Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 237
1º de fevereiro de 2014
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Antes de tudo eu gostaria de anunciar a vocês que recebemos aqui um aviso de um dos nossos alunos, Marco Veloso, informando que um colega de vocês, aluno do COF, foi ameaçado de morte por um professor da Universidade Federal de Goiás, mas nós não temos mais detalhes. Marco, você pode aproveitar a segunda parte da aula dedicada a perguntas para nos mandar mais detalhes sobre isso: qual o nome do aluno, qual é o nome do professor, qual é o motivo desta ameaça e o que nós podemos fazer para ajudar.
Nesta aula eu queria continuar o tema da gnosiologia, mas alguns acontecimentos durante a semana me inclinam a voltar um pouco ao tema da Escola de Frankfurt, porque apareceu um artigo num site chamado Pragmatismo Político --- que na verdade é comunismo político, não tem nada a ver com pragmatismo, nem sei por que adotaram este nome --- em que um indivíduo estranhamente dizia duas coisas que me pareceram importantes e dignas de alguma discussão porque refletem confusões que qualquer desse pessoal da esquerda militante podem fazer a qualquer momento.
O primeiro é que ele dizia que, por incrível que pareça, Olavo de Carvalho enxergou marxismo cultural em George Soros; e em segundo lugar ele dizia que a idéia de que há um conluio, uma aliança entre o grande capital e os movimentos de esquerda é uma idéia que foi posta em circulação por Hitler, o que não é exato. Muita gente antes dele já falava disso e continuaram falando depois. Essa segunda parte não tem muita importância, o importante é a questão do marxismo cultural.
Vamos esclarecer desde logo: até hoje ninguém sabe qual é a ideologia do senhor George Soros e qual é exatamente o alvo que ele está visando com todos os seus empreendimentos. Esta é uma questão muito confusa, mas uma coisa eu garanto: marxismo cultural não é, e eu nunca disse que fosse e nem poderia ter dito.
Se perguntamos como um individuo pode fazer essa confusão, temos de nos remontar à própria questão da ideologia. Que é uma ideologia? Ideologia começa sendo definida por Karl Marx --- não foi Karl Marx que colocou a palavra em circulação, foi Napoleão Bonaparte, que falava com desprezo dos ideologues, pessoas que defendiam propostas políticas de uma maneira aparentemente coerente, mas sempre baseados num grupo ativista, numa corrente que não era só de idéias, mas que visava de algum modo alcançar o poder e que raciocinava em função, então, dos objetivos deste grupo.
Karl Marx definia ideologia como um vestido de idéias em torno de uma ação concreta visando objetivos muito materiais, muito precisos e em função de um interesse de classe determinado. Até hoje a palavra é usada mais ou menos com este sentido, mas freqüentemente nas discussões públicas ela aparece como tradução direta de objetivos reais e como definição de uma corrente política, o que é uma coisa bastante inexata. Por exemplo, as pessoas perguntam: "você acha que Lula é comunista?" Minha pergunta é: "o que é um sujeito ser comunista? Em que consiste exatamente isso?" Você está supondo que o comunismo é uma fórmula de sociedade perfeitamente definida à qual você pode aderir ou não, como você adere, por exemplo, ao credo católico. Você tem lá os elementos do credo: "Creio nisto e mais aquilo etc.", o sujeito acredita naquilo e, portanto, vai agir em conseqüência, de maneira logicamente coerente com aquilo.
E é claro que essa visão é extremamente ingênua. Em primeiro lugar, porque não existe uma ideologia comunista, mas muitas diferentes. Existe a versão leninista originária, existe a versão stalinista, maoísta, trotskista, etc. É preciso ver a qual destas o sujeito aderiu e é evidente que nas suas discussões internas os comunistas se acusam uns aos outros de ser direitistas, de ser fascistas, etc. o que mela um bocado o ambiente e introduz um coeficiente de confusão quase alucinante. Isso quer dizer que perguntar se um sujeito é comunista ou não só leva você a confusões porque você está supondo que existe uma equivalência entre uma crença interna e a seqüência de ações que o indivíduo desenvolve. Mas, em primeiro lugar, se nós encostássemos um personagem como Lula ou Dilma na parede e pedíssemos para ele expor qual é a ideologia marxista, ele não saberia fazer isto. Ele não tem conhecimento e nem integração de consciência, de atenção para poder fazer uma coisa dessas. Portanto, o que ele nos daria seria uma série de imagens relativamente confusas. Quando Lula nos diz: "não sabemos que tipo de socialismo queremos", isso é uma coisa perfeitamente verdadeira. Eles não sabem exatamente onde estão indo.
A única coisa que eles têm certeza é que o grupo deles que têm de permanecer no poder e dirigir o processo. O que esse grupo vai fazer é uma coisa tão indefinida que pode passar desde a idéia de um governo de transição, ou seja, de um governo de acordos como o próprio Lula disse logo depois da sua primeira eleição. Ele deu uma entrevista a La Nación dizendo que em função das circunstâncias ele tinha sido obrigado a fazer alianças com setores social-democratas e até direitistas, mas que isso seria mais tarde jogado fora. O fato é que isso não foi jogado fora até agora; está muito difícil jogar fora.
Então, se vocês me perguntarem se Lula tinha realmente a intenção de transcender estas alianças e implantar no país um socialismo, eu responderia que não sei, e Lula também não sabe, porque simplesmente ele não sabe quanto tempo vai durar, ele não sabe quanto tempo vai ter em suas mãos os meios de ação para isso. O que é certo é que o indivíduo sabe o que está fazendo no momento, e a visão que ele possa ter do desenvolvimento posterior dos acontecimentos é geralmente nebulosa e contêm um coeficiente de flexibilidade quase alucinante. Quer dizer, o governo pode fazer praticamente qualquer coisa e justificá-la em função ou de um hipotético objetivo futuro, ou das contingências do momento; de modo que, tentar definir os grupos políticos em função dos seus rótulos ideológicos é uma coisa que sempre falha.
A coisa mais ingênua, mais burra que você pode fazer é dizer: "existe aqui o grupo comunista, esquerdista, estatista; e aqui você tem o grupo liberal, conservador, cristão, etc."; porque cada um desses grupos é tão confuso internamente que você tem combinações como, por exemplo, os libertarians, que por motivos doutrinários --- em que para eles a liberdade do indivíduo é tudo --- podem apoiar políticas como a liberação de drogas, que é o item número um no programa das FARC no momento. Então você vê um monte de liberais, direitistas, anticomunistas lutando por um objetivo que é talvez o principal do movimento comunista na América Latina no momento.
Você vê como estas definições ideológicas não nos ajudam de maneira alguma a responder à pergunta fundamental da ciência política, isto é: quem está lutando pelo que, com que meios, por qual percurso? Em outras palavras, qual é o problema, qual é o panorama real de disputa pelo poder? É este o problema fundamental da filosofia política.
Quando Bertrand Russel disse que o conceito fundamental da filosofia política é o conceito de poder, ele estava montado na razão. Depois, quando tenta descrever os tipos de poder ele se mela todo, mas o conceito fundamental ele acertou. Ele diz que o conceito de poder nas ciências sociais é tão importante quanto o conceito de energia na física. [00:10] Energia ninguém sabe exatamente o que é e poder também não é uma noção das mais claras.
Eu fiz o que podia para esclarecer isso, não fui o primeiro que tratou do assunto, mas uma coisa bastante óbvia é que o poder é uma possibilidade concreta de ação. Possibilidade abstrata todo mundo tem. Se disser: "olha, eu quero ser Papa"; bom, até eu, teoricamente, como todo mundo pode ser Papa algum dia. Mas quando eu digo possibilidade concreta, isso quer dizer que o indivíduo já tem de algum modo os meios de ação necessários para perfazer aquela ação e alcançar aquele objetivo. Esta possibilidade concreta é a de uma ação cujos instrumentos, de algum modo, já estão na mão do sujeito e só falta ele acionar aquilo, de algum modo, sem contar que outro possa ter outros planos e ter outros meios de ação que possam neutralizar, deter, ou frustrar esta última. Mas o poder, de qualquer modo, podemos defini-lo como a possibilidade concreta de ação.
Isso aí se aplica a toda e qualquer ação humana. Por exemplo, você tem o poder de se levantar dessa cadeira e sair andando; o paralítico não tem, e assim por diante. Se você é mais forte, você tem a possibilidade de ação concreta de bater no mais fraco e ele não tem possibilidade de bater em você. Se você é mais rico, você tem a possibilidade de subornar o adversário e ele não pode suborná-lo de volta. Tudo isso são meios de ação.
Quando nós falamos de uma ação, ou de um poder político, nós estamos nos referindo a meios de ação que consistem em levar os outros a fazer o que o agente quer, de alguma maneira, de tal modo que esses outros ajam sobre a sociedade toda. Então há um agente primeiro, que tem os meios de ação; há uma rede de agentes secundários, que são os seus instrumentos; e, por fim, há a sociedade inteira, que é o objeto sobre o qual esta ação vai incidir. Se o problema fundamental é saber: quem tem o poder, quem está disputando o poder, quais os meios de ação que estão usando e qual o percurso a seguir; então é a coisa mais evidente do mundo que não dá para responder isso nos termos da ideologia.
Então o que você vê na realidade é uma mescla de planos globais --- que eu já expliquei no debate com o professor Aleksandr Duguin, e até hoje ninguém desmentiu que seja assim, e nem dá para desmentir porque é realmente assim --- onde você identifica três grupos (ou blocos) e nenhum desses três grupos se define por uma ideologia explicita.
O primeiro deles é o grupo russo-chinês. Nós sabemos que a Rússia está numa fase de transição entre o que era o comunismo e o que é alguma coisa que vem a seguir e que ninguém sabe exatamente o que é. Do mesmo modo, na China há um esquema de poder que ainda é o mesmo do tempo do Partido Comunista, mas que agora se apóia sobre uma economia francamente capitalista. Então você tem um regime socialista com uma economia capitalista. E você tem em volta uma série de países satélites, dos quais alguns estão loucos para se livrar do resíduo comunista, mas que, por outro lado, têm as suas velhas alianças no mundo eurasiano e não desistiram delas completamente. Então qual é a ideologia desse bloco? Eu dou um doce para quem disser qual é a ideologia. Nós vemos um esquema de ação muito claro que vagamente podemos chamar de eurasiano. Porém, na política concreta de Vladimir Putin, eu não vejo eurasianismo nenhum. Eu vejo é um projeto de restaurar o antigo império russo usando talvez um discurso ideológico eurasiano como justificativa ou meio de seduzir uma militância. É muito difícil acreditar que milhões de chineses vão se sacrificar pela glória do império russo. Então é necessário algum discurso inclusivo que possa persuadir muitas pessoas a lutar por uma coisa que não é do interesse delas, que é somente do interesse da Rússia. De qualquer modo, basta isso para entender como um panorama ideológico nessa área é tremendamente confuso.
Quanto ao segundo bloco, que é o bloco islâmico, é claro que podemos chamar o islamismo ou islamismo radical de ideologia, mas o fato é que para aqueles que estão envolvidos no processo o islamismo é infinitamente mais do que uma ideologia; ele implica um compromisso moral que vai até os últimos detalhes da vida pessoal de um indivíduo, coisa que nenhuma ideologia conseguiu fazer. Se eu disser para você que existe uma maneira islâmica de escovar os dentes, que existe uma maneira islâmica de limpar o bumbum depois que você defeca, mostre-me um partido político que chegou a moldar a vida dos seus militantes até esses detalhes. Isso é absolutamente inconcebível. Então é claro que uma concepção civilizacional religiosa abrangente como a do Islã vai infinitamente além do que nós podemos denominar ideologia. Mais ainda, existem várias ideologias que coexistem dentro do Islã e que, na luta pelo sucesso mundial do império islâmico, convergem e colaboram. Você tem desde pessoas que se dizem extremamente conservadoras --- aqui nos EUA há uma vasta massa islâmica que é conservadora, que vota no Partido Republicano etc., mas que estão aliados aos demais mussulmanos1 nas questões fundamentais. Então há duas ideologias absolutamente incompatíveis nominalmente, as duas convergindo para uma mesma luta na escala civilizacional.
E finalmente o terceiro bloco, que é o bloco que nós chamamos de ocidental ou globalista. Bom, aí nós temos uma definição um pouco mais geral dos seus objetivos, mas que também vão muito além de uma ideologia. Ou seja, uma ideologia é necessariamente um discurso que você prega às massas, de modo a obter a adesão consciente e deliberada dessas massas. Por exemplo: "você quer o socialismo, a luta de classes para derrubar os malditos capitalistas e instaurar a sociedade sem classes?"; "ah, eu quero, então eu vou aderir a essa coisa aqui". Quando você vê o esquema globalista, ele não tem nada disso. Você não tem um programa globalista claro e inequívoco que seja oferecido às multidões para que elas possam aderir. Ao contrário, há todo um leque de discursos ideológicos diferentes dirigidos a grupos diferentes que aderem em função dos interesses específicos do seu grupo: feminista, gaysista, racialista etc. São ideologias diferentes. E para complicar um pouco mais as coisas, esse grupo assimila uma parte do discurso islâmico e apóia em certos pontos do globo o avanço do islamismo, ao mesmo tempo em que em uma escala geopolítica apóia também as iniciativas militares para conter a expansão do poder islâmico. Então como definir a imensa complexidade desse esquema de ação com um rótulo ideológico simplório?
Então é por isso que dizer que George Soros é um marxista cultural é o absurdo dos absurdos. Eu nunca disse isso. Agora, como é que o indivíduo lendo o que eu escrevi chegou à conclusão de que eu estava vendo marxismo cultural em George Soros? É muito simples: é porque ele confunde tudo o que é anti-ocidental e anticristão com marxismo cultural e, como eu disse que George Soros está fazendo alguma coisa que é anti-ocidental e anticristã, ele já acha que eu disse que o George Soros é um marxista cultural.
Muito bem, do ponto de vista mais específico ligado à Escola de Frankfurt, é muito importante distinguir qual é a perspectiva de futuro que orienta as escolhas e as ações de várias pessoas com níveis de consciência completamente diferentes. Se você pega um filósofo, e não há como negar que pelo menos os fundadores da Escola de Frankfurt eram filósofos no sentido estrito da coisa --- [00:20] tinham algum domínio da técnica filosófica ---, alguns deles eram homens de uma cultura monumental, receberam o melhor que a educação europeia podia lhes dar naquele momento e que inclusive receberam na juventude uma influência profunda do Judaísmo e do Cristianismo, ou seja, conheciam o Judaísmo profundamente, conheciam o Cristianismo bastante e estavam tentando responder a questões que seriam de um filósofo judeu ou cristão da mesma época. Eles estavam interessados em coisas que também interessavam a um, digamos, Louis Lavelle ou a um Franz Rosenzweig, para dar exemplo o de um filósofo cristão e de um judeu. Isso quer dizer que o objetivo desses homens não era nenhuma mudança política imediata. Eles não estavam interessados em militância, ao contrário, um dos compromissos fundamentais da Escola de Frankfurt foi não se meter com o Partido Comunista de maneira alguma --- embora pudesse haver alguma colaboração de parte a parte.
Os membros da Escola de Frankfurt --- Horkheimer, Adorno, Leo Lowenthal --- todos eles queriam preservar a sua liberdade intelectual porque estavam interessados em questões filosóficas de verdade e não podiam assumir um compromisso de rezar segundo a cartilha de um marxismo vulgar que estava sendo disseminado para a Europa inteira e que era um alimento intelectual para retardados mentais. Não podiam se comprometer com isso. Se você comparar, por exemplo, os escritos do Theodor Adorno sobre a arte e depois comparar com o manual de marxismo-leninismo de Otto Kuusinen --- que era o texto oficial da União Soviética ---, há uma distância que é mais ou menos, como se fosse, a de Roger Scruton para Paulo Ghiraldelli. A diferença de nível é essa. E quando eu digo que os camaradas eram filósofos de verdade, isso quer dizer que eles estavam interessados nas questões mais profundas e mais difíceis não só da filosofia no sentido acadêmico, mas na vida humana em geral. Isso quer dizer que eles se defrontavam com o problema da morte e do objetivo último da existência. Todos eles se defrontaram com isso. Não eram militantes bocós --- para quem o interesse por essas questões é um luxo burguês ---, não eram isso de maneira alguma.
Eles tinham de algum modo o senso da eternidade; no início todos eles tinham. Mas por algum motivo que é biográfico e deve ser estudado separadamente em casa caso, não tinham a fé no Juízo Final e na conquista da eternidade, mas o buraco aberto pela fuga da eternidade permaneceu ali, quer dizer, para onde está indo a humanidade.
Há uma frase de Hegel que calou muito fundo em todos eles e que é: "Quando examinamos o panorama da História Universal, tudo o que vemos são ruinas". Então eles viram esse imenso amontoado de ruinas e sinceramente não acreditavam que nada melhor fosse aparecer para adiante, exceto ruinas. E justamente em função disso eles achavam que não havia nada de positivo ao qual se pudesse aderir e que a única função deles era continuar exercendo a sua análise crítica --- a mais ousada e radical possível --- sobre tudo o que existisse. Portanto, estavam literalmente realizando o programa que não foi o da ideologia marxista e sim o do Marx jovem e que era "a crítica radical de tudo quanto existe". Ora, se você está empenhado na crítica radical de tudo quanto existe, você não está empenhado na construção de um socialismo porque você também não acredita em socialismo. O socialismo seria apenas uma etapa a mais da grande autodestruição universal. Mas como eles só viam autodestruição para tudo quanto é lado, também acreditavam no preceito de Hegel sobre o "trabalho do negativo": aprofundando a autodestruição, aprofundando a crítica corrosiva pode ser que surja alguma coisa mais interessante pela frente ou pelo menos nos livramos, digamos, daquela parte dos horrores que já conhecemos e sabemos como funciona. Assim, quando se lê Herbert Marcuse e ele fala da libertação do Eros, ele não está vendo isso com a perspectiva utópica de que destruiremos o capitalismo e então libera o Eros de todo mundo e todo mundo vai cair na gandaia e vai ser uma maravilha. Ele não era um idiota para pensar uma coisa dessas. A liberação do eros fazia parte do mesmo processo de autodestruição e ele sabia disso; de algum modo, eles tinham assumido também o lema que foi do primeiro jornal onde Marx escrevia, que era o Vorwarts! (Para adiante! Vamos para frente! Vamos aprofundar a autodestruição! Vamos e vamos! Não sei o que vai dar!). Esse é o espirito da Escola de Frankfurt e é evidente que isso dá um reforço muito grande a qualquer movimento político que esteja a fim de destruir alguma coisa. Porém, a liderança ou a militância desses movimentos em geral acredita realmente que realizando esta parte do programa as coisas vão melhorar para alguém. Veja, por exemplo, a felicidade apoteótica com que o deputado Jean Wyllys celebrou aquele primeiro e longo beijo gay em uma novela da Globo outro dia2. Dá a impressão de que aquilo é o anúncio da felicidade universal. A Escola de Frankfurt ajudou a produzir isso? Ajudou de algum modo, mas ela não acredita que essa felicidade universal vai chegar. Mas a militância pode acreditar e usar elementos que saíram da Escola de Frankfurt.
É preciso ver, também, que naquilo que se chama confusamente de "marxismo cultural" entra esse espirito corrosivo, negativo e na verdade niilista da Escola de Frankfurt junto com o esquema gramsciano. Gramsci não foi um membro da Escola de Frankfurt e nunca teve uma colaboração direta com os frankfurtianos e certamente o objetivo dele era implantar um regime socialista mesmo --- algo do espirito utopicamente esperançoso do movimento socialista que ainda está vivo nele pode ser visto naquelas historinhas infantis que ele escrevia para a filha prometendo um mundo onde "tudo será mais belo" --- e não participava do espirito analítico e corrosivo da Escola de Frankfurt. Porém, esse estado de espirito pode ser usado para fins que são os da revolução cultural gramsciana. Uma coisa converge com a outra, mas não é a mesma coisa.
Por isso que eu não gosto muito do termo marxismo cultural, embora eu o tenha usado, pois você não pode ter uma clareza terminológica inteirinha pronta, de uma vez por todas. Nós vamos percebendo as coisas aos poucos. No início, quando você está arranhando um assunto, você usa os termos com que a coisa é designada no debate geral e depois os examina. Isso faz parte da natureza da filosofia. Já expliquei para vocês que a dialética avança superando conceitos parciais ou até falsos! E isso é uma lição de Hegel. Você tem que usar os conceitos parciais porque são os únicos que você tem e são aqueles que são usados no debate público. Novamente eu lembro que só existe uma dialética onde existe uma retórica antes. O que é retórica? É a arte da persuasão. É uma maneira de induzir as pessoas a fazer algo que você quer que elas façam. O argumento retórico não é verdadeiro nem falso. Ele tem que ser persuasivo. Ele pode coincidir com a verdade e pode coincidir com o erro. A retórica não visa enganar as pessoas, mas também não visa lhes dizer a verdade --- visa apenas induzi-las a uma determinada ação. Se não há uma multiplicidade, uma rede de discursos retóricos circulando na sociedade [0:30] a mente dialética não tem o que examinar porque a dialética é a confrontação dos discursos retóricos contraditórios e a sua articulação e comparação em termos mais rigorosos. E isso para chegar ao que? A uma proposta de ação? Não. Para chegar a uma aproximação da verdade naquele debate.
Por isso é claro que todo exame dialético parte de termos usados retoricamente que mais tarde, no curso do exame, serão superados e jogados fora. As pessoas dizem: "mas antes você usava 'marxismo cultural' e agora você não usa mais!" E eu respondo que isso é natural e que é inevitável no exame filosófico. Se eu não partir de conceitos parciais que estão circulando na discussão pública retórica, vou examinar o quê?
Assim, o dialético está perante os discursos retóricos como um juiz está perante os discursos das partes, ou seja, você vai ter que partir dos elementos que as partes lhe forneceram, contra ou a favor; é isso o que você tem na mão. No curso do exame você vai superando aquilo e mais tarde pode chegar, digamos, a uma aproximação da verdade que pode confirmar um dos lados, desmentir os dois, confirmar os dois. Pode resultar em qualquer coisa. Portanto, o primeiro problema que eu vejo no conceito de marxismo cultural --- embora, repito, eu mesmo o tenha usado provisoriamente --- é que a perspectiva gramsciana não é a mesma que a da Escola de Frankfurt. Não há nada de utópico na Escola de Frankfurt. Eles não acreditavam em nada. E quando propunham coisas como, por exemplo, a revolução sexual etc. isso tem um caráter experimental que poderá ser bom ou ruim, mas que, em última análise, só faz parte do processo de autodestruição e de produção de novas ruinas. Ao passo que em Gramsci existe ainda o forte elemento da esperança utópica e quando se diz que um sujeito é um marxista cultural, pode ser qualquer dessas duas coisas: ele pode ser um verdadeiro niilista destrutivo como Herbert Marcuse ou pode ser um utopista como o nosso Jean Wyllys, que acredita em um paraíso gay. É evidente que elas não são iguais.
O próprio conceito de marxismo cultural não basta para definir ninguém em termos do conteúdo --- seja do seu discurso ideológico, seja da lógica real suas ações. Para isso nós temos sempre que distinguir as duas coisas. Existem sempre dois níveis de discurso. Você tem o discurso puramente ideológico que é para os militantes e as massas --- em geral um discurso de auto justificação ---, e você tem a lógica interna da ação que não é um discurso para as multidões, embora não seja necessariamente secreto, mas é o de um segundo nível que é a articulação e o planejamento das ações da maneira mais racional possível. Esse contraste pode ser notado, por exemplo, quando se examina a propaganda do PT e os discursos dentro do Foro de São Paulo. Eles não são a mesma coisa evidentemente, e nem poderiam ser. Os discursos nas assembléias internas do próprio PT. A simples existência desse duplo nível torna inviável descrever as correntes em luta nos termos de sua "ideologia". O discurso ideológico já é ambíguo por sua própria natureza.
Também é necessário levar em consideração a regra que existe em todos os partidos comunistas desde a fundação do primeiro deles e que é a seguinte: o partido comunista sempre tem uma fachada pública e tem um comando clandestino. O comando é sempre clandestino e isso é a regra geral. Isso porque o partido pode estar na legalidade, mas não se sabe quanto tempo vai durar essa legalidade. Amanhã ou depois pode ocorrer um golpe militar e o partido não está mais na legalidade. Se você expuser todos os mecanismos, o partido ficaria totalmente vulnerável. Por isso há a necessidade de existir uma parte mais reservada. E é claro que a "ideologia" faz parte só da primeira camada que é a camada popular. Já a lógica interna das ações pode ser de uma coisa tão alucinantemente diferente da ideologia que um ingênuo vendo de fora pode até achar que aquilo é traição. Por exemplo, todas essas alianças que o PT fez. Podemos perguntar: "o PT fez as alianças em público tendo um plano secreto de depois jogar fora os aliados e tomar o poder total ou, ao contrário, prometeu à militância que mais tarde ia jogar fora os aliados burgueses --- sabendo por dentro que não poderia se livrar deles de maneira alguma e que iria apenas se consolidar no poder com aliados e tudo, como está até hoje, aliás"? As duas coisas são verdade ao mesmo tempo, ou seja, é a mesma coisa que dizer que o partido não sabe exatamente o que ele vai poder fazer e para uns promete uma coisa, para outros ele promete outra coisa ao contrário e na verdade faz as duas. Porque isto é o que o cenário real da ação permite.
Agora, como o papel aceita qualquer coisa e a tela de computador também aceita qualquer coisa, temos milhares de bobocas --- em geral jovens sem experiência e leitura --- que se intrometem a analisar as coisas e a falar com uma autoridade aparente. Isso porque a coisa mais fácil do mundo é imitar uma linguagem que para o seu público se parece com a linguagem de uma autoridade. E isso sobretudo no Brasil, pois o brasileiro é tremendamente mimético. Então isso evidentemente cria uma confusão e nos obriga às vezes à pior e mais difícil das discussões que é aquilo que na retórica antiga já se chamava o genus admirabile --- há vários gêneros do discurso retórico e um deles chamava-se genus admirabile por ser o mais difícil --- que é o discurso feito para um juiz inepto. O juiz que não compreende o que você está dizendo. Toda hora eu estou me metendo em discursões desse tipo. É o genus admirabile. Porque eu sou obrigado a me explicar para alguém que não só não está entendo como, naquele momento, não tem a capacidade de entender. E evidentemente quando você faz isso, é criada no interlocutor uma irritação, raiva e o indivíduo sente que está sendo enganado, simplesmente porque a coisa é mais complexa do que ele imaginava e como ele equacionou tudo em termos de duas ideologias em conflito e me nomeou defensor de uma delas, quando eu começo com a complexidade da coisa ele só pode achar que o estou enrolando. Isso já aconteceu mil vezes. Esse é na verdade talvez o problema mais sério do Brasil: uma camada imensa de pessoas ineptas e que tomaram o partido de alguma coisa na qual elas acreditam --- e acreditam que o seu interlocutor está fazendo a mesma coisa.
Por exemplo, esse rapaz que estou mencionando, que se chama Leandro Dias. Ele para provar que eu disse que George Soros é um marxista cultural, cita alguns artigos do Mídia sem Máscara que estão nesse sentido. Porém não são artigos meus. Por que ele pensa isso? Porque ele acredita que o Mídia sem Máscara é um jornal como os jornais do Partido Comunista, onde tudo é escrito de acordo com um consenso: você reúne o pessoal, discute qual a linha e todo mundo escreve dentro da mesma linha. Ele acha que é assim. Porém, o fato é o seguinte: eu jamais leio os artigos do Mídia sem Máscara antes de serem publicados. Não tenho a menor idéia do que as pessoas vão escrever ali. Simplesmente abri o jornal para dar um espaço para as pessoas exporem suas idéias, quaisquer que fossem. No Mídia sem Máscara, quando você sente a impressão de pluralismo é porque o pluralismo existe mesmo. Ele é real! Não é uma camuflagem de uma linha secreta que nós estamos defendendo. Até essa complexidade pode parecer excessiva para determinados interlocutores que estão acostumados com: "aqui nós temos nós com nossa classe proletária --- na qual não há proletário algum --- e do outro lado tem a classe burguesa --- onde também não há burguês nenhum --- e eu defendo esta ideologia e ele defende aquela ideologia". Isso faz parte evidentemente da discussão retórico-publicitária vulgar e não tem absolutamente nada com aquilo que estou querendo fazer [0:40]. Estou fazendo um esforço monstruoso, gastando todos os meus neurônios para ver se entendo realmente o que está acontecendo, quem está lutando pelo quê e no que vai dar isso, pelos próximos anos. E estou ainda tentando formar um grupo de pessoas para que se capacitem para formar esse tipo de análise. Se em uma sociedade como a do Brasil, de duzentos milhões de habitantes, não se tem pelo menos cinquenta pessoas capazes de fazer essa análise o país está ferrado. Vai ser aquele jogo de cabra cega, como está sendo no momento.
Por um lado, as pessoas queixam-se de que estão sendo submetidas a um governo totalitário. Por outro lado, queixam-se de que está tudo um caos. Mas se está tudo um caos, significa que ninguém manda, e se ninguém manda não pode haver um governo totalitário. Mas acontece que existe esta tendência totalitária e caótica ao mesmo tempo, e existe ainda a possibilidade do esquema totalitário tentar aproveitar-se do caos e a possibilidade do caos diluir os planos da minoria totalitária. Tudo isso pode acontecer e está acontecendo. Mais ainda: está acontecendo numa velocidade impressionante, que torna difícil acompanhar essas mudanças. Confesso que, à medida que o tempo passa, sinto-me cada vez mais incapaz de fazer isso sozinho. É preciso mais gente.
Isso quer dizer que, na análise dessas coisas, o mais estrito realismo em todos os detalhes é a coisa absolutamente necessária. O desejo de se autodefinir e de defender os seus valores e de persuadir pessoas só pode atrapalhar. Por exemplo, tem um monte pessoas conservadoras, cristãs etc. que usam esse conceito de Marxismo Cultural de uma maneira e evidentemente confusa. O que para fins de propaganda do seu grupo pode funcionar, mas para fins de orientação na realidade não funciona de maneira alguma.
Claro que aceito todos esses discursos como expressão dos desejos e valores magoados e ofendidos de certas comunidades. Mas nós, como estudantes da coisa, não podemos nos deixar iludir por isso de maneira alguma. Se o sujeito disser: "Nossa luta é contra o Marxismo Cultural!" Espere aí! Estou falando que existem três esquemas globalistas. Cada um deles é enormemente múltiplo e confuso em sua identidade e nós temos que nos orientar no meio disso. Se perguntarem: "Contra o quê você está?" Eu estou contra os três, evidentemente! "Mas existe alguma quarta proposta?" Não existe!
No momento, nosso esforço é apenas para entender qual é o esquema que está querendo nos dominar e preservar pelo menos a nossa liberdade intelectual, quer dizer, a nossa capacidade de manter a cabeça por cima da lama e enxergar pra onde estamos indo. Se conseguir fazer isso, você já preservou o principal. Se você perguntar a mim agora: "Existe alguém que controla o processo?" Eu falo: Existe: Deus e o diabo. O diabo dá um palpite, Deus mexe uns pauzinhos para encaminhar pra outra direção e nós não entendemos o que um ou o outro está fazendo.
Agora, existem agentes humanos? Existe o governo secreto? Não. Existe uma presunção de governo secreto. Mas se vermos bem, por exemplo, a ideia de um governo mundial, na década de vinte, trinta ou quarenta, os caras já estavam planejando um governo mundial para a década de oitenta e não chegou até agora. Ou seja, já está três ou quatro décadas atrasado. Isso quer dizer que eles não têm aquele poder diretivo que gostariam de ter. E ainda a própria questão da possibilidade de dirigir o curso da História é uma coisa que preocupou profundamente os próprios membros da Escola de Frankfurt e eles não têm resposta pra isso.
Portanto, ter poder sobre determinadas pessoas é uma coisa e ter poder sobre o curso das coisas é outra, completamente diferente. Nem sempre aquele que domina muitas pessoas tem o poder de determinar o curso das coisas. Esses são elementos completamente diferentes. Mas praticamente não há discussão política na qual não surja confusão entre esses dois fenômenos totalmente diferentes. O sujeito acha que aquele domina as pessoas está dominando o processo. Isso é inteiramente absurdo!
Na verdade, quando se vê os discursos de autojustificação desses grupos globalistas, percebe-se que eles se esforçam, ao mesmo tempo, por dar a impressão de que dirigem o processo e por dar a impressão de que eles nem existem. Só de você se orientar no meio dessa contradição já é uma coisa terrível. Por exemplo, você vê quase que diariamente discursos que nós temos problemas de escala global que não podem ser resolvidos nas esferas das respectivas soberanias nacionais. Portanto, nós temos que acabar com as soberanias nacionais e governar tudo desde a ONU. Os caras dizem isso e, no instante seguinte, se você fala de governo global, eles riem na sua cara e falam que é teoria da conspiração.
Existe uma confusão, em parte proposital e em parte uma confusão autêntica, que está na própria cabeça deles. Imagine a cabeça de um agente globalista que se pergunta: "Até onde nós temos o poder de dirigir essas coisas?" Ele também não sabe!
Por exemplo, se lerem o livro Windswept House, de Malachi Martin. Ele mostra que já nas décadas de oitenta e noventa havia a idéia de diluir a identidade própria da Igreja Católica e transformá-la numa espécie de gerencia geral das religiões. Uma espécie de unidade transcendente das religiões, administradas desde Roma. Essa era a idéia. Agora imagine que você é o Papa. Os caras propõem isso a você. Você pode, num primeiro momento, ficar escandalizado e dizer: "Eu sou o Papa da Igreja Católica, só ela tem os meios de salvação e eu não quero misturar minha Igreja a essas falsas religiões ou falsas revelações". Esse é um lado, que existe. Por outro lado, ele diz: "Bom, aqui temos duas opções: ou eu aceito essa brincadeira ou eles jogam todas contra nós e acabam com a gente". E existe sempre a possibilidade de eu assumir esse jogo e virar a mesa depois. Ou seja, ganha todo mundo para a Igreja Católica. Existe essa possibilidade também. O que você faria se fosse Papa? Eu, graças a Deus, não sou Papa e nunca estive com esse problema na minha mão e não tenho como resolvê-lo. Mas, eu vejo que os analistas da questão não são capazes sequer de colocar essa dúvida que, evidentemente, esteve na cabeça de todos os Papas, desde João XXIII.
Daí também a nossa dificuldade de analisar as declarações do Papa presente. Por exemplo, eu não tenho a menor idéia do que ele quer. Mas eu acho que ele também não tem idéia. No entanto, ele não é burro, tem assessores, tem toda a gama dos dados nas mãos e algum esforço ele deve estar fazendo para entender isso e para desenvolver alguma linha de ação. Essa dificuldade existe na mão de todos os agentes.
Qualquer que seja o caso, os nomes das correntes ideológicas nunca servem para descrever um curso de ação real, embora ele seja um componente inevitável. Porque tem gente que quando a coisa fica um pouco confusa diz: "Não existe mais esquerda e nem direita! Não existe mais comunismo!" Eu digo: Claro que existe! Eles não são os esquemas gerais articuladores da coisa, mas eles são elementos que estão presentes. As ideologias não descrevem o panorama real, mas são elementos presentes no panorama real.
O desejo urgente de se autodefinir, de tomar partido, eu entendo que seja legítimo, sobretudo da parte de representante de grupos que foram ofendidos, que são perseguidos etc. Tudo isso é moralmente legítimo, mas intelectualmente tudo isso não significa nada e eu, certamente, não fiz esse curso para criar mais militantes, nem mesmo das causas mais nobres do universo. [00:50] Por que militante nunca falta. Tem muito sujeito que toma partido e sai falando de um dia para o outro. Não é preciso fazer o Seminário de Filosofia para fazer uma coisa dessa. Você pega um pouco de catequese na igreja ou um manual de instruções do Sem-Terra, do PT e pronto! Já está capacitado a fazer um discurso ideológico.
Nós queremos algo mais. Algo mais, cuja existência pode ser até mais discreta, mas é muito mais importante e mais vital para a sobrevivência humana do que tudo isso. Nós precisamos garantir que a inteligência humana não será submergida pela maré de confusões, mentiras, alucinações etc. Isso é muito mais vital do que lutar pelo que quer que seja. Porque se você luta e não sabe contra o quê está lutando e o outro também não sabe, provavelmente vocês vão se matar por nada.
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Em primeiro lugar, essa questão da ameaça de morte, nós temos duas versões: uma baseada no que foi publicado no Facebook e outra em testemunhos orais. O indivíduo teria feito pelo Facebook apenas uma ameaça de agressão; mas oralmente, a outras pessoas, teria ameaçado dar um tiro no rapaz. Eu acho que é uma questão policial. Teria que, imediatamente, procurar um advogar e dar uma queixa-crime. Não tem que esperar não. Você não vai esperar o sujeito executar a ameaça pra depois tomar alguma providência. A ameaça em si já é um crime, evidentemente. Se existem testemunhas de que o indivíduo ameaçou dar um tiro no rapaz, então tem que dar a queixa "anteontem". Não tem que esperar ele dar o tiro ou desistir de dar o tiro.
Aluno: No vídeo "Imaginação e unidade do real" o senhor disse: "Se a filosofia de Kant pode ser escrita e publicada é porque ela está errada em algum ponto." Veja se as minhas conclusões sobre essa frase estão certas: Kant, ao escrever sua filosofia, tende a admitir a unidade dele mesmo e dos elementos físicos na sua volta no espaço e no tempo, visto que ele levou tempo a escrevê-lo. Se foi possível a publicação de seus escritos, fatalmente temos que admitir a unidade uma infinidade de elementos físicos no tempo e no espaço (...)
Olavo: Esse raciocínio não está errado, mas o que eu pensei não foi exatamente por aí, quer dizer: que o Kant está provando a sua unidade pelo fato de publicar o livro. É claro que ele está. Mas, para raciocinar mais kantianamente, o fato é que se ele escreve e publica o livro ele espera que você, por trás da aparência gráfica das letras escritas, apreenda a forma de pensamento, que é o mesmo que ele teve. Agora, se você não pode apreender nem sequer o ser em si, de um elefante que está a sua frente, como você poderia apreender o ser em si de um fluxo de pensamentos? Seria quase impossível! Então a dificuldade que eu vejo não é que Kant está entrando em contradição consigo mesmo, na medida em que ele prova a sua unidade ao escrever o livro. Porque ele não nega a unidade real. Ele somente diz que ela se forja na nossa mente, que os estímulos que nós recebemos são totalmente caóticos e que nós, de algum modo, projetamos as nossas categorias, entre as quais a de unidade e multiplicidade nos elementos colhidos da experiência. Mas, mesmo nesse caso, nós só pegamos uma forma fenomênica. A questão da coisa em si não se coloca. Mas se eu exponho um pensamento, eu quero que apreendam apenas a sua forma fenomênica ou o pensamento mesmo? Então, esse problema ele não chega a se colocar; aparentemente ele não está consciente disso. Então o que vejo não é o problema de Kant estar se desmentindo, mas o fato de Kant estar esperando que o leitor faça uma coisa que, de acordo com a teoria de Kant, o leitor não poderia fazer.
Aluno: (...) Depois o senhor passa a falar sobre a imaginação e sobre como ela articula os dados do sentido no mundo. O senhor ainda não está repetindo o que Kant disse: que o mundo é construído dentro de nós? (...)
Olavo: É evidente que a imaginação faz um trabalho de articulação dos dados do real. A diferença entre o que estou dizendo para o que Kant disse é que ele disse que esta unidade existe somente para a imaginação, ou seja, ele parte do sujeito cognoscente como se esse fosse o centro da questão. Eu me pergunto o que me possibilitou ser um sujeito cognoscente, o que me possibilitou ter as categorias de percepção e de pensamento que eu tenho. Eu vejo que tudo isso já tem, na sua raiz, uma relação com o mundo físico que nos rodeia. Ou seja, as nossas categorias de pensamento não estão no nosso cérebro. Aliás, o cérebro também é apenas uma parte do mundo físico e é uma percepção que eu mesmo tenho do mesmo mundo físico, de maneira que a coisa entra em um círculo vicioso.
A imaginação faz sim esse trabalho, mas você não articula as coisas pela pura força da sua imaginação. Você joga sempre com elementos que você colheu do próprio mundo exterior. Por exemplo: as direções do espaço. Se as direções do espaço fossem somente uma forma da nossa percepção então elas poderiam ser somente percebidas; quer dizer, você não poderia se deslocar efetivamente dentro delas. Elas que se deslocariam dentro de você, de alguma maneira. Então essa é uma das partes no Kant que eu acho que a coisa está muito mal explicada. Mas a função articuladora e unificante da imaginação eu não posso negar, porque isso é o óbvio dos óbvios.
Aluno: (...) O senhor dizer que "não é possível ter um conhecimento intuitivo da unidade do real, mas uma demonstração por absurdo" (...)
Olavo: De fato é possível ter uma demonstração por absurdo, mas a demonstração pouco significa. Eu acredito que a unidade do real é um pressuposto de qualquer conhecimento que você tenha. Ela não pode ser um objeto de conhecimento, na medida em que é um pressuposto. Ou seja, você pode reparar nela, de uma maneira transcendental, como diz o Kant, quer dizer: você retroage sobre a experiência e examina as condições da experiência e vê que essa unidade do real está dada lá, não como uma categoria do pensamento, mas como um traço inerente ao próprio mundo externo que, por assim dizer, imprime em nós essas categorias, como imprime as direções do espaço. As direções do espaço têm de ser apreendidas desde a infância. Você tem de adaptar o seu corpo a um esquema espacial, dentro do qual ele se move e não somente a um esquema que está na sua mente. A possibilidade de você articular o seu movimento com as direções do espaço prova que elas não são somente uma forma de nossa percepção. Elas são também uma forma da nossa percepção, mas não podem ser só isso.
Aluno: (...) Peço uma indicação de como aprender a língua italiana e inglesa.
Olavo: Eu sempre sugiro o método Pimsleur. Eu acho o melhor método de aprendizagem de qualquer idioma. Agora, eu acredito que para você importar isso para o Brasil, sempre vai ter algum imposto de importação, que vai sair mais caro do que se você estivesse nos EUA. Mas de qualquer forma, não é nenhum absurdo. Você pode ir comprando fase por fase do curso.
Aluno: O senhor poderia descrever como eram as aulas do Padre Ladusãns, da PUC do Rio de Janeiro?
Olavo: O Padre Ladusãns tinha um método muito característico: ele colocava uma questão, primeiro ele articulava uma questão; depois ele abordava essa questão desde o ponto de vista das várias escolas de filosofias, desde o começo dos tempos, assumindo aquela posição como se fosse a dele. No dia seguinte ele fazia a crítica daquilo, desde o ponto de vista da escola subsequente e daí apresentava um segundo ponto de vista, um terceiro, um quarto e um quinto. Até que no fim ele propunha uma solução, dele mesmo, geralmente inspirada na escola fenomenológica, da qual ele era um representante. De modo que ali você aprendia a assumir as várias filosofias --- isso era importantíssimo --- não apenas como dados históricos, mas como possibilidades do seu próprio conhecimento.
De certo modo, você era Parmênedes, Heráclito, Platão, Aristóteles e assim por diante. [01:00] Você pegava uma dimensão parmenídica do seu pensamento e da sua percepção do mundo, depois uma dimensão heraclítica, de modo que a absorção dos filósofos não era cultura histórica, era um treinamento de técnica filosófica. Isso que era o mais maravilhoso nas aulas dele.
Existem algumas apostilas que sobraram, elas dão uma vaga idéia do que era, mas ele não documentou muito bem o ensino que deixou. Além disso, a escrita dele era um pouco dura, porque o português não era a língua originária dele. No oral ele compensava muito bem isso. Se não dava certo a frase de um jeito ele fazia de outro e na escrita não dava pra fazer isso.
Aluno: Sou aluno do curso de filosofia não tem muito tempo. Estou começando minha monografia de final de curso, que irá tratar sobre a invasão da esquerda no meio cultural e abordar os anos 64 até mais ou menos a eleição do Lula (...)
Olavo: isso é muito vasto. Eu sugiro que você pegue um pedacinho menor.
Aluno: (...) Queria saber se você poderia recomendar algum livro.
Olavo: Posso recomendar uma multidão de livros; mas, quem tem estudado já isso, com o objetivo de fazer não um projeto tão abrangente, mas uma coisa mais específica, é o Silvio Grimaldo. Então recomendo que você entre em contato com ele. A bibliografia disso é imensa, mas não existe nenhuma obra em conjunto. Se procurar a história da esquerda guerrilheira, há o livro do Luiz Mir. Sobre a militância esquerdista na cultura, tem o livretinho da Heloísa Buarque de Hollanda. Existem muitos outros livros sobre isso, mas todos eles valem como documentos, nenhum livro científico que você possa tomar como base. Existem muitas narrativas de porta-vozes da esquerda. O próprio livro de Zuenir Ventura, 1968 O Ano que Não Terminou é muito importante. São depoimentos de personagens, de agentes históricos, que contam a história pelo seu ponto de vista. Então servem como documentos. Entre a abordagem deles e a sua vai haver uma grande diferença: é famosa distinção entre o discurso do agente e o discurso do observador científico. Mas entre em contato com o Silvio Grimaldo e ele vai te ajudar nisso.
Vou ler um comentário, que não vai dar tempo para analisá-lo, mas vou lê-lo inteiro e podemos deixar pra pensar nisso mais tarde.
Aluno: A respeito do seu comentário sobre o assunto Geocentrismo versus Heliocentrismo, na aula retrasada, gostaria de fazer algumas observações úteis: o sentido imediato da descrição heliocêntrica ou geocêntrica é de uma descrição cinemática (...)
Olavo: Cinemática é a pura descrição de um movimento, sem levar em conta as forças que estão por trás desse movimento. É o mapeamento do movimento.
Aluno: (...) Então no contexto da Física, dizer que a Terra gira em torno do Sol é dizer algo sem sentido, pois falta referência. Está correto, pois, dizer que a Terra gira em torno do Sol, em relação ao Sol. É óbvio que, então, não é nem um pouco menos correto afirmar que o Sol gira em torno da Terra, em relação à Terra. As duas afirmações são corretas e não se contradizem, de modo que, se considerarmos esse escopo puramente cinemático, geocentrismo e heliocentrismo são verdadeiros, simultaneamente. Creio que é natural darmos razão ao heliocentrismo sempre que adotarmos outra camada de significado, diferente do aspecto cinemático. Nesse sentido, ambas as concepções, heliocentrismo e geocentrismo, são definidos nos seus aspectos dinâmicos. (...)
Olavo: Quer dizer, a dinâmica vai levar em conta as forças que geram o movimento.
Aluno: (...) Para efeito de simplicidade e matemática, é conveniente adotar sempre o Sol como sistema de referência. Em outras palavras, é o Sol e não a Terra a referência mais adequada a ser tomada. Também o Sol é a referência mais adequada a ser tomada do ponto de vista da Mecânica Newtoniana. A Mecânica Newtoniana é formulada através de leis que tomam como referência um referencial inercial (...)
Olavo: Referencial inercial é aquele em relação ao qual um corpo pequeno e livre de qualquer influência externa, permanece em repouso em movimento retilíneo uniforme. Na prática é impossível achar um referencial inercial, mas isso é outro assunto.
Aluno: (...) Para efeito da descrição do Sistema Solar, o Sol se aproxima muito mais de um referencial inercial do que a Terra (...)
Olavo: Isso é óbvio.
Aluno: (...) Só que a Mecânica Newtoniana já foi superada pela Relatividade Geral, então há também esse novo aspecto a ser adotado no enfrentamento dessa questão. Um dos princípios fundamentais da Relatividade Geral é a invariância por transformações gerais e coordenadas. Isso significa, em linguagem simples, que o referencial inercial não tem nenhum privilégio na descrição dinâmica de um fenômeno. Todos os referenciais são equivalentes. Em suma, de acordo com a teoria mais moderna sobre o Sistema Solar, já consagrada pelas observações etc., dizer que a Terra gira em torno do Sol não é rigorosa e definitivamente mais correto do que dizer que o Sol gira em torno da Terra.
Olavo: Não vai dar para comentar muito isso aqui, mas existem todos esses problemas. Essa questão é terrivelmente espinhosa. O sujeito tomar o heliocentrismo como se fosse um dogma é uma coisa inteiramente absurda. E também o fato de você dizer que se não existem provas suficientes dessa teoria, também não quer dizer que essa teoria está errada! Por exemplo, uma coisa que pouquíssima gente sabe, quando Einstein propôs a constância da velocidade da luz ele não sabia que isso existia. Eu não lembro a frase literal, mas ele escreve mais ou menos isso: "Eu proponho isso, nem mesmo como uma hipótese, mas como uma decisão de livre vontade. Ou seja: eu determino que a velocidade da luz é igual sempre e que ela é constante. Daí vamos ver o que dá e fazer o cálculo, baseado nisso, pra ver se dá certo". Depois, mais tarde, apareceram meios de medir isso e viram que aquilo era mesmo assim, mas ele não sabia. Então, em ciências todas as coisas podem acontecer. O próprio sujeito não tem provas de sua teoria e ele a enuncia assim mesmo, mas depois aparecem as provas. Eu só li isso aqui pra dizer que você receber de maneira emocional uma afirmação como essa é coisa, realmente, de gente analfabeta, que não acompanha as discussões.
Aluno: Posso enviar minha dissertação de mestrado sobre Santo Agostinho?
Olavo: Claro que pode! Mande para meu e-mail: [email protected]
Hoje foi um dia excelente, porque eu comecei queixando-me de que não tinha uma secretária para me ajudar aqui e apareceram quatro candidatas, e espero que pelo menos uma delas dê certo. Agradeço muito àquelas que se apresentaram. Vou conversar com elas amanhã a noite e vamos ver no que dá.
Muito obrigado a todos e até semana que vem.
Transcrição: Eduardo Afonso de Aguiar, Jônatas Alves e Wilson Garcia Carvalho
Revisão: Éricson Rojahn
Footnotes
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Sobre a grafia "mussulmanos": <http://www.olavodecarvalho.org/textos/temfilosofo.htm\>. ↩
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Exibido em 31/01/2014 na novela Amor à vida (Nota do Revisor). ↩