Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 218
31 de agosto de 2013
Boa noite a todos. Sejam bem-vindos.
Vou continuar hoje com os comentários do texto do Ronald Robson1, que faz uma síntese da minha filosofia. Mas antes mesmo de entrar nisso, quero fazer algumas observações sobre comentários que foram postados no site Ad Hominem. É bem natural que, em função do sucesso do meu livro organizado pelo Felipe Moura Brasil2, comecem a aparecer baratas em todo canto para fazer, não uma análise crítica do livro, mas para espalhar fofocas, sempre entrando em cena com aquele ar de quem traz uma inside information fundamental que vai mudar todo o conceito que tenho na praça. Apareceram alguns fulanos deste tipo, e eu acho que o público merece, de algum modo, alguma explicação a respeito.
Entre estes sempre aparecem pessoas que dizem: "eu assisti a aulas dele". Assistiu às vezes a uma ou duas porque, em geral, lembro bem dos meus alunos, não os esqueço facilmente, e aparecem uns camaradas que eu nunca vi na minha vida. Pode ter assistido como ouvinte a uma ou outra aula, mas alunos meus nunca foram, entre os quais um sujeito que se assina Francisco Barros. Não sei se esse é realmente o nome dele; pode ser um pseudônimo. O uso de pseudônimo está disseminado no Brasil como uma verdadeira praga, embora a Constituição o proíba. E, no simples fato de enviar uma mensagem anônima ou sob pseudônimo, o indivíduo já desmascara a sua intenção francamente criminosa. Eu dei aqui o prazo de um mês para os que usam pseudônimo no nosso chat mudem a sua inscrição para os seus nomes verdadeiros. Depois veremos o que fazer para resolver isso.
Mas este tal de Francisco Barros informa coisas que ele acredita que ninguém sabe, embora já as tenha mencionado milhares de vezes; como o fato de que eu pertencia à tariqa de Frithjof Schuon. Ele revela isso como se fosse uma coisa extraordinária e mistura tudo, porque ele diz: "Nos anos 70, Carvalho era professor de astrologia do curso Júpiter em São Paulo..." − É verdade. Creio que exerci essa função entre 1977 e 1980, mais ou menos − "...e freqüentava a tariqa de Idries Shah junto com o seu ex-amigo Mateus Soares de Azevedo..." Isso é completamente falso: o Mateus jamais esteve na tariqa de Idries Shah. Inclusive eu o conheci depois desta história. "...Depois abandonou essa tariqa e ingressou na famosa tariqa Maryamiyya de Frithjof Schuon, da qual ele foi expulso." Confere perfeitamente, eu já expliquei isso para vocês; já expliquei inclusive as circunstâncias nas quais isso sucedeu. E tenho toda a documentação, toda a troca de cartas, para que as pessoas entendam exatamente o que se sucedeu. É importante saber que, quando se entra numa tariqa, não se pode sair por conta própria: ou o homem o põe para fora ou você não sai nunca mais. E se você continua lá dentro, qualquer perseguição que lhe queiram mover (...), como por exemplo, esta tariqa tinha a compulsão de fazer assédio judicial contra quaisquer pessoas que os desagradasse. Teve um sujeito, na França, que sofreu uns quarenta processos ao mesmo tempo, e ele não tinha a menor condição de se defender. E aprontaram a mesma coisa comigo, no Brasil. Fui inocentado no processo, e esse Mateus Soares de Azevedo foi uma das testemunhas falsas que se apresentaram para depor contra mim, por ordem deste pessoal da tariqa. Isso é para vocês verem o alto nível de moralidade que ali vigorava.
"...Quem leu Guénon e Schuon, sabe que Olavo jamais teria arsenal intelectual para apontar os erros dos 'filósofos' modernos se antes não tivesse estudado a obra dos mestres perenialistas...". Isso é verdade. Sempre declarei isso e reafirmo que quem não mergulhou profundamente nas obras desse pessoal da escola dita perenialista nunca entenderá o que está acontecendo na cultura européia nem na política mundial. O que não quer dizer que você tenha de interpretar esses fatos sob a ótica que eles enfocam e muito menos concordar com eles. Estou dizendo que eles são um dado importante. Assim como, por exemplo, quem não sabe como funciona o Partido Comunista também não entende nada, o que não quer dizer que, para entender, você tenha de ser comunista. Não estou dizendo que para entender isso, você precisa absorver e concordar com as doutrinas perenialistas, não: você tem de saber o que eles estão dizendo e saber qual é a atuação deles no mundo. Mais ainda, ler Guénon e Schuon não basta, se você não tem idéia de como funcionam as tariqas. E para ter idéia, você tem de ir lá arriscando queimar os seus dedinhos. Você nunca vai entender como as coisas estão acontecendo no mundo; eu sempre disse isso. O que não quer dizer que eu esteja repetindo o que eles disseram. Se estivesse repetindo o que eles disseram, em primeiro lugar, não poderia dizer exatamente isso que acabo de dizer.
"... Hoje ele é um inimigo dos perenialistas e acusa Schuon de ter islamizado a Europa..." Eu não acusei ninguém de nada, foi o Schuon quem disse isto. Ele não disse como auto-acusação, ele disse se gabando. Quando ele voltou da Argélia, tendo se transformado em sheik da tariqa --- numa operação misteriosa que não vem ao caso agora ---, a primeira coisa que ele disse foi "eu vou islamizar a Europa", e toda a vida dele foi dirigida para isso. Não há acusação nenhuma: isso é um simples fato. Você não pode acusar o sujeito de uma coisa da qual ele se gaba. Pode até ser uma coisa má do ponto de vista de outras pessoas, mas para ele isso era uma grande honra.
"...Em 2003, eu estava presente numa aula de Olavo na Universidade, no Rio de Janeiro, na qual ele criticou --- sem ter lido --- a obra O Erro de Descartes*, do neurocientista Antônio Damásio..."* Não, não. O que eu disse não foi a respeito do livro do Antônio Damásio, foi a respeito do livro do Daniel Goleman sobre inteligência emocional. O cara está trocando as bolas. "...e o acusou de "não ter lido Aristóteles", o que é falso. Quem leu O Erro de Descartes sabe que Damásio salvou a medicina ocidental ao restabelecer a união "mente-e-corpo". Isto é uma estupidez imensa, porque o movimento de medicina psicossomática antecede o Antonio Damásio em pelo menos 60 anos. "Acrescento que quem estudou Aristóteles por meio da obra do filósofo italiano Giovanni Reale não precisa de Olavo de Carvalho,..." Então você me faz um favor: diga-me onde está, na obra inteira do Giovanni Reale, a Teoria dos Quatro Discursos, porque li o Giovanni Reale inteiro. Li o livro dele sobre Platão, li a História da Filosofia Antiga, e não o vi captar a unidade dos quatro discursos em parte alguma.
Agora, aqui chega a pedaço mais bonito onde o sujeito se revela de uma vez: "...assim como quem leu a História da Revolução Francesa narrada pela grande historiadora inglesa Nesta Webster --- que era lida e admirada por Winston Churchill --- sabe que O Jardim das Aflições é repleto de mentiras e desinformações propositais para esconder o real poder da maçonaria no Ocidente. Não posso resumir em poucas linhas "essas mentiras e desinformações", mas sugiro que se leia Secrets Societies and Subversive Movements*, da historiadora inglesa Nesta Webster. Depois compare o que ela descreveu sobre a Revolução Francesa com o que está escrito em* O Jardim das Aflições*. Outro dado relevante: na bibliografia de* O Jardim consta a obra História Secreta do Brasil*, do historiador cearense Gustavo Barroso. Você conhece essa obra? Sabe o que Barroso e Webster escreveram sobre os judeus? Sabe como era a vida dos judeus antes da Revolução Francesa?"* − O negócio está começando a ficar interessante... − "Outro fato importante é que Carvalho, como historiador, é uma piada. O que ele escreveu sobre a Revolução Francesa em O Jardim das Aflições é coisa de desinformante profissional...'' − é curioso que essas expressões que eu ponho em circulação, logo as pessoas começam a macaquear − "... Ocorre que o gato deixou o rabo de fora, pois ele citou na bibliografia de O Jardim a obra A História Secreta do Brasil, do historiador cearense Gustavo Barroso, onde ele relata que uma elite judaica passou a controlar a maçonaria e fomentou a Revolução Francesa. ...Assim, os principais beneficiários pela Revolução Francesa foram justamente os judeus, que alcançaram a emancipação com o Código Napoleônico. No entanto, em O Jardim das Aflições essa informação foi omitida: Carvalho simplesmente escreveu que a maçonaria se tornou anticristã, sem dizer quem passou a controlá-la." Veja a fonte que ele diz que eu deveria ter usado, que é o livro da Nesta Webster. Ela era um membro do partido fascista inglês, uma admiradora de Hitler e toda a exposição dela sobre os judeus é baseada nos Protocolos dos Sábios do Sião. Precisa dizer mais? Hilaire Belloc, o escritor católico e amigo de Chesterton disse a respeito: "Isso é um livro lunático". Eu vou ser acusado de não ter usado como fonte um livro lunático? [0:10] Claro que, no livro dela, como no do Gustavo Barroso − que era outro pró-nazista, antissemita quatro cruzes − há informações interessantes, mas você não pode usá-las como fonte. Você pode usá-las como elemento da trama, mas você tem de fazer a triagem crítica. Então, não uso este tipo de coisa como fonte; posso usar no máximo como um documento, sem subscrever o que está dito ali. Agora, na hora em que o indivíduo diz que os judeus dominam a maçonaria e, mais adiante, me acusa de ser um sionista, o sujeito já se revela: é um seguidor de Gustavo Barroso e Nesta Webster, portanto é um anti-semita, é um pró-nazista que já se identificou como criminoso na primeira.
E,mais adiante, como se não bastasse ter se sujado a esse ponto, o indivíduo ainda diz: "Você consulte o Edson Oliveira, da É Realizações, para saber que o Olavo fugiu do Brasil devendo 100 mil dólares ao Edson Oliveira." Não me lembro de o Edson Oliveira ter me dito nada disso. Se ele disse, vou processá-lo, porque, ao contrário, todo o trabalho que fiz lá como diretor editorial --- o catálogo da É Realizações sou eu, na verdade ---, nunca recebi um tostão por isso; quem me deve é ele. Deveria, mas, na verdade nunca cobrei. Agora, vou consultar o Edson Oliveira para saber se ele disse isso para saber quem é que tenho de processar: se é o Edson de Oliveira, o qual certamente vai negar tudo, ou este sr. Francisco de Barros, que ainda vamos identificar para ver quem é.
Na hora em que o sujeito me acusa de não usar como fonte a Nesta Webster e o Gustavo Barroso, ao qual faço uma crítica em O Jardim das Aflições, ele está me elogiando. Não uso essas coisas como fonte mesmo.
Outra coisa, no Brasil, o pessoal tem mania do pensamento em bloco. Isso quer dizer que, se você diz uma palavra em favor de um cara você é adepto dele. Outro dia alguém me perguntou se eu era sionista: não tenho a menor idéia. O que acho é que os judeus têm o direito de ter um pedaço de terra deles e ninguém pode tirá-los de lá. Se isso basta para fazer de mim um sionista, não sei. Sei que até houve organizações sionistas que me agradeceram de público, fizeram uma homenagem pública, agradecendo o apoio que tinha dado em certos momentos. Mas não me deram a carteirinha de sócio: não sou membro do movimento sionista. E o programa sionista é uma coisa longa e complexa, da qual aprovei publicamente um pedaço; nem conheço direito o resto. Como é que o sujeito se torna sionista por ter dito uma coisa em favor do Estado de Israel? Mas, no Brasil, é exatamente assim. Também disse uma coisa em favor de Schuon e Guénon; mais de uma coisa. Isso não me torna nem schuoniano nem guenoniano. Mas estas fofoquinhas são normais. Os meus "críticos" se dividem em dois tipos: aqueles que xingam e dizem que eu só xingo --- vocês sabem que toda a minha obra é constituída só de xingamentos, eu dei a bibliografia inteira, ali só tem palavrão do começo até o fim, não tem um único argumento, não tem uma única idéia, só tem palavrão ---, e os caras, baseados nisso, escrevem a meu respeito só palavrão. E tem os outros que são fofoqueiros desse tipo que vêm com inside information: o Mateus Soares de Azevedo me disse não sei o quê. A confiabilidade do Mateus Soares é de uma nota de R$ 32,00. O sujeito já foi testemunha falsa num processo, o que mais você quer? Está lá o processo: seguindo a instrução da tariqa, moveram um processo fake contra mim --- talvez soubessem que o processo não daria nada ---, e no qual fui totalmente inocentado. O que mais você quer? O sujeito vem com notícia velha, arquissabida, dizendo "ele era astrólogo". Ó raios, e quem é que não sabe? Já contei aqui essa história milhões de vezes. De qualquer modo, agradeço aí ao Robson.
Mas quando aparece um sujeito citando Nesta Webster e dizendo que o globalismo ocidental não é globalismo, é sionismo, que os judeus dominam o mundo ocidental, você já sabe com quem está falando: com o porcaria de um nazista, um anti-semita, um criminoso. É somente isto; não precisa prosseguir muito a discussão. Sem o que, existe a total irrealidade histórica desse fator que já foi analisado pelo Norman Cohn, que é um historiador de altíssimo gabarito, no livro que ele escreveu sobre os Protocolos dos Sábios de Sião. E, você dizer que a elite globalista ocidental é sionista, então você não vê a situação que está hoje o Estado de Israel? Você não sabe da aliança entre esse movimento globalista e os jihadistas, os rebeldes do Egito, da Síria etc.? Você não ficou sabendo de nada? Então são pessoas absolutamente fanáticas, loucas, criminosas no fim das contas.
Vamos continuar com a leitura do Ronald Robson, que me dá a chance de explicar muita coisa. Não lembro exatamente onde parei, mas vou voltar um pouco atrás de qualquer maneira; não tem problema. Ele tinha acabado de falar do trauma de emergência da razão.
III. O trauma de emergência da razão reproduz na escala privada um problema central de qualquer filosofia da cultura: as mediações entre indivíduo e sociedade; ou, se quisermos dizer de outro modo, entre expressão particular e símbolos disseminados socialmente. A esse desenvolvimento psicológico do indivíduo corresponde, é evidente, um desenvolvimento epistemológico, que pode ser apreendido não apenas nessa escala, a individual, mas também na escala social. A teoria dos quatro discursos, assim, tenta descrever em amplitude histórica e pessoal --- uma filosofia da cultura e uma pedagogia, portanto --- a unidade dos quatro tipos de discurso estudados por Aristóteles (...)
Aqui eu reafirmo: a descoberta da unidade do Organum, incluindo Poética e Retórica, deve-se inteiramente a Avicena e São Tomás de Aquino. Só que eles não investigaram o assunto: eles simplesmente afirmaram isso; é um parágrafo de cada um. Pode-se procurar mais explicações nas obras deles, não se encontra. Então tudo o que eu fiz foi testar essa hipótese: São Tomás e Avicena dizem que é assim, vamos ver se é realmente assim. Por quê? Porque os autores subseqüentes que estudaram Aristóteles não mencionam isso, de maneira alguma. E descobri que de fato era assim. Agora, nesta investigação não tive antecessores na modernidade e no século XX. Nenhum. Ninguém diz isso. O próprio Chaim Perelman, que é o sujeito que mais estudou a teoria do discurso em Aristóteles, fala em três discursos; ele mistura o retórico e o dialético, que para ele é a mesma coisa. Alguns chegaram perto disso: Enrico Berti, por exemplo, chegou perto, mas não pegou. O próprio Giovanni Reale também tinha tudo para descobrir a coisa e não descobriu.
Então eu desafio: mostre-me algum texto onde alguém diz claramente isto; existe uma unidade da ciência dos discursos, abrangendo poética, retórica, lógica e dialética de maneira que há liames internos profundos entre essas quatro ciências. Ninguém diz isso por um motivo muito simples: o pessoal que se interessa por lógica não presta atenção na poética e na retórica e o pessoal que se interessa pela poética e retórica --- o pessoal das Letras ---, não presta atenção na lógica-analítica. A própria divisão do trabalho, que é tão característica da universidade moderna, bloqueia a visão de uma unidade que está ali gritando e se exibindo à plena luz do dia.
Logo depois que publiquei a Teoria dos Quatro Discursos, um ou dois anos depois, apareceu o livro de uma senhora chamada Karen Black [00:19:08**] que descobriu também a mesma coisa, se bem que não com a amplitude que coloquei, porque eu mostrei ali que a Teoria dos Quatro Discursos contém em germe um critério de história cultural, visto que estes quatro discursos não aparecem ao mesmo tempo. Ou seja, para aparecer uma forma de discurso, tem de ter tido a outra anterior, e o poético é sempre o inicial. Pode-se ver em qualquer civilização − a não ser que tenha havido um brutal enxerto de uma civilização externa − que elas seguirão necessariamente, na evolução do seu discurso e dos seus critérios de credibilidade pública, essas quatro etapas.
Analisando-se uma tribo de índios que não teve muito contato com a civilização, vai-se observar que [0:20] o discurso dominante é poético e que existe um rudimento de discurso retórico nas assembléias, mas o domínio que eles têm da retórica não se compara ao domínio que têm da linguagem poética. E, por outro lado, o discurso dialético pressupõe a existência prévia de uma multidão de discursos retóricos em circulação, de modo que, a coexistência, o conflito de vários discursos retóricos, aparentemente todos persuasivos, opostos e conflitantes nos seus conteúdos, força alguém a compará-los. E, na hora em que se começa a comparar os vários discursos retóricos, começou a ciência da dialética. E, sem a ciência da dialética, seria impossível formalizar mais tarde a ciência da lógica, de maneira que essa não é uma seqüência causal − eu não estou falando de causas históricas, estou falando de condições sem as quais certas coisas não podem acontecer.
Eu afirmo que não pode existir uma sociedade que tenha um domínio do discurso dialético, sem que antes haja discursos retóricos em profusão. Se vocês querem saber, a sociedade brasileira não chegou ainda ao nível do discurso dialético. Nas nossas discussões públicas, quando se tem um discurso retórico bem feitinho já é para soltar rojão e festejar, porque, em geral, não chega nem a isso. O que se tem é aquela cópia mal feita da retórica que é a erística, que é uma falsa retórica, na verdade. Aristóteles diz: "Na retórica, partimos de coisas que são geralmente acreditadas pela platéia; na erística, partimos de coisas que você atribui à platéia, mas que a plateia, no fundo, não acredita. Então você cria uma falsa opinião pública, um falso consenso e raciocina a partir dele". Essa é a definição que o Aristóteles dá do discurso erístico, ou contencioso --- como se poderia traduzi-lo.
Sem uma massa de discursos retóricos e erísticos em circulação não faz sentido cotejar uns com outros para descobrir a verdade por trás deles. Ou seja, ninguém vai tratar de um problema, se o problema não apareceu. O problema da pluralidade dos discursos igualmente críveis é que provoca o surgimento da dialética, com Sócrates; ele começa a comparar uma coisa com outra. Ele não compararia uma coisa com outra se essas coisas não existissem antes. Isso que eu estou falando é o óbvio!
Eu só vi, de fato, a idéia da unidade dos quatro discursos em São Tomás e Avicena, e é uma idéia que simplesmente não foi explorada pelos estudiosos subseqüentes de Aristóteles. E realmente você pode procurar nas obras do Giovanni Reale e ver se tem isso em algum lugar. Mas nem estudiosos ultra-especializados em Aristóteles, como Enrico Berti, chegaram nisto aí, ninguém chegou. Simplesmente ninguém chegou porque ninguém perguntou. Talvez não tenha ocorrido a nenhuma dessas pessoas a idéia de olhar a obra de Aristóteles com os olhos de Avicena, como eu tive. Com os olhos de São Tomás muita gente teve, mas sabemos que a corrente neoescolástica tem todo um lado puramente apologético: quer mostrar que as idéias de São Tomás de Aquino têm as chaves de todos os problemas do universo, coisa que obviamente não tem, nem São Tomás jamais pretendeu que tivesse. Muito da escola neoescolástica é prejudicada por isso. Dos neoescolásticos, aquele que mais aprecio é André Marc, autor da Psicologia Reflexiva, à qual sem dúvida devo muito; mas esse assunto ele simplesmente não estuda. Ele não menciona essa questão dos quatro discursos de Aristóteles em parte alguma. O fato é que nesse estudo só tive dois antecessores: São Tomás e Avicena; e o próprio Aristóteles, evidentemente.
Mas o indivíduo acredita que vem com um inside information: "eu estive lá, eu sei da tariqa..." Mas eu já contei esta história um milhão de vezes...
(...) --- a unidade dos quatro tipos de discurso estudados por Aristóteles (o poético, o retórico, o dialético, o analítico), ao mesmo tempo intentando rever a interpretação do corpus lógico deste: o discurso humano, diz a teoria, é uma potência única que se atualiza de quatro formas (...)
Por que digo isto? Porque, em tudo o que Aristóteles estudava ele sempre distinguia o aspecto da potência e o aspecto do ato. Nada acontece em ato que já não estivesse antes em potência. Se o discurso humano, a capacidade humana de falar, de se exprimir num discurso contínuo, não contivesse em si a potência de se desdobrar nessas quatro manifestações diferentes, isso simplesmente não teria acontecido. Depois houve também várias discussões --- outro dia pessoas, no Facebook, voltaram a isso: e a sofística, e a erística, você não considera como tipos de discurso? Não, os discursos se definem por sua regra positiva e como meios de apreender a verdade. Se eles são usados com outra finalidade, não são tipos de discurso; são uma deformação, uma caricatura, de uma modalidade de discurso já dada antes.
Assim como, se você inventar uma falsa matemática, você não vai colocá-la na história da matemática como um dos capítulos da ciência matemática; isso é a evolução da burrice matemática, e assim por diante. Claro, você pode incluir aquilo como um fenômeno histórico, mas não como um elemento que é importante, válido, e fecundo para os estudos presentes de matemática. Assim como as teorias biológicas falsas podem fazer parte da história cultural, mas não são conhecimentos que continuem embutidos na ciência contemporânea.
Deste modo, parti do princípio de que, como Aristóteles diz claramente que "é natural no homem conhecer a verdade", conclui que os quatro tipos de discurso são aproximações da verdade. E aquilo que se afasta disso, consciente ou inconscientemente, não é um tipo diferente de discurso: é uma deformação de um discurso prévio, assim como, se o sujeito faz um raciocínio lógico errado, ele não cria uma nova lógica; ele simplesmente está usando a lógica de maneira falsa ou errada. É por isso que não incluí a erística e a sofística como tipos de discurso. Acho que o simples fato de o sujeito incluir − porque tem muita gente que afirma que, entre os tipos de discurso, Aristóteles reconhece a sofística, a erística etc. − isso já é um erro. Significa que o sujeito, para fazer isso, precisa não ter entendido a unidade da ciência do discurso em Aristóteles.
O discurso, para Aristóteles, é um meio de apreender a verdade, e não meio de dizer qualquer coisa; mesmo no caso da simples retórica, que é uma persuasão baseada no que a platéia já crê, existe o elemento de verdade. E, quanto à poesia, Aristóteles chega a dizer que a poesia é mais verdadeira do que a história, porque a história pega apenas fatos isolados e a poesia penetra na dimensão universal. A poesia é um meio fundamental de se chegar à verdade; a retórica também, porque a retórica é a busca da verdade consensual, ou seja, algo de que você não tem provas definitivas, mas que revela ao público aquilo que todos eles já crêem. Ou seja, revela o status quaestionis na mente do público num certo momento, e isto, sem dúvida, é uma investigação da verdade.
Para um indivíduo raciocinar baseado não em premissas científicas ou premissas aceitas pelos sábios, mas raciocinar simplesmente a partir do que ele imagina que o povo crê, ele tem de saber o que o povo crê. Portanto, existe uma espécie de investigação sociológica. Tanto é assim que, no livro da Retórica, Aristóteles traça um perfil dos vários tipos de público --- por exemplo: mentalidade dos jovens, mentalidade das mulheres, mentalidade dos militares, mentalidade dos políticos etc. ---, mostrando o que, para um desses públicos, parece verossímil. Então a retórica pressupõe e contém dentro de si uma sociologia da opinião pública e, neste sentido, ela é sem dúvida uma busca da verdade. É uma verdade que não expressa necessariamente a realidade objetiva do objeto do qual se está falando, mas expressa a opinião pública.
Ora, o conhecimento da opinião pública não é um conhecimento? Saber o que as pessoas pensam, por exemplo, saber em quem eles vão votar na próxima eleição ou qual é a religião dominante, isso não é um conhecimento? É claro que é um conhecimento. Então o discurso retórico também éuma busca da verdade, ao passo que a sofística e a erística são propositadamente meios de pura manipulação. [0:30] O sofista não está interessado na busca da verdade, ele não acredita na existência da verdade; ele acredita apenas em manipulação. É claro que, nesse sentido, a falsa ciência será sempre devedora da verdadeira ciência, porque algum dado efetivo, verdadeiro e confirmado o sofista precisará saber para poder manipulá-lo. Por exemplo, ele precisa saber os seus pontos fracos, precisa saber quais são os pontos cegos no seu horizonte de consciência e assim por diante. Mas, note bem, o conhecimento dessas realidades efetivas --- que o sofista necessita para poder ludibriar eficazmente as pessoas --- não fazem parte da sofística; elas são recebidas de outras ciências, inclusive da retórica. E é por isso que não coloquei nem a sofística nem a erística entre os tipos de discurso.
Tem um rapaz enormemente talentoso, chamado Augusto Flack, que descobriu inúmeras menções a tipos intermediários de discursos. Por que não vou colocar os tipos intermediários? Porque só usei o critério do próprio Aristóteles da diferenciação máxima entre os discursos, até montando a coisa num diagrama em cruz, onde, se o autor do discurso toma certa direção --- por exemplo, a direção retórica ---, ele vai se afastar das outras três direções possíveis. Então esse critério de diferenciação máxima continua vigorando. Ademais, não estou fazendo uma história dos quatro discursos ao longo do desenvolvimento temporal da civilização do Ocidente: estou fazendo uma análise dos quatro discursos tal como aparecem em Aristóteles. E Aristóteles de fato só escreveu sobre esses quatro --- a poética, a retórica, a dialética e a lógica --- e concedeu uma parte às refutações sofísticas, sem constitui-la como um tipo independente de discurso.
Veja: se a sofística e a erística pudessem ser tipos independentes de discurso, seria o mesmo que dizer que a mentira e o erro são modos de raciocínio válidos; não pode haver uma ciência da mentira. Ou seja, a ciência tem de ser baseada sempre na busca da verdade --- a mentira e o erro entram como elementos opositivos ou negativos. Tentar fazer com que eles se tornem tipos substanciais de discurso é tomar a sombra como se fosse um tipo de corpo. Há vários tipos de corpos; há, por exemplo, objetos industriais, animais, plantas etc. e existem sombras. A erística é uma sombra da retórica, e a sofística é uma sombra da dialética. Isto quer dizer que, embora a sofística tenha se disseminado antes da dialética, Sócrates mostra que elementos da ciência dialética, quase inconscientes, já estavam embutidos na sofística.
E a hipótese de abordar isso como um modelo de história cultural não ocorreu a ninguém e não foi explorado depois disso. Infelizmente não tive tempo de tratar de uma edição inglesa deste livro. Até enviei para uma editora daqui, e disseram: "O texto está muito bom, é maravilhoso, mas é muito pequenininho (porque mandei sem o apêndice). Nós não podemos lança-lo assim. Por favor, complete-o, escreva um livro de 300 páginas, e nós publicaremos". Mas não tenho tempo para fazer isso. Ele é pequeno demais para ser lançado em forma de livro por uma editora americana e é grande demais para ser publicado como trabalho científico numa revista. Então tenho um problema: não tenho tempo para cuidar disso. E também não tenho aqui um relações públicas, uma secretária. Para fazer contato com uma editora, teria de ir para Washington, para Nova Iorque. Não dá para fazer isso. Mas a coisa teve alguma difusão através do Voegelin View, que reúne alguns dos melhores estudiosos da área no EUA. E toda aquela gente entendeu que se tratava de um negócio totalmente inédito, em que ninguém tinha tocado antes.
(...) --- expressando estruturas gerais de possibilidade (poética), estruturas gerais de verossimilhança (retórica), estruturas gerais de probabilidade (dialética) e estruturas gerais de certeza (lógica ou analítica). As mediações entre o indivíduo e o conhecimento, sobretudo o difundido socialmente, podem, então, dar-se através desses quatro níveis --- de um pólo estritamente mais simbólico, o primeiro, até um pólo, por oposição, mais analiticamente discernível. (...)
Quer dizer que a passagem do poético para o lógico se dá através de uma série de mediações e depurações, que é exatamente aquilo que o Eric Voegelin chama descompactação dos símbolos, que é um termo que ele usa em tudo quanto é lugar, que é uma das bases do pensamento dele e que ele nunca explicou exatamente como se faz --- essa descompactação. É por isso que o pessoal do Voegelin, quando mandei esse texto para eles, disseram que eu estava colocando ali um pilar para sustentar o edifício do Voegelin. Ele tem toda razão quando diz isso, mas ele de fato não explica como se dá esse processo de descompactação e diferenciação dos símbolos.
Ora, neste processo existe um aprimoramento da precisão e um aprimoramento da consciência crítica, por assim dizer, quando os vários níveis, as várias camadas de significado dos símbolos, vão sendo descascadas, e se vê ali uma mistura de verdades e de erros porque a linguagem poética é analógica. E a analogia, como já explicava o Mário Ferreira dos Santos, é uma síntese de semelhanças e diferenças. Portanto, nenhum símbolo em si pode ser verdadeiro ou falso: ele contém o verdadeiro e o falso misturados, por assim dizer. E, com o tempo, você vai descascando as várias camadas, então você pode separar o que é o verdadeiro e o falso. Nesse processo existe um ganho em matéria de precisão e consciência analítica, porém existe uma perda também: a perda da comunicabilidade imediata dos símbolos.
Os símbolos têm essa comunicabilidade imediata precisamente porque ele expressa a experiência humana no seu aspecto mais primitivo e imediato; é a expressão de impressões, como dizia o Benedetto Croce. Ora, a expressão de uma impressão não pode ser julgada verdadeira ou falsa, é apenas uma impressão que você teve. E a poesia se notabiliza pela sua capacidade de registrar, condensar e expressar essas impressões de tal maneira a torná-las reconhecíveis. Ou seja, as grandes experiências da poética universal são experiências compartilháveis por outras. Ainda que elas vivam em situações totalmente diferentes daquelas das quais o poeta está tratando, essas impressões básicas, essas experiências imediatas, soam reconhecíveis.
Por exemplo: a experiência do ciúme no caso de Otelo, a experiência da ambição de domínio no caso de Crime e Castigo, ou a ambição de consertar o mundo, de reformar o mundo, como Dom Quixote. Tudo isso são experiências que reconhecemos, embora vivamos em outra época e em outro lugar. Porém, essas impressões não contêm verdade e erro no sentido do discurso dialético ou lógico, porque todo símbolo é plurissenso: ele tem várias camadas de significado. Ele significa várias coisas --- algumas delas contraditórias entre si, então é preciso descascar. Esse processo acontece ao longo da história e vê-se nitidamente a passagem do símbolo compacto para as idéias --- conceitos descompactados e analisados.
Tenho insistido muito que, no Brasil, as pessoas só sabem pensar por figuras de linguagem. Ou seja, estão fazendo uma retórica chinfrim cuja validade é no máximo poética, quer dizer, estão expressando suas impressões e não têm idéia de que, por baixo e dentro de uma figura de linguagem, existem diferentes camadas de significado, e que só se pode atingir a realidade do objeto do qual se está falando sem descascar essas várias camadas. Por quê? Porque ali você descobrirá várias contradições: são visões contraditórias que temos de um mesmo objeto porque esse objeto nos chegou numa experiência, numa impressão momentânea, em que essas várias perspectivas se cruzavam e apareciam misturadas. Então criavam aquilo que Aristóteles chamou uma síntese confusa. [0:40] Toda experiência humana poeticamente expressa é uma síntese confusa.
Quando você desdobra, analisa essa síntese confusa, você descobre várias linhas contraditórias, várias maneiras diferentes de encarar o mesmo objeto. E essas várias linhas, que justamente a dialética discerne e expressa, constituem como que perspectivas diferentes que um desenhista tomou para medir certo objeto no espaço; e é da convergência dessas linhas contraditórias que aparece a verdadeira figura do objeto. Sem isso realmente não é possível. É aquilo que o Raymundo Abellio chamava uma acumulação intolerável de contradições: quando a acumulação de contradições chega a um nível intolerável, então aí o objeto aparece e ele diz a que veio. Portanto, sem este processo da descascagem analítica da figura de linguagem, simplesmente não sabemos do que estamos falando, estamos apenas trocando impressões confusas.
Por exemplo, em outro dia escrevi um artigo a respeito de uma entrevista que D. Marilena Chauí deu à revista Cult. Eu conheço bem a obra da Marilena Chauí, li muita coisa dela, portanto não estou julgando por uma coisa que ela disse numa entrevista. Inclusive, acredito que sou a única pessoa no universo que leu o livro A Nervura do Real do começo ao fim --- só ela leu; nem a mãe dela leu. (Aliás, eu conheci a mãe dela, excelente senhora, não entendia coisa nenhuma de filosofia; muito menos o pai que também era meu amigo.). Naquele artigo ela diz que existem dois tipos de violência: a violência revolucionária que é feita para destruir uma estrutura de classe e colocar outra classe no poder e que, portanto, é uma violência racional e justificada; e existe a violência fascista que é baseada num simples ódio ao outro, ao diferente. São duas figuras, duas imagens que expressam a impressão que ela tem. Porém, isso corresponde a algum objeto historicamente identificável? Vamos examinar um pouquinho:
Na Alemanha, os judeus estavam profundamente integrados na cultura, tanto que a própria língua deles, o iídiche, não passa de um alemão modificado. Estavam ali presentes na Alemanha há tanto tempo e tão profundamente integrados que, em 1914, eles foram uma das comunidades que mais intensamente participaram da onda de entusiasmo guerreiro para desencadear a I Guerra, do qual dá testemunho o livro do Max Scheller O Espírito da Guerra e a Guerra Alemã, por exemplo. E eles estavam tão bem integrados na cultura alemã que às vezes era difícil distinguir o que era cultura judaica e o que era cultura alemã, e dei como exemplo disso o livro do grande romancista Jacob Wassermann, que é um livro de memórias que se chama Meu caminho como judeu e como alemão, onde ele via que as duas coisas eram absolutamente inseparáveis.
Isto quer dizer que o judeu, na Alemanha, não era de maneira alguma o outro, o diferente. Era um país que tinha tido ministros judeus; Walther Rathenau, gente importante que então representava a comunidade, como Disraeli representou na Inglaterra. Eles não eram o outro, não eram o diferente; diferente era o africano, era o chinês, eram os índios da América Latina. O judeu não, ele estava lá no meio há séculos. Isto quer dizer que, se os nazistas pregaram o ódio ao judeu, não pode ser na base de ele ser simplesmente o outro ou o diferente, ao contrário: eles criticavam o judeu, acusando-o de ser a classe dominante e exploradora. Foi exatamente isso que fizeram. E para criar uma impressão de estranheza forçada tiveram de apelar a uma biologia racista do século XIX, do Houston Chamberlain, no qual nem o próprio Hitler acreditava verdadeiramente. Ele diz nas entrevistas ao Hermann Raushning: "Eu não acredito nesta coisa, mas precisamos dela".
Se o sujeito fosse realmente diferente, precisaria criar-se toda uma falsa biologia para tentar dar-lhe ares de estranheza. Então o judeu era atacado, em primeiro lugar, como capitalista explorador; exatamente no sentido em que Karl Marx o atacava no livro A Questão Judaica. Portanto, tratava-se de dar um sentido de luta de classes à luta de raças ou, vice-versa, um sentido de luta de raças à luta de classes, exatamente como está na Questão Judaica de Karl Marx e como Stalin, no mesmo instante, estava sugerindo ou ordenando a todos os partidos comunistas do mundo. Uma ordem que, aliás, no Brasil foi cumprida à risca pelo Dr. Florestan Fernandes: toda a obra dele não passa de uma ilustração da propostas de Stalin de dar sentido de luta de classes à luta de raças, e de luta de raças à luta de classes. O que os alemães fizeram foi exatamente isto: é uma luta de classes; nós, os pobres alemães, estamos sendo explorados e esfolados por esses malditos capitalistas judeus.
Em segundo lugar --- a segunda nuance: os capitalistas judeus não são apenas capitalistas exploradores, mas são capitalistas internacionais. Eles não são só o explorador local, mas são o inimigo estrangeiro que usa as exigências do Tratado de Versailles para nos explorar, nos obrigar a trabalhar de graças etc. etc. Então o judeu era visto como o aliado das potências que estavam realmente oprimindo a Alemanha naquele momento. Para se ver como isso era absurdo: na França, na mesma época, a direita francesa via os judeus essencialmente como aliados e agentes da Alemanha, de modo que as primeiras advertências que apareceram contra a ascensão do poder militar nazista vieram de intelectuais de direita que eram ao mesmo tempo ferozes anti-semitas.
Para ver como a história não é esse esquema simplório que a D. Marilena Chauí pretende impingir às pessoas. Ela pega dois tipos ideais --- o revolucionário e o fascista ---, que são uma impressão que ela tem. Mas o que isso tem a ver com o objeto externo − o objeto real da ciência histórica? Não tem nada a ver. Pura imaginação; uma expressão de impressões. Então ela está fazendo discurso poético e expressando o seu ódio de uma facção que no fundo, no fundo, pensa como ela. Isto é, alguém que vê a luta de raças como luta de classes.
Para piorar a coisa formidavelmente, que força social o Hitler efetivamente representava? Hoje sabe-se que as bases financeiras do Partido Nazista vinham sobretudo das contribuições da classe operária alemã. Então aquilo era realmente uma luta de classes; personificada numa parte da classe dominante, que era estrangeira, porque tinha alianças com a França, Inglaterra etc. etc.
O que fizemos aqui? Descascar as várias camadas do símbolo e verificar ao que elas correspondem no mundo externo. É isso o que o Voegelin chama descompactação. Claro que esse é um exemplo muito miúdo − ele faz a análise de símbolos, às vezes milenares, e eu aqui estou falando apenas de uma criaturazinha insignificante do Terceiro Mundo que faz uma confusão mental para enrolar estudantes semiletrados.
(...) Estão em jogo aí diferentes níveis de credibilidade do discurso humano; mas estão, também, as diferentes formas de reivindicação indevida de credibilidade, o que requer estudo tanto da erística quanto das condições epistemológicas do saber científico, ou seja, uma filosofia da ciência (...)
Veja que, embora não tenha colocado a erística como uma das quatro modalidades de discurso − porque ela é apenas uma caricatura delas − eu dediquei alguma atenção a ela nos comentários a Schopenhauer, um livro que foi sugerido pelo José Mário Pereira porque ele era o editor e ele havia lido e publicado o meu livro sobre Aristóteles, e ele achou que alguma atenção à erística valeria a pena, como de fato valeu.
(...) tanto da erística quanto das condições epistemológicas do saber científico, ou seja, uma filosofia da ciência. Há que se considerar ainda, todavia, as formas próprias que o discurso adquire, umas sendo mais adequadas ou menos a discursos neste ou naquele nível --- e então há de se atentar aos fundamentos metafísicos dos gêneros literários (...)
Ora, os gêneros literários são um fenômeno com o qual tropeçamos a partir do momento em que abrimos a boca. [0:50] Os gêneros literários não são tipos de discurso no sentido do grau de credibilidade; eles não têm nada a ver com o grau de credibilidade. Eles são apenas diferentes maneiras de montar o discurso --- seja sob forma narrativa, seja sob forma de análise, sob uma narrativa mais longa ou mais curta, uma narrativa que é contada, por exemplo, como num romance ou numa epopéia e uma narrativa que é mostrada como no teatro. Ou seja, são modalidades de expressão que temos de escolher. No momento em que você começa a dizer alguma coisa, você o diz, primeiro, com algum grau de credibilidade --- credibilidade poética, por impressão, ou credibilidade verossímil (estou dizendo algo que a platéia aceitará porque pensa como eu), ou credibilidade razoável (exame dialético), ou com pretensões de credibilidade absoluta, como a demonstração matemática. Necessariamente você faz essa escolha, mesmo que não saiba que está fazendo, porque só existem esses quatro níveis de credibilidade; e você, quando diz alguma coisa, traz consigo os elementos de credibilidade de que você dispõe, e fatalmente eles estarão num desses quatro níveis.
Por outro lado, você terá de escolher uma maneira de organizar o discurso, o que não tem nada a ver com o nível de credibilidade. O nível de credibilidade é só um dos critérios, mas existem outros que correspondem às diferenças estratégias verbais que podemos usar. E aí é interessante porque, às vezes, os gêneros literários não correspondem aos quatro discursos. Por exemplo, você pode tentar um discurso poético expressando algo do qual você tem uma certeza científica. Isto se fez muitas vezes. Até a Renascença era muito comum publicar tratados científicos sob a forma poética. Isso quer dizer que se está adotando um gênero poético com um nível de credibilidade que não é poético; que pode ser dialético ou até lógico. Então, veja que não é uma coisa automática a transição, a relação, entre os gêneros literários e os quatro discursos; eles não correspondem: você tem aqui uma grade e ali tem outra, e elas se deslocam.
E existe ainda uma quinta grade, que usávamos, que eram os chamados modos aristotélicos, que se referem especificamente às obras de ficção e na qual ele distingue as várias obras pelo nível de poder do personagem central --- que pode ser um deus ou semideus, um herói no sentido grego da coisa, uma pessoa nobre e excepcional, uma pessoa comum ou um idiota completo; são esses cinco níveis. Nas obras de ficção entra essa outra grade que também não coincide com os quatro discursos. Isso quer dizer que eu estava dando essas três grades --- os quatro discursos, os gêneros literários e os modos de Aristóteles --- para que as pessoas aprendessem a cruzar essas coisas com relação a cada obra, a cada discurso em particular que elas lessem.
No caso dos gêneros literários, a minha dívida para com a escola perenialista é profunda, porque baseei tudo na exposição de espaço e tempo feito por Ananda Coomaraswamy, não Guénon nem Schuon, que explicam isso muito por alto; mas Ananda Coomaraswamy --- que tem um livro, O Tempo e a Eternidade, que é dedicado a isso. E os conceitos básicos de tempo e de espaço que uso ali são da Ananda Coomaraswamy, e eu reconheci claramente isso.
(...) então há de se atentar aos fundamentos metafísicos dos gêneros literários, cuja teoria, grosso modo, ao levar em conta a modalidade de existência espaço-temporal da linguagem e do ser humano que se serve dela, aplica ao discurso distinções espaciais, temporais e numéricas (...)
Diz Ananda Coomaraswamy: "Estas três são as três condições do mundo sensível: o espaço, o tempo e o número ou quantidade". E eu uso esses conceitos para dividir os gêneros literários.
(...), delas extraindo os princípios da "narração", "exposição", da "prosa" e do "verso".
IV. Se o discurso é o meio eminente pelo qual o indivíduo se apossa do saber, a finalidade deste, enquanto ser dotado de consciência, não é se limitar ao mero domínio discursivo do saber. É chegar ao próprio saber, o que é ademais verificar suas próprias condições de existência. É, numa palavra, chegar à base metafísica primeira, à investigação daquela faixa da realidade que Platão visava em sua "segunda navegação", para além das "idéias" e rumo ao mundo dos princípios que as regem, entre os quais o de identidade tem primazia. Tudo o que existe é na medida em que tem possibilidade de sê-lo, de modo que as atualizações das notas de cada ente têm seu esteio em uma estrutura de possibilidades preexistente --- por exemplo, a própria possibilidade ontológica (...)
Eu mesmo defini a metafísica como estudo da possibilidade universal.
(...) --- por exemplo, a própria possibilidade ontológica (da qual a lógica é só expressão discursiva) de que algo seja a atualização de uma potência. A possibilidade da possibilidade conduz a inteligência à investigação do que de mais substantivo e duradouro possa ter um ente. (...)
Veja que tudo o que chamamos de ciência, absolutamente tudo, consiste em examinar os entes dados na experiência à luz do conceito de necessidade. A ciência busca elos necessários entre as coisas, entre os vários fatores, e quando não os encontra esboça pelo menos um elo probabilístico; ou dialético se quiserem. Mas podemos perguntar "a necessidade rege tudo o que acontece?" Evidentemente não. Existem coisas que acontecem, mas poderiam não ter acontecido. Isso quer dizer que a abordagem científica é limitada e limitante por sua própria natureza. Para a ciência não existe realidade, só existe necessidade. E pode ser uma necessidade absoluta, no caso de uma demonstração matemática, ou pode ser uma necessidade relativa ou probabilística, como na física. Ou seja, aquilo que não tem necessidade nenhuma, aquilo que é absolutamente imotivado ou caótico, pode ser objeto de uma descrição matemática, mas não de um estudo propriamente científico. O fato de você descrever matematicamente uma forma caótica não a submete a um elo de necessidade. Então para a ciência só existe necessidade.
É curioso vermos que muitas pessoas que praticam ciência não têm consciência disso; elas acham que estão estudando a realidade. Ora, mas quando elas vão delimitar o objeto do seu estudo, já não o separam dos elementos acidentais? Separam, senão não teria nem como começar o estudo. Ora, a realidade concreta se constitui dos fatores essenciais e dos fatores acidentais mesclados, inseparavelmente unidos. É o que chamo acidente metafisicamente necessário: é um acidente que não tem nada a ver com a essência dos objetos considerados, mas que, se não acontecesse, o próprio fato a examinar não aconteceria. Por exemplo, se acontece um crime, o criminoso e a vítima têm de estar vestidos ou pelados; eles não podem estar num terceiro estado, eles têm de estar vestidos de alguma maneira. Isto tem algo a ver com o crime? Em geral não tem. Mas se não estivessem vestidos nem pelados, não estariam no universo. Então este é um acidente metafisicamente necessário.
Isso quer dizer que o universo inteiro da ciência pouco ou nada tem a ver com a realidade concreta; ele tem a ver apenas com a parte da realidade que está submetida a elos de necessidade absoluta ou relativa, verificáveis e quantificáveis; porque falar em probabilidade não-quantificada é uma contradição de termos. Se existe uma probabilidade, ou ela é de 30% ou 60% ou 2% ou 100%; probabilidade X% não existe.
(...) Mas, nesse caso, a palavra investigação não é a mais apropriada. Trata-se mais, via confissão, da aceitação desse corpo de possibilidades em tudo embutido; trata-se de um conhecimento por presença, (...)
Essa idéia do conhecimento por presença3 eu achei que tinha descoberto. Depois descobri que um filósofo árabe do século XI [1:00] já tinha matado, mais ou menos, a questão. O que é o conhecimento por presença? Todo e qualquer conhecimento que pretendamos ter, nós o buscamos dentro de um universo que nos antecede e sem o qual não poderíamos investigar coisíssima nenhuma. Isso quer dizer que o mundo que nos antecede, que antecede a nossa busca do conhecimento, é constituído de coisas. Só quando tomamos consciência dessas coisas − quando as integramos no nosso pensamento −, é que elas se colocam como objetos. Objeto é uma coisa distinta de nós que aparece diante de nós. O mundo das coisas não está diante de nós, ele está em volta de nós e nós estamos dentro dele − ele não está dentro de nós. Tudo aquilo que você integra e passa a estar dentro de você já não é pura coisa, é a coisa compreendida como objeto. Portanto, objeto de cognição, objeto de pensamento.
Ora, existe um número ilimitado de coisas que, para você, nunca foram objetos; ou seja, objetos sobre os quais você nunca pensou e que nunca apreendeu distintivamente, mas que estão aí. E sem esse mundo das coisas nenhum conhecimento seria possível. Agora, podemos perguntar: Este mundo das coisas nos é totalmente desconhecido? Nós só conhecemos os objetos? Não, você conta com as coisas porque elas já o antecedem e são a condição dentro da qual você começa a buscar conhecimento e começa a desenhar as coisas sob a forma de objetos dentro do seu pensamento. Então algum conhecimento desse mundo das coisas você tem antes de começar a pensar no assunto, senão não poderia começar a pensar. É isto que chamo conhecimento por presença.
(...), de treinar a consciência para que, ao invés de falar à realidade, deixar que esta lhe fale: (...)
Ou seja, se você começa a prestar atenção no conhecimento que você tem do mundo das coisas e não somente dos objetos − porque os objetos exigem que você pense neles; o objeto se torna objeto para você na hora em que o representa ou define. Mas como disse, por baixo disso existe o mundo das coisas. Então vou começar a prestar atenção no mundo das coisas sem ser como o mundo dos objetos, começar a pensá-lo apenas como uma presença. Presença da qual sempre tive conhecimento e da qual posso esquecer, isto é, fazer abstração: pensar somente no mundo dos objetos e esquecer o mundo das coisas.
Esses termos que estou usando agora foram descobertos pelo John Deely. O Murilo Veras sugeriu o livro sobre o John Poinsot, e aí descobri outros livros do John Deely e estou absolutamente maravilhado. Acho que o serviço que este homem está fazendo não há dinheiro que pague. E ele usa essa distinção tão simples que expressa uma coisa que eu estava querendo dizer antes, mas não tinha o termo, por assim dizer, convincente. Mas quando ele diz que são objetos e, por trás de objetos, existem coisas; as coisas não são objeto de conhecimento no sentido de que são pensadas: as coisas estão aí antes que comecemos a pensar. E se elas não estivessem, não poderíamos transformá-las em objetos e pensar nelas. Então eu disse: ó raios, é uma distinção tão simples entre coisa e objeto, mas eu não tinha pensado em usar essas palavras.
Se começamos a prestar atenção no mundo das coisas, começamos a prestar atenção numa presença --- em algo que não é objeto. Daí aquele exercício que propus de o sujeito deitar no chão, numa noite, de preferência onde ele não esteja vendo muita coisa; e ele simplesmente sentir o chão embaixo do corpo dele e sentir a densidade do chão que o sustenta. Isto não é um objeto do pensamento. Ele não está pensando nisso, ele está vivenciando a coisa tal como está presente. Então à medida que então nos abrimos para o mundo das coisas, para o mundo das presenças, descobrimos que sabíamos muita coisa a respeito dele antes de ter separado e delineado o primeiro objeto de pensamento.
(...) o indivíduo deve se esforçar para perceber que o problema da verdade está submetido ao problema da presença substantiva da realidade. (...)
Este é o ponto que toda a filosofia moderna, desde Descartes, jogou no lixo, passando a considerar que só existiam duas coisas: sujeito e objeto. Mas onde está o sujeito e onde está o objeto? Eles apareceram no ar? Se você divide o mundo entre sujeito e objeto, daí você não tem solução para o famoso problema da existência do mundo exterior, porque pode dizer: tudo o que conheço é objeto, portanto é objeto do meu pensamento, portanto só conheço o meu pensamento, portanto só o pensamento existe. Não tem saída. No plano da discussão, da confrontação de teses, esse idealismo subjetivo que reduz tudo a pensamento é irrefutável, você não tem como argumentar contra ele. Mas o que você pode fazer é rejeitar a colocação inicial do problema: sujeito e objeto, mas onde?
Outra coisa, se você não fosse capaz de distinguir entre coisa e objeto, você não poderia jamais ter um objeto no seu pensamento. É absolutamente necessário distinguir a coisa enquanto você simplesmente tem uma relação presente, real e física com ela e a coisa enquanto objeto do seu pensamento. Se você não fosse capaz de distinguir as duas coisas, você entraria no restaurante e comeria o cardápio em vez de comer a comida; você comeria o signo em vez de comer a coisa. Isso quer dizer que o idealismo subjetivo nasce da redução inicial do problema a sujeito e objeto, como faz Descartes: você apaga a existência do mundo das coisas e sobra somente o sujeito pensante e os objetos nos quais ele está pensando ou que ele está percebendo.
Muito bem, e as outras coisas que não percebi como objetos, mas que têm de estar presentes para que eu possa pensar? Por exemplo, o chão embaixo do meu pé, ou o ar que estou respirando, ou a minha própria vida biológica, ou o funcionamento do meu corpo, que eu desconheço. Claro que podemos mais tarde estudar a fisiologia etc. etc., mas, para poder estudar a fisiologia, será preciso que você já tenha no seu corpo uma fisiologia funcionando, e que ela já estivesse funcionando antes que você a conhecesse --- e ela já estava funcionando antes que você a conhecesse. Portanto, ela não é objeto do seu pensamento: ela é uma coisa, ela é uma realidade antes de ser um pensamento.
Então, de toda uma fase de discussão do idealismo moderno, que infectou profundamente a cabeça das pessoas e que culminaria no negócio do Kant da coisa-em-si inacessível (...) A coisa-em-si pode ser incognoscível como objeto, mas ela tem de estar presente e você a conhece por presença, senão você não estaria nem aí, você não abriria a boca e não escreveria esse livro.
(...) Mesmo a mais refinada técnica lógico-analítica é apenas um meio de retornar ao que sempre aí já esteve. (...)
É o tal negócio: se não usamos a lógica analítica para fazer este retorno à realidade, nós a usamos como ferramenta de construção das idéias. E daí nós ficamos construindo as idéias, analisando as idéias e nunca mais saímos disso.
(...) Eis o nexo remoto entre conhecimento e existência.
V. Eventualmente é necessário, para romper o véu das limitações cognitivas de uma determinada civilização e retornar a essa aceitação da presença, proceder à crítica cultural, (...)
Exatamente. A função da crítica cultural é isto: é pegar todo o mundo dos objetos que estão na nossa mente, que estão na cultura em torno, e buscar por baixo deles as coisas que estavam aí antes de tudo isso e de onde emergiram, por abstração, os objetos da cultura. Isto, é claro, é uma operação que não pode ser feita por nenhuma entidade ou por uma coletividade. Isso só o indivíduo humano real e vivente pode fazer. Isso quer dizer que cada indivíduo tem a capacidade de fazer a crítica da sua cultura inteira, ainda que ele não a conheça extensiva e quantitativamente. Ele pode pegar os elementos mais usuais, mais presentes, e buscar o que existe por trás deles.
Por exemplo, acabo de receber os livros do nosso amigo de Cabo Verde, Casimiro de Pina, que é um livro de filosofia do Direito, em última instância, no qual [1:10] ele ataca essa escola positivista ou neopositivista, ou jus positivista, que toma como ponto de partida a lei, a norma positiva existente, e que não quer saber o que tem por trás disso. Só que se você pegar a norma positiva como se fosse o começo da conversa, você vai imaginar que ela saiu do nada, que ela caiu do céu, e não que houve pessoas humanas que, baseadas nos seus valores, crenças, sentimentos e decisões, baixaram aquelas leis. Você não quer saber de onde as leis vieram, então a lei passa a ser um ente metafísico e o começo de todas as coisas. E ele escreve um livro esplêndido exatamente contra isso buscando encontrar, por baixo da norma positiva, por baixo do edifício das leis, a fonte real de onde elas emergiram --- que são decisões humanas
(...), que poderia ser definida provisoriamente como o ato pelo qual uma consciência individual investe contra as estruturas simbólicas ou políticas que lhe embotam a sensibilidade. (...)
É exatamente o que o Casimiro de Pina está fazendo.
(...) Tais estruturas podem, por um lado, ser tão só simbólicas e discursivas --- nas artes, nas ciências e na comunicação pública ---, ou, por outro, podem mesmo chegar ao cerceamento físico da liberdade de consciência. Aqui, o objeto de crítica cultural mais extensa é a metamorfose da idéia de império ao longo da história do ocidente (...)
O livro O Jardim das Aflições, grande parte dele, é uma história das transmutações da idéia de império. Eu paro a narrativa ali na constituição do império americano e insinuo alguma coisa sobre o império globalista, mas reconheço que a análise parou antes do seu estado atual. Muita coisa que escrevi depois é justamente sobre essa nova modalidade de império que vemos agora --- esses três impérios em disputa: o império ocidental, russo-chinês e islâmico ---, então o livro precisaria ser complementado. Mas acho que nesse sentido, meu debate com o professor Dugin é o complemento perfeito d'O Jardim das Aflições porque ele continua a análise de onde O Jardim das Aflições parou.
(...) metamorfose da idéia de império ao longo da história do ocidente e a idéia correlata de "religião civil", com o que se investe no rastreio dos fundamentos remotos da ideologia coletivista e cientificista contemporânea. Cientificismo e nova pax romana, separados sob outros aspectos, dão as mãos no achatamento do horizonte total da experiência humana (longamente preparado, por exemplo, desde as idéias de volonté générale e de quantificação geral das ciências físicas). O drama da vida humana, antes concebido como de almas substantivas a viver sub specie aeternitatis, passa a ser o de papéis sociais limitados a um mundo espaço-temporal inteiramente fechado (vários exemplos poderiam ser colhidos na cultura geral: Dostoiévski seria um autor ainda ligado à primeira perspectiva; já os personagens de Balzac se conformariam quase que só à feição da segunda). Com a negação da via de acesso à universalidade da experiência, em grau metafísico, vem também a negação da própria possibilidade de conhecimento do indivíduo. (...)
É claro: a partir de certo momento, o indivíduo só se conhece a si mesmo a partir do papel social que ele representa, como se não houvesse nada por baixo disso. E a identificação do indivíduo com o seu papel social --- quando não é um papel social livremente escolhido do qual o indivíduo tem consciência e cujas limitações, portanto, ele conhece --- cria evidentemente uma segunda personalidade em cima da primeira. Por exemplo, suponha um juiz de direito que siga a escola neopositivista: ele raciocina apenas a partir da lei escrita, da norma positiva, sem querer levar em consideração os valores e crenças que estão ali subentendidos. Isso quer dizer que o julgamento que ele profere é como o que um computador proferiria: ele pega a norma e aplica ao caso individual sem querer sondar o significado maior disso dentro do quadro geral da vida humana. É claro que é um papel social que, ajudado pelo apoio que ele recebe da coletividade, substitui completamente a personalidade real. Então, conversando com esse juiz, você não está conversando com uma pessoa humana autoconsciente, você está conversando com uma máquina de aplicar leis.
(...) Existiria um vínculo indissolúvel entre a objetividade do mundo e a individualidade da experiência, (...)
Isso aqui e básico, básico, básico... Aristóteles diz que só há a existência individual. Tudo o que existe, existe como uma unidade; não existe existência genérica. Suponha, por exemplo, uma espécie animal. A espécie animal só existe nos indivíduos que a exemplificam; ela não existe em si mesma. Você pode raciocinar com a espécie animal e isso não quer dizer que a espécie animal também não exista. Sim, ela existe, mas ela não existe em si; ela existe nos indivíduos que a materializam, por assim dizer.
E você vê uma tendência, na modernidade, de fugir dos entes individuais concretos e lidar somente com generalidades abstratas. Por exemplo, fazer uma história onde leis, forças e tendências agem sozinhas; como se não precisassem de agentes humanos, como se os agentes humanos fossem apenas marionetes que essas forças históricas abstratas pegaram e usaram como se ninguém precisasse tomar decisão nenhuma, como se as tendências históricas se hipostasiassem, se personalizassem e agissem por si mesmas. Isso é uma tendência geral. A história do Fernand Braudel: é isto que ele faz. E este tipo de moda, que pegou, sobretudo, na França, com a escola dos famosos Annales, criou uma história fantasmática onde não existem personagens reais, onde não existem decisões e ações humanas, onde tudo se desenrola como se fosse um processo automático e transumano, por assim dizer.
Mais ainda: toda a escola tradicionalista padece desse mesmo defeito. O René Guénon mostra um desprezo profundo pelo estado individual do ser humano e acredita piamente, por exemplo, nos ciclos históricos --- ciclos que se processam, que se transmutam no tempo, sem qualquer interferência individual humana. Ora, toda teoria de ciclo evidentemente só tem valor analógico porque, onde há um ciclo que está indo em uma direção, há um subciclo que está indo na direção contrária; fatalmente. Por exemplo, ele fala do individualismo moderno. Eu digo: mas o individualismo moderno veio junto com o coletivismo moderno, uma coisa não veio sem a outra, há os ciclos cruzados. O que significa que essa realidade não pode ser descrita em termos de ciclos, embora se possa usar os ciclos como imagens analógicas; só como uma espécie de reagente químico. Cria-se o ciclo como um tipo ideal e o confronta com a realidade para ver o que dá. É um procedimento heurístico, por assim dizer; é da arte da descoberta, mas não é uma realidade histórica objetiva. Mas, para René Guénon, esses ciclos têm uma realidade substantiva. O que significa que − você veja − o sujeito que estava nos antípodas da vida universitária francesa padecia do mesmo defeito da vida universitária francesa.
É curioso, já no tempo em que eu estudava René Guénon junto com Michel Veber --- que era um guenoniano de estrita observância --- já reparava isso: toda a obra de René Guénon, que vem com esse ar de universalidade e com esses ares de coisas trans-históricas, só é concebível na língua francesa de René Descartes. Embora a formação de René Guénon fosse em sânscrito e árabe, há muitas estruturas de pensamento dele que são características da língua e da cultura francesa. Isso quer dizer que aquilo que parece o mais universal e incondicionado está profundamente condicionado ao seu momento. Não sei se existe algum estudo da obra do René Guénon sob este aspecto estilístico --- onde se tem de levar isso em conta e também o aspecto, por assim dizer, mântrico da linguagem, isto é, um estilo que é feito para ter um determinado ritmo e, lentamente, ir envolvendo o leitor nesse ritmo, de maneira que começa-se inconscientemente a pensar como René Guénon [1:20] na medida em que se imita, sem perceber, o ritmo da prosa dele. Que de fato é uma obra-prima, não tem como negar, mas ali existe um forte elemento hipnótico. Acho que nada disso foi estudado com o devido cuidado.
Vocês notarão que ali na minha página, coloquei, na lista dos meus gurus, somente o René Guénon e não o Schuon, porque considero que os guenonianos têm toda a razão quando dizem que a obra inteira do Schuon não passa de uma ilustração de certos pontos do Guénon. Já numa idade avançada o Schuon divergiu do Guénon num ponto específico --- na verdade era um ponto histórico ---, que era saber se os sacramentos cristãos tinham um valor iniciático ou se eles eram apenas sacramentos esotéricos, ritos de agregação, como se diz. O Guénon dizia que eram apenas ritos de agregação e o Schuon dizia que eles eram iniciação cristã. Coisa que mais tarde foi comprovada e aceita pelo Papa João Paulo II, que, no novo Catecismo da Igreja, diz que o Batismo, a Confissão e a Crisma são os elementos da iniciação cristã. Não sei se ele leu essa controvérsia entre Guénon e Schuon -- aliás, que deu um bode desgraçado e fez, inclusive, com que eles se afastassem um do outro − mas, com exceção deste ponto onde há um conflito, o Schuon, que era um pintor e um homem eminentemente visual, de fato produz ilustrações da obra do Guénon. Ele não tem uma autonomia, por assim dizer. Na verdade, autonomia na escola tradicionalista seria autocontraditória porque, na perspectiva tradicionalista, ter uma idéia original não vale nada: o que vale é repetir a tradição. Então discutir-se a originalidade da obra do Schuon em face da obra do Guénon (...) --- se você defende a originalidade, você está indo contra um dos princípios fundamentais do ensino tradicionalista, no qual a originalidade não vale nada. Assim como, por exemplo, na China; durante milênios o ensino das letras foi feito na base da mais estrita imitação e não se valorizava a criatividade, mas a perfeição da imitação. Isso é uma coisa que faz parte da própria mentalidade tradicionalista do René Guénon.
E o que eu acho disso? Acho que existem as duas coisas: existe a imitação da tradição e existe a originalidade. Por quê? Porque nenhuma tradição veio pronta. O próprio René Guénon diz que a tradição se transmite por símbolos compactos. E se se transmite por símbolos compactos, o simples fato de tentar compreendê-los implica alguma elaboração pessoal que você faça em cima. Então existe a convergência, ou a convivência, desses dois elementos que, ora são solidários, ora são antagônicos, que são a tradição e a originalidade tal como você verá nos ensaios que T. S. Eliot escreveu sobre isso: "A Tradição e o Talento Individual". Acho que o Eliot matou a questão, sob esse aspecto.
Não nego o talento individual do Schuon que, como escritor, é muito mais sugestivo, muito mais rico, do que o Guénon, mas que realmente nada acrescenta nem poderia acrescentar. Se o sujeito é um sheik, um representante da tradição, ele não tem de acrescentar nada, ele tem de fazer o possível para vender o peixe pelo preço que comprou. Um certo coeficiente de originalidade não é afastável; você não pode se livrar disso, o próprio Guénon não se livra. O sujeito aprendeu uma doutrina em sânscrito e está expondo no francês de René Descartes. Bom, tem de ter alguma originalidade para fazer isso.
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Aluno: Na aula passada perguntei sobre o comprometimento do ficcionista fiel à Igreja. Retorno com outras duas. O exemplo que o senhor deu do Rabelais me confundiu mais ainda, afinal ele foi incluído no index prohibitorum (...)
Olavo: Isso aí não significa muita coisa porque, se você pega a Patrística grega e latina, que é o patrimônio intelectual da Igreja, lá há um monte de autores que foram considerados heréticos; nem por isso deixam de fazer parte do conjunto. Mesmo porque não são heréticos em tudo e às vezes não são heréticos intencionalmente. O sujeito ter defendido uma doutrina herética não o torna herege necessariamente, porque é necessário confrontar para ver se a intenção foi herética. Hoje em dia, no Brasil, não precisa isso. Você disse uma vírgula que os caras não concordam, eles já dizem que você é herege. Ainda bem que eles não têm palito de fósforo para acender a fogueira. Mas, no Direito Canônico mesmo, você só é considerado um herege quando há uma intenção herética formal, e não porque você cometeu um erro aqui ou ali.
Aluno: (...) Me parece que o problema se divide entre a consciência do indivíduo e a sua intenção com a obra e o impacto do material na cultura e ordem social. Razão da proibição eclesiástica? (...)
Olavo: Sim. Às vezes é uma frase que está lá e que dá uma suspeita de heresia, então coloca-se no index prohibitorum. Mas isso não quer dizer que vão processar o sujeito como herege e nem que ficará eternamente no index.
Aluno: (...) De fato questiono, pois pretendo, como trabalho de conclusão do curso, uma história dos movimentos literários (...)
Olavo: Isso é muitíssimo interessante.
Aluno: (...) Ali devo analisar inclusive o horizonte de consciência e intencionalidade dos autores sobre as modificações sociais que acarretariam, em especial nos recentes romantismo e realismo. (...)
Olavo: Até certo ponto um autor tem a possibilidade e o dever de prever mais ou menos o impacto que ele vai ter, mas depois de certo ponto a coisa escapa do controle.
Aluno: (...) Me parece trabalho para décadas de estudo. O que o senhor acha da proposta? (...)
Olavo: É maravilhosa, mas o campo é demasiado grande, demasiado ambicioso. Existe o livro do Paul Van Tieghem, história dos movimentos literários, só na França; já é um livro de umas quatrocentas páginas. Você pode fazer uma história esquemática do conjunto, sem dar detalhes sobre nenhum, tentando um esquema geral. É possível você fazer isto. Isto é como você comparar a História da Literatura Ocidental do Carpeaux com as Noções de História da Literatura do Manuel Bandeira, que é uma obra puramente esquemática; dá um pouquinho de cada um. Você pode tentar um esquema deste, que seria um mapeamento para um trabalho mais longo posterior. Sugiro que você comece assim.
Aluno: (...) E segundo: caberia uma aula à margem do Curso Online sobre o papel do ficcionista, o que ele precisa ter lido antes de publicar? (...)
Olavo: Podemos fazer isso aqui dentro. Espera mais um pouco que faremos isso.
Aluno: (...) Vimos muito da personalidade filosófica onde o senhor explica que a restauração intelectual começa pela literatura. Então teria como dar algumas aulas dirigidas a este público?
Olavo: Sim. Isso é importante e é necessário. Farei em breve.
Aluno: Em um artigo denominado "Os canalhas da humanidade", inspirado pela leitura das reflexões sobre a Revolução Francesa, de Edmund Burke, João Pereira Coutinho ressalta que "só canalhas amam a Humanidade e só grandes homens são capazes de dizer-se humanidade". Em outro parágrafo, afirma que, nas reflexões do Burke, Rousseau é tratado com uma dureza exemplar: "o filósofo da vaidade", dirá Burke. Alguém que era capaz de proclamar em público seu amor pela humanidade, mas em privado não hesitava em abandonar os filhos na roda dos enjeitados. Intelectuais que gostam de dar sermões humanistas ao público, com olhos lacrimejantes, como nas peças de Arthur Miller, e depois esquecem os filhos com síndrome de down em instituições psiquiátricas, rasurando o fato das suas respectivas memórias (id. Arthur Miller). Na mesma linha de raciocínio, na sua análise, quais foram os intelectuais mais canalhas da humanidade?
Olavo: Os mais canalhas é difícil. Maquiavel, por exemplo, não sei se era um canalha ou um coitado. Acho que ele tentou criar uma imagem de canalha, mas era no fundo, no fundo, um coitado, um homem totalmente desorientado. Não concordo com as interpretações totalmente demonizantes do Maquiavel porque, na verdade, ele era ingênuo demais para ser um demônio.
Sem sombra de dúvida Karl Marx está entre esses grandes canalhas, sobretudo porque ele monta aquela farsa toda com uma habilidade absolutamente extraordinária. E depois de ler o livro do David Harvey sobre a estrutura do capital, [1:30] vejo que a coisa foi mais premeditada ainda porque Harvey explica que existe a diferença entre o método de Karl Marx − que é no fim das contas o método dialético de Aristóteles − e a ordem da exposição que ele segue, que é inversa em relação ao método. Quer dizer: normalmente, no método aristotélico, você pega a multiplicidade dos fatos, busca a sua estrutura profunda, pega um conceito unificante e depois reordena os fatos à luz do conceito. Karl Marx faz exatamente isto. Só que n'O Capital ele começa a enunciar os conceitos finais, que dá a impressão que ele tirou do nada, como o conceito de valor e o conceito de mercadoria, de onde ele vai tirar a tal da mais-valia. Então dá a impressão que é uma coisa arbitrária e ele mostra que não é porque, no fim do livro, vão aparecer os fatos. Quer dizer que a ordem do livro é inversa à ordem do método.
Só que, primeiro, os fatos já foram selecionados em vista da sua conclusão; segundo, muitos desses fatos são falsos. De modo que, ao modificar a ordem da exposição, o que ele faz? Ele coloca os conceitos e depois vai gradativamente caminhando até os fatos, de modo que, quando você chega aos fatos, a sua mente já está tão imbuída dos conceitos que você só os encara sob a ótica daquele conceito; não tem mais saída, é um processo hipnótico no fim das contas. O Voegelin tinha razão. Ele disse: "Marx é um vigarista" (swindler). Acho que isso é a pura verdade. Agora, no século XX, os canalhas começam a se multiplicar de tal modo... Você não pode esquecer o Jean-Paul Sartre, o próprio Marleau Ponty que escreveu um livro endeusando a política de Stalin − depois é verdade que se arrependeu − um camarada como Noam Chomsky que legitimou este genocídio do Camboja, e assim por diante... Os canalhas, no século XX, se multiplicaram muito; é uma coisa inabarcável. Mas, se nós escrevêssemos uma história da canalhice no século XX, seria um livro por certo muito maior do que Os Intelectuais do Paul Johnson.
Aquele livro pode servir como um início dessa pesquisa. Outro livro importante é o do Stephen Koch, Double Lives. E este livro da Diana West, American Betrayal, onde ela mostra o número impressionante de políticos e intelectuais americanos que trabalharam para a KGB, traíram o seu próprio país e assim por diante. E o livro do Ion Mihai Pacepa. Se você vir a canalhice que apareceu na época da ascensão do nazismo: as pessoas que apoiaram, legitimaram, ajudaram a ocultar os crimes, é uma coisa muito mais ostensiva e quase ingênua, por assim dizer, comparada com a canalhice comunista. Em geral, os pró-nazistas como, por exemplo, a Nesta Webster, se apresentavam quase que ingenuamente como adeptos ou partidários daquilo; não têm essa camuflagem. Acho que não existe um criptonazista, nunca vi nenhum --- um sujeito que está colaborando com o nazismo, mas parecendo que é um democrata etc. etc. Nós não vemos muito este tipo. Praticamente podemos dizer que o governo nazista não chegou a desenvolver um aparato de desinformação. Desenvolveu um aparato de difamação, de mentira; isso sem sombra de dúvida!
Mas a desinformação, como já expliquei, só existe quando a acusação ou a notícia falsa vêm, não pela boca do inimigo, mas pela boca de alguém que é da confiança da vítima. Acabo de escrever um artigo sobre isso, contando a história de John Kerry. John Kerry, em 1971, voltando do Vietnã, fez um depoimento no Senado dizendo que tinha visto os soldados americanos cometerem atrocidades horríveis: cortarem orelhas, cortarem cabeças, estuprar uma multidão de mulheres etc. etc. Daí aparece o livro do Ion Mihai Pacepa que diz: "Na época, nós da KGB distribuímos para todas os meios esquerdistas do Ocidente um formulário de acusações aos EUA que inventamos e que o Kerry repetiu no Senado quase palavra por palavra". Agora, você veja, se as acusações saíssem pela rádio de Moscou ou pelo Pravda seria apenas uma falsa notícia divulgada pelo inimigo. Mas repetida por um tenente da Marinha americana, no Senado, e depois ecoada no New York Times e no Washington Post, aí é desinformação da melhor.
Todo esse pessoal que trabalhou com a desinformação --- e que aqui nos EUA é uma multidão --- é uma coisa que não acaba mais, no passado e no presente... Agora nós estamos vendo de novo o John Kerry dizendo que os EUA têm a obrigação moral de intervir para bombardear o Bashar al-Assad, porque ele usou lá gás sarin, e ele diz: "Nós temos provas"; mas não exibe nenhuma. Ele diz: "Não precisa provas: a credibilidade do governo americano basta. Então você tem de acreditar em mim sob palavra". E ao mesmo tempo aparece um monte de vídeos mostrando os jihadistas, e não o governo Assad, soltando gás sarin. Então é literalmente aquele negócio: você vai acreditar em mim ou nos seus próprios olhos? Tipos como esse são abundantes no Ocidente inteiro e, sobretudo, nos EUA. A lista não acabaria mais. Mas como um bom índice, se você quiser só os canalhas americanos, leia o livro da Diana West.
Aluno: Após assistir à sua conversa com o Lobão, retomei a leitura do Lobaczewski, Political Ponerology*, o que me levou a outro livro que tinha começado a ler, mas tinha interrompido:* Les Folies raisonnantes do Paul Sérieux. Já no início do livro, Sérieux define o delírio de interpretação como sendo: 1. uma psicose sistematizada crônica caracterizada pela multiplicidade e organização de intepretações delirantes; 2. Ausência ou penúria de alucinações (...)
Olavo: Ou seja, não há fenômenos sensoriais que acompanham o delírio de alucinação.
Aluno: (...) 3. persistência da lucidez da atividade psíquica; 4. evolução por extensão progressiva das interpretações; 5. Incurabilidade, sem demência terminal. A mim me parece que isso daí se alinha perfeitamente com a sua definição da paralaxe cognitiva.
Olavo: Não totalmente. A paralaxe cognitiva não precisa chegar a um delírio de interpretação, mesmo porque ela não é um fenômeno individual e porque o delírio de interpretação se alastra para todo o horizonte de consciência do indivíduo, e a paralaxe cognitiva não. O indivíduo pode ter a paralaxe cognitiva num determinado ponto e continuar perfeitamente realista em tudo o mais. Não acredito que a paralaxe cognitiva possa ser definida como uma doença mental, ela é um fenômeno característico do pensamento ocidental num certo período; não é um fenômeno da escala da psique individual, de maneira alguma. E outra coisa: a paralaxe cognitiva se alastra por toda a cultura. Então ela ultrapassa o nível de análise que você pode chegar no exame psiquiátrico do indivíduo.
Em alguns casos você vê, sim, delírio de interpretação. Acho que, por exemplo, você vê a diferença do delírio de interpretação e da paralaxe cognitiva nesses dois casos que citei: Nesta Webster e Gustavo Barroso. Eles são casos característicos de delírio de interpretação, mas não têm paralaxe. Por quê? O delírio deles não contrasta com as suas próprias vidas, eles não são exemplos in contrarium do que eles estão dizendo, eles simplesmente acreditam numa história da carochinha e são absolutamente incapazes de sair de dentro daquilo. Um pouco como a Marilena Chauí, ela criou um esquema, um símbolo que condensa a sua impressão, e daí não é mais capaz de sair de dentro desse símbolo e enxerga tudo sob a ótica desse símbolo, mesmo quando os fatos estão gritando ao contrário.
Se você captou, por exemplo, a presença dos judeus na Revolução Francesa: os judeus foram beneficiados pela Revolução Francesa. De fato foram, porém, o fato de que eles tenham sido beneficiados não quer dizer que foram eles que fizeram a Revolução. E você não pode esquecer que, na principal narrativa que foi feita na época, que é o livro do Abade Augustin Barruel, Memórias para contribuir à história do Jacobinismo, não aparece sequer a palavra "judeu"; não tem um único agente judeu que ele menciona ali. Ele fala da preparação da Revolução, da conspiração intelectual, [1:40] por assim dizer, com Voltaire, Diderot e outros. Frederico II da Prússia: o rei da Prússia não era judeu e ele é colocado talvez como um agente principal disto aí. Ali não tem judeu nenhum, tanto que o Barruel não menciona nenhum. Depois, com o Código Napoleônico, pode ser que Napoleão tenha recebido alguma ajuda dos judeus e tenha decido retribuir. Mas vocês não podem esquecer que o Código Napoleônico é muito posterior ao processo revolucionário. Napoleão foi ao mesmo tempo a continuação e o antagonismo, o fim, do processo revolucionário: ele parou o processo revolucionário, estabilizou uma nova situação.
A idéia do cui bono (quem ganhou com isso?) às vezes funciona, às vezes não funciona. Por quê? Porque existe a vantagem acidental, ou lateral. Quando você vê essas generalizações, por exemplo, "os judeus fizeram a Revolução Francesa"; os judeus não fizeram a Revolução Francesa. Agora, o número de judeus no I Comitê Central do Partido Comunista da URSS era enorme, era totalmente desproporcional. "Então foram eles que fizeram para obter vantagem para a sua comunidade?" Não, porque, em menos de vinte anos, eles começaram a se dar mal, perderam tudo e viraram objeto de perseguição. Isso quer dizer que esses indivíduos participaram da Revolução, não em benefício da comunidade judaica, ao contrário: tão logo chegaram ao poder criaram a famosa sessão judaica do Partido Comunista que se infiltrava nas sinagogas para prender os rabinos. Já mencionei muitas vezes as memórias do Rabino Menachem Schneersohn que conta que passou 16 anos na cana. Aí você está misturando o nome de uma comunidade com a designação de um agente efetivo. "Os judeus" é um coletivo. Dentro deste coletivo tem todo mundo, inclusive o perseguidor de judeus está lá dentro também. Então você tem de desdobrar para ver efetivamente quem fez a coisa e quem ganhou e quem perdeu. E, sobretudo, distinguir --- a famosa distinção do Jellinek --- quais foram as ações que obedeceram um plano e quais aquelas que resultaram de uma confluência de fatores.
Aluno: Como se aplicaria a Teoria dos Quatro Discursos ao problema da interpretação do relato da Criação contido no livro do Genesis? A doutrina da Igreja defende a interpretação de que os seis dias da Criação são dias naturais, embora teólogos, influenciados por teorias científicas modernas, defendam a interpretação simbólica, dizendo, por exemplo, que cada dia deveria ser entendido como uma era geológica. Num sentido mais geral, a Igreja ensina que as Sagradas Escrituras fornecem premissas certas e absolutas já que o Espírito Santo não pode errar. No entanto, ela também ensina que a missão do teólogo é esclarecer o sentido das Escrituras no ponto onde elas forem obscuras. Um problema que aparece, acredito, quando se aplica os quatro níveis de credibilidade é que, num sentido, as Escrituras não exigem do leitor apenas uma abertura para um mundo da possibilidade, as premissas reveladas não devem ser entendidas como meramente possíveis, mas certas, inclusive mais certas do que as premissas obtidas pela razão natural. Estou correto em reconhecer esse problema?
Olavo: Sim. Só que você está misturando duas coisas: o nível de credibilidade e o gênero literário. É evidente que o gênero literário é poético e, portanto, para encontrar as premissas certas e infalíveis, você tem de descascar o discurso simbólico para tirar de dentro dele o que é a afirmação formal. Por exemplo, o sentido da palavra "dias" no Genesis, podemos continuar discutindo eternamente porque se fala de dias antes da criação do sol e da lua, que foram criadas no 4º dia. Que sentido faz dizer que são dias no sentido atual? Não faz sentido nenhum. Ou seja, não sabemos exatamente qual é esse sentido. Você dizer que são eras geológicas é outro chute. Na verdade não sabemos.
O que é a teologia? A teologia é um esforço, mais inspirado ou menos inspirado, para compreender um pedacinho não só do texto revelado, mas da ação divina no mundo. Porque, veja, o Genesis foi escrito muito tempo depois da criação do mundo, portanto ele não é a criação do mundo, ele é uma narrativa condensada da criação do mundo. Condensada, portanto necessariamente poética. E é isto mesmo o que a teologia faz: ela pega esse símbolo e o descasca para obter quais são as afirmações, os juízos formais que estão ali contidos. E esse esforço às vezes é mais bem sucedido e às vezes menos bem sucedido.
Mesmo naquela parte que é inspirada e que se transforma em dogma da Igreja, nem sempre reina ali a absoluta clareza. Porque existe uma história do dogma: o dogma continua a se desenvolver. Isso quer dizer que algo que você achava que tinha entendido perfeitamente antes, você pode avançar mais um grau e mais outro e mais outro e mais outro, e a insuficiência das suas intepretações vai aparecendo cada vez mais. Isso acontece com o próprio dogma senão estaria tudo resolvido no primeiro dogma que a Igreja proclamou.
Uma coisa é o nível de credibilidade da Palavra de Deus. Não acredito que a Palavra de Deus possa ser julgada, possa ser analisada com os critérios da credibilidade do discurso humano; porque estamos falando aqui de discurso humano. E a Palavra de Deus se identifica com a própria realidade, não é que ela é uma verdade no sentido humano. A verdade no sentido humano é um discurso humano que coincide com a realidade, mas, no caso da Palavra de Deus, ela não é um discurso humano que coincide com a realidade: ela é a própria realidade. Como dizia Santo Tomás de Aquino: "Nós falamos com palavras, mas Deus fala com palavras e coisas e fatos também".
A diferença específica do Cristianismo não é uma diferença de doutrina e nem de Escritura, é uma diferença que existe entre todas as doutrinas e todas as Escrituras e um fato. O sentido deste fato, você pode passar o resto da sua vida especulando e não vai esgotá-lo. Qual é o sentido do nascimento virginal e da morte e ressureição do Cristo? Os caras estão escrevendo sobre isso há dois milênios, não acabaram ainda. Isto é, o fato transcende o discurso humano. E o fato, por sua vez, é o discurso divino. Quando você diz que Jesus Cristo é o Verbo divino, pára para pensar um pouco: Jesus Cristo não é um livro, Jesus Cristo não é uma doutrina, ele é uma pessoa de carne e osso. E esta pessoa é o Verbo Divino, esta pessoa é a Palavra de Deus, portanto é a Palavra, não sob a forma de palavra humana, mas sob a forma de gente, sob a forma de uma presença física atuante.
Basta isso para se ver que às vezes a pessoa, com a melhor das intenções, tentando defender a honra do Cristianismo, vai dizer que o discurso evangélico é verdadeiro. Mas ele não pode ser verdadeiro no sentido do discurso humano; mais certo seria dizer que ele não é verdadeiro, mas que ele é real. É outra coisa muito mais séria do que isso: quer dizer que ele se identifica com a própria estrutura da realidade, com a própria presença da realidade, com o mundo das coisas, e não com o mundo dos objetos. Quando Deus, logo no começo, diz "Faça-se a luz", Ele está dando uma ordem, um imperativo, e entre este imperativo e a sua obediência não há um transcurso. Ele não mandou alguém fazer a luz e o sujeito foi lá fabricar a luz e depois voltou com a luz pronta. Não! É imediato. Portanto, a expressão fiat lux (faça-se a luz) já é a própria luz, já é a própria presença da luz. Então como vamos julgar isso? Como vamos analisar isso como se fosse um discurso humano a respeito da luz? Não faz o menor sentido.
É por isso que enfatizo tanto, tanto, tanto o versículo de Mateus 11, 1-6, onde Cristo dá o critério para julgar essas coisas; e é um critério científico. Quando perguntam para Cristo: "Você é o Messias ou vamos esperar outro?" --- quem mandou perguntar foi João, que estava na cadeia ---, Ele diz: "Vão e contem para João o que vocês viram e ouviram: vocês viram o paralítico andando, o cego enxergando...", e assim por diante. [1:50] Ou seja: são fatos da ordem física. O que interessa --- a essência do Cristianismo --- são fatos da ordem física: o nascimento virginal, a ressureição e os milagres todos que não pararam de acontecer. Essa é a substância da coisa. A doutrina apenas arranha um pouquinho disso e tenta dizer o que é possível dizer. O próprio Evangelho diz, "se fossemos contar tudo o que Jesus fez, não acabaria mais". Então aquilo ali não é o conteúdo do Cristianismo, é um signo do Cristianismo; é só um signo, um signo pequeno.
Se você leu o Evangelho todo, você não pode esquecer que muito tempo antes de Deus mandar alguém escrever o Evangelho, Ele fez o mundo. E todas as palavras do Evangelho se referem a coisas do mundo. E foi nesse mundo, no mundo das coisas, que Cristo nasceu, viveu, morreu, ressuscitou e fez todos os milagres. Portanto, discutir muito o texto é perda de tempo. O Cristianismo não é um texto, ele é um fato, e este fato continuou se sucedendo. Por exemplo, quando Padre Pio pede para Jesus fazer uma menina sem pupilas enxergar: isso é obviamente impossível e, no entanto, Jesus fez. Isso é um fato da ordem física, não é uma teoria, não é uma doutrina. O que Cristo disse foi o seguinte: o que interessa aqui são os fatos. O que é fato? Fato vem do latim factum, é aquilo que foi feito, aquilo que Deus fez. E a Palavra de Deus não é algo que Deus está dizendo a respeito dele, é algo que Ele fez. Portanto, este discurso tem de ser interpretado num outro nível completamente diferente, embora o gênero seja o gênero francamente poético. Portanto, não confundir o gênero com o discurso e não confundir o discurso humano com o discurso divino.
Aluno: Confesso que ainda não entendo o que significa, sob a ótica pró-gay, a chamada orientação sexual. Para mim, falar que a homossexualidade é uma orientação, e não uma opção ou uma doença não significa nada, é um termo vazio de conteúdo. (...)
Olavo: Mas preste bem atenção: todas estas palavras são vazias de conteúdo. "Orientação sexual" é vazia de conteúdo, "opção sexual", "doença sexual", tudo isso são figuras de linguagem. A única coisa que sabemos é que o homossexualismo é um hábito, ou seja, é uma coisa que certas pessoas fazem com determinada constância. Isso é tudo o que sabemos. E se você perguntar o que é, quais são as causas etc. etc.; só tem especulação, ninguém sabe. E quando ninguém sabe e a coisa resiste a uma abordagem científico-filosófica, é de se supor que a coisa tem raízes espirituais remotas e emana de um mistério que vem do começo dos tempos. A Bíblia menciona o homossexualismo como um castigo de um pecado anterior, que certamente não foi um pecado sexual. Basta isso para você entender que o negócio é mais complicado do que parece.
Aluno: (...) Eu vejo que não estou dizendo que discordo dessa nova abordagem, embora penso que ora pode ser doença, ora pode ser opção. Mas, no fundo, eu não consigo sequer compreender o que querem dizer.
Olavo: Eu também não compreendo porque não querem dizer coisíssima nenhuma. São todos slogans de propaganda, propaganda contra e propaganda a favor. Se você quer combater o homossexualismo, por exemplo, você pode alegar que ele é uma doença. Porém, não esqueça o seguinte: a explicação do homossexualismo como doença remonta ao século XIX e foi feita para favorecer os homossexuais: dizer que não é um pecado, não é uma imoralidade, é uma doença, coitadinho... Depois que esta mudança semântica tinha rendido o que podia render, daí eles decidiram inverter o jogo. Isso é coisa própria do movimento revolucionário; propor um termo num certo sentido, depois você mesmo se revolta contra aquele sentido, inverte tudo, e diz que foi o seu inimigo quem inventou.
Para caracterizar o homossexualismo como doença, primeiro você precisará caracterizá-lo como uma conduta compulsiva, porque o fato de se fazer alguma coisa não quer dizer que seja doença. Por exemplo, você vai a uma festa, enche a cara e sai bêbado. Isto quer dizer que você padece de alcoolismo? Não, quer dizer apenas que você ficou bêbado. Se você é capaz de viver sem ficar bêbado, mas lhe acontece de vez em quando ficar bêbado, você não é um alcoólatra. Mas se existe uma compulsão de alcoolizar-se, isso é outra coisa. Ora, a compulsão não é um fenômeno visível; a compulsão é uma explicação causal hipotética --- que você imagina que dentro do sujeito, da mente dele, existe uma compulsão. Então, primeiro, precisaria distinguir o que é uma conduta homossexual, um ato homossexual, e o que é uma compulsão homossexual.
Do ponto de vista moral, se você é religioso, você pode condenar ambos como pecado. Tanto faz se você cometeu um ato homossexual para experimentar: é um pecado. Se você tem compulsão, é pecado também, do mesmo jeito. Moralmente então, do ponto de vista religioso, não faria diferença. Porém, para saber se é doença ou não, a distinção entre a mera conduta entre o ato e a compulsão é essencial. Mas essas são distinções que ninguém quer fazer, todo mundo só discute isto aí do ponto de vista propagandístico. Acho que essas questões não têm solução, acho que o homossexualismo é um mistério e que nunca vamos entender direito. Agora, o que devemos discutir, portanto, não é o homossexualismo, e sim o movimento gayzista que é uma ideologia criada recentemente. Ele tem uma história, ele tem uma consistência histórica própria, e podemos analisá-lo muito mais facilmente do que podemos analisar o homossexualismo.
Transcrição: Jussara Reis de Abreu
Revisão: Eduardo Garcia de Queiroz
Revisão Final: Leonardo Yukio Afuso
Footnotes
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"Elementos da Filosofia de Olavo de Carvalho" -- Ronald Robson - http://www.olavodecarvalho.org/textos/1308ronald.html ↩
-
"O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota" -- Olavo de Carvalho -- Organização Felipe Moura Brasil -- Editora Record -- RJ/SP -- 2013. ↩
-
"O problema da verdade e a verdade do problema", apostila do SdF (20 de maio de 1999); "Conhecimento e presença", apostila do SdF (27/09/99); Aula 10 do COF (13/07/2009). ↩