitos anos e nunca saí, porque eu peço a Deus que me guie sem que eu perceba, porque se eu perceber vou interferir e vou estragar tudo. Este é o primeiro estágio. Se você está neste primeiro estágio, sabe que existe uma força divina agindo em cima de você, mas você não tem a menor idéia de como ela está fazendo isso e, evidentemente, você começa a fazer perguntas e se confunde todo, mas esta ação continua. Esta ação divina é um fator objetivo: ela é mais objetiva do que todo este mundo físico que nos rodeia, ela é a realidade das realidades. E toda a nossa imagem do mundo físico não passa de um aglomerado de observações mais ou menos sistematizadas, que nós fomos fazendo ao longo dos séculos, e que não compõe, nem de longe, uma imagem completa e correta do mundo físico; quanto mais da realidade como um todo.

Então o que nós chamamos de realidade objetiva... A única realidade objetiva mesmo é o próprio Deus; o resto é tudo mais ou menos subjetivo, porque depende da nossa observação. A ação divina nos transcende: ela é incondicionada; nada a condiciona, nada a limita e nada a dirige. Por isso mesmo que ela tem de ser o parâmetro na nossa noção de objetividade. A idéia de chegar a uma imagem do mundo abrangente, correta e omniexplicativa, é outra loucura --- nós nunca vamos chegar a isso; seria o conhecimento absoluto universal dentro de uma cabeça subjetiva, mortal, relativa e parcial. Não é possível uma coisa dessa. Todo o conhecimento que nós vamos ter será sempre relativo e parcial, porque nós somos relativos e parciais na nossa modalidade de existência, que é contingente: nós não somos uma necessidade cósmica; Deus não me consultou para criar o mundo; eu não estava lá para dar um palpite: "Ó, tem de ser assim, tem de ser assado". Eu só existo por uma graça divina e é absolutamente inexplicável --- eu mesmo não entendo e você também não entende. Então isto quer dizer que cada um é para si mesmo um mistério e será sempre. Agora, algum conhecimento nós precisamos ter e é daí mesmo que surge essa tensão, porque. Essa pergunta, aliás, funde com uma outra...

Aluno: É correto dizer que a Filosofia, na perspectiva dos fundadores, é fundamentalmente o grande esforço pedagógico, cujo objetivo é formar spoudaios*, ou seja, o homem maduro. E, se se trata de um esforço pedagógico, qual a relação disso com as doutrinas (por exemplo, o que Aristóteles deixa na física ou na retórica)? São apenas instrumentos pedagógicos, ou podem ser vistas como conquista cognitiva de uma consciência amadora, ou são as duas coisas?*

Olavo: Não só são as duas coisas, como é a tensão entre essas duas coisas, e esta tensão é insolúvel; não é possível dizer: "Aqui eu vou desenvolver o meu conhecimento e aqui eu vou desenvolver a minha consciência". Não dá para fazer essas duas coisas. Você não chega jamais a ter o domínio completo da sua consciência, assim como você não chega a ter o conhecimento universalmente explicativo. Mas algum conhecimento você tem de ter, enquanto está nesta vida. E, evidentemente, se esse conhecimento for totalmente fragmentário ou caótico, ele não é conhecimento de maneira alguma; você tem de unificá-lo, mas você não tem outro padrão de unificação se não a sua própria busca da unificação.

A sua busca da consciência, a sua busca pelo conhecimento, é o padrão unificante; é o único que você tem e o único que você sempre terá. Por isso não faz sentido alguém perguntar: "Estes ensinamentos de Aristóteles tinham somente o objetivo pedagógico ou tinha o objetivo cientifico? ". As duas coisas são absolutamente inseparáveis. Por isso eu considero ao mesmo tempo um acerto e um erro, quando Jean Piaget diz: "Somente as ciências nos dão conhecimento: a filosofia nos dá somente um senso de orientação". Sim, mas se eu não estou orientado quanto ao meu conhecimento, como é que eu posso saber que ele é um conhecimento? Então, a busca de orientação é inerente à busca do conhecimento e vice-versa.

É preciso ver que toda essa participação na vida religiosa não é a aquisição de uma doutrina, não é a aquisição de um conhecimento, mas é um confronto com uma realidade. É como você levar uma martelada no dedo: isso não é uma teoria, é uma coisa que aconteceu; você compreenda ou não ela está ali e, como ela está ali, é como diz Santo Tomás de Aquino: "Contra fatos não há argumentos". Nós estamos no meio dos fatos; mesmo que não os compreendamos, a primeira coisa é aceitá-los, ou seja, você ter essa resignação, essa doçura, perante a realidade dos fatos.

O conjunto da experiência cristã é um conjunto de fatos, embora ele possa ter chegado a você por meio de uma doutrina, de uma pregação. Mas o que importa não é o "o que" a doutrina está falando, é o "de que" ela está falando e este "de que", que é o próprio Deus, a presença da ação divina no mundo, vai chegar para você mais dia menos dia. Ela já está chegando, mas você está no estado de criancinha: você é conduzido sem perceber, mas um dia alguma coisa você vai perceber do que está lhe acontecendo - e o que está lhe acontecendo são os sinais da sua vida imortal já nesta vida.

Não se pode esquecer o seguinte: se existe uma única alma imortal, ela dura mais do que a história do mundo inteira. Pára para pensar: nós estamos aqui pensando na História, no sentido da História, no progresso, etc. Meu filho tudo isso faz puf, e você continua durando. Quem se preocupa com essas coisas está vendo as coisas em uma escala errada. Dá impressão de que a História é uma coisa imensa, porque está cheia de gente e acontece muitas coisas, mas a História é finita e a existência da alma não é, ela é ilimitada. Então isso quer dizer que a história humana inteira, do ponto de vista da alma imortal, é uma piscada de olhos, não é nada mais do que isso. A verdadeira vida é a vida da imortalidade; todos nós iremos ver isso mais dia ou menos dia. É o que dizia a doutora Elisabeth Kübler Ross: "Eu não estou preocupada em convencer você da imortalidade: você vai ter de passar por isso mesmo, você se vira meu filho; se você quer acreditar, acredite, e, se não, não acredite, vai dar na mesma.

Um rapaz diz que me mandou um texto sobre o capitalismo e pergunta o que eu achei, mas eu não recebi o texto. Então, envie de novo para a próxima aula!

Aluno: Professor, li um texto de Husserl, intitulado A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, que muito me espantou pela sua conclusão geral. Eis como o próprio Husserl sintetiza suas idéias ao final desse texto:

"Sintetizemos a idéia fundamental da nossa exposição. A crise da existência européia, tão discutida atualmente e atestada em inúmeros sintomas de desintegração da vida, não é um destino obscuro, não é uma fatalidade impenetrável, mas se torna compreensível e penetrável ao olhar sob o fundo da teleologia, ou seja, finalidade, da história européia que a filosofia é capaz de pôr a descoberto. Mas esta compreensão depende de previamente se apreender o fenômeno Europa em seu núcleo essencial. Para poder entender a anormalidade da crise atual, foi necessário elaborar o conceito de Europa com uma teleologia (finalidade) histórica de fins de razão infinitos: foi necessário mostrar como o mundo europeu nasceu das idéias da razão, isto é, do espírito da Filosofia. A crise então pode ser esclarecida como fracasso aparente do racionalismo. O motivo do fracasso de uma cultura racional não se encontra, como eu já disse, na essência do próprio racionalismo, mas só em sua alienação, no fato da sua absorção dentro do naturalismo e do objetivismo. A crise da existência européia só tem duas saídas: ou o ocaso da Europa num distanciamento do seu próprio sentido racional da vida, um afundamento de numa hostilidade ao espírito e na barbárie, ou o renascimento da Europa a partir do espírito da Filosofia, mediante o heroísmo da razão que triunfe definitivamente sobre o naturalismo. O maior perigo que ameaça a Europa é o cansaço. Lutemos contra esse maior perigo, como bons europeus, com aquela valentia que não se rende ante uma luta infinita. Então ressuscitará do incêndio destruidor da incredulidade, do fogo no qual se consome toda esperança da missão humana do Ocidente, das cinzas do enorme cansaço, a Fênix de uma nova interioridade de vida e uma nova espiritualidade como uma garantia de um futuro humano grande e duradouro, pois unicamente o espírito é imortal".

Olavo: Muito bem, aqui ele está dizendo duas coisas: primeiro: o fundamento da civilização européia é a razão, ou seja, o espírito da Filosofia. Segundo: a Europa, em especial, é ela que encarna isso perante o resto da humanidade. Eu acho que, até certo ponto, essas duas teses são aceitáveis com uma pequena ressalva: o que caracteriza propriamente o espírito da Filosofia, tal como aparece em Sócrates, Platão e Aristóteles, não é aquilo que mais tarde veio a chamar-se razão, mas é, justamente, a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa.

Se você entende a razão com este sentido, essa articulação tensional entre parte e todo, então Husserl tem razão. Agora, se você entender a razão como a estruturação da Filosofia, como doutrina inteiramente lógica, como um longo argumento do princípio ao fim, então não dá, porque isso já fracassou várias vezes e vai fracassar sempre. Não vai haver o argumento perfeito --- a prova de Gödel já acabou com isso: no fim das contas, não vamos ter a prova definitiva de nada. Mas nós podemos ter a persuasão suficiente para os fins da nossa vida, para a nossa orientação na vida. E isto aí vale tanto para a Filosofia, quanto para as ciências. Se as pessoas dizem que a ciência é uma atividade permanentemente autocrítica, que está sempre se corrigindo, então é estupidez você querer encontrar uma doutrina científica que vai resolver todos os problemas de uma vez para sempre. A ciência sempre vai entrar de novo, e de novo, e de novo em crise, tanto a ciência quanto a Filosofia - não tem solução. Mais certo seria dizer que o que caracteriza a civilização européia é esta busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Não propriamente a razão, porque se você disser a razão, então você tem um compromisso com o racionalismo de Descartes, Leibniz, etc., e isso pode não dar muito certo.

Bom, eu acho que por hoje é só. Eu queria lembrar vocês do curso Como Tornar-se um Leitor Inteligente, que começará no [1:10] dia 28 de abril e irá até 3 de maio aqui em Colonial Heigths. As informações estão todas no meu site (www.olavodecarvalho.org). Obrigado a todos e até a semana que vem.

Transcrição: Wilson Garcia Carvalho, Miguel Muniz Forlin e Charles Santos.

Revisão: Eduardo Chaves Bueno