Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 192
16 de fevereiro de 2013
Boa noite a todos, sejam bem-vindos.
Nós temos um texto novo chamado "A experiência da presença", mas antes de lê-lo eu gostaria de fazer algumas observações. Essa experiência da presença total, como vocês verão neste texto, é ao mesmo tempo a mais evidente e a mais sutil. Ela é a mais evidente porque podemos chegar a ela por vias indiretas, por meio de um simples raciocínio, pela análise das condições que possibilitam a experiência. Então você pode partir do fato de que nenhum elemento da sua percepção está isolado, ele sempre contém vários outros elementos. Portanto, qualquer experiência que se tenha está em aberto para uma presença geral. Essa é uma simples dedução, não tem nada a ver com a experiência da presença, sendo apenas um raciocínio que nos mostra a necessidade da presença. A idéia mesma de presença está subentendida em toda e qualquer experiência possível. Só há experiência daquilo que está presente. Pois, em primeiro lugar, nada está presente apenas em si mesmo, desacompanhado de qualquer fundo. Em segundo lugar, o fundo não tem limites definidos e nem mesmo definíveis. Vocês devem se lembrar daquela experiência que fizemos no começo do curso, que é o de você fechar os olhos e começar a perceber todos os ruídos que vem do ambiente. E você vê nessa experiência que a percepção vai se abrindo em círculos cada vez maiores e tem um círculo indefinido para além do qual você não capta mais nada, mas isso não quer dizer que o mundo acabou ali. Então essa idéia de um círculo indefinido não é a presença total, mas é um símbolo suficiente dela.
Outra maneira de abordar esse problema é aquela do Mário Ferreira dos Santos no livro A Filosofia Concreta, onde ele parte da premissa geral "alguma coisa há", "algo existe". Só que a abordagem do Mário não é descritiva, ele não está tentando descrever uma experiência, mas sim criar uma dedução e, nas pretensões dele, chegar a uma prova apodíctica (indestrutível). Então o Mário está indo pela via do construtivismo lógico; construir uma prova. O que não é, absolutamente, a técnica do Louis Lavelle.
A dificuldade com esta abordagem de Louis Lavelle é que a presença está subentendida em todas as experiências, --- portanto ela está presente em todas as experiências --- e, no entanto, a presença em si nunca é apreendida, ela sempre está por baixo. Mas quando falamos de presença estamos nos referindo a duas coisas. Primeiro a experiência geral do ser, e segundo a sua própria presença. Você sabe que está presente em cada uma de suas experiências --- não há a menor dúvida disso. Só que você só se apreende no estado em que está no momento, com os objetos de conhecimento que estão no seu círculo de atenção imediato. Ou seja, é como se do fundo da experiência total você recortasse certos detalhes, e eles encobrissem o fundo da experiência, que, no entanto, está sempre ali. Então como fazer para prestar atenção neste fundo? É o mesmo problema que se colocava quando eu proferi o curso sobre a Experiência de Imortalidade. Você vai ter que descer o nível de percepção, para além desses círculos de atenção periféricos, e aprofundar o sentido daquilo que está acontecendo. Só que aí você ultrapassa o limite daquilo que você pode dizer ou daquilo que você pode apreender distintivamente.
Então, desenvolver a consciência da sua própria presença é a condição sine qua non para entender aquilo que Lavelle quer dizer com a experiência da presença do ser. Pois a sua presença a si mesmo não deve ser confundida com o conhecimento reflexivo que você tem disso. Não obstante, muitas pessoas podem dizer que nós não temos nenhuma consciência de estar presentes antes de nós termos a noção de eu. Mas isso é impossível! Pois aí você está querendo dizer que você recebe a sua consciência de si mesmo de um mero nome que lhe ensinaram de fora. E isso é absolutamente impossível, pois você não reconheceria esse nome se você já não tivesse a consciência de si antes. Só que aí é uma consciência indiferenciada e não reflexiva, ou seja, não é algo que você esteja pensando, mas é algo que está presente. Por exemplo, algumas experiências de ordem puramente corporal podem ilustrar um pouco essa experiência da presença. Se você está correndo; portanto fazendo muito esforço; você sente o seu esforço imediatamente. Uma coisa são as sensações musculares, outra é o esforço. As sensações musculares são o efeito do esforço, e não o próprio esforço. O esforço vem de dentro! No entanto, seria errado dizer que ele vem de dentro, pois "de dentro" é uma referência espacial. Na verdade nem de dentro nem de fora, ele vem de você. Ou seja, é um ato de vontade. E você reconhece a presença desse ato de vontade porque é você mesmo que o está criando naquele momento. Criando do quê? Do nada! Ou seja, você está fazendo esforço porque você quer, pois se você não quisesse poderia parar. Então, este ato de vontade está presente e você o percebe. Por baixo de toda e qualquer percepção, de toda e qualquer vivência do nosso espírito, existe o ato de vontade, ou seja, você é o sujeito ativo de tudo aquilo que você faz, conhece, sente, pensa etc. Só que normalmente não prestamos atenção nessa ação que está por baixo daquilo que estamos pensando, fazendo etc.
Essa ação que é mais íntima é, na realidade, nós mesmos. Esta é nossa verdadeira presença e este é, na verdade, o único conhecimento que podemos ter de nós mesmos. Só podemos conhecer a nós mesmos como fontes criadoras. Se nós não fossemos fontes criadoras todos os nossos atos teriam causas que nos antecedem, e nós seriamos apenas um elo de uma cadeia causal e não os criadores dos nossos próprios atos. Porém, se fossemos o elo de uma cadeia causal, não poderíamos jamais reconhecer a nós mesmo e dizer eu fiz isso, ou eu fiz aquilo. Tudo seria uma ação impessoal que passa por mim. Em certos estados patológicos o ser humano pode perder a noção de si mesmo como sujeito criador e agente. Na esquizofrenia isso acontece, e existem algumas teorias filosóficas ou sociológicas que são a expressão de um estado evidentemente esquizofrênico. Quando, por exemplo, Michel Foucault diz que o homem não fala, mas sim é falado pela linguagem. Isso significa que o sujeito criador desapareceu e se tornou apenas um processo lingüístico externo, que passa por ele e sai por sua boca, como se fosse um boneco de ventríloquo. É evidente que quando Foucault diz isso é apenas uma impressão momentânea, e não a referência constante que ele tem dele mesmo, porque se ele acreditasse nisso não somente na hora de escrever, mas na hora de agir, ele estaria realmente esquizofrênico e, dessa forma, incapacitado para lecionar no Collège de France. Não é bem uma esquizofrenia, mas sim uma esquizofrenia momentânea ou fingida.
Embora a nossa presença de sujeitos criadores esteja subentendida em todas as nossas ações, o problema está justamente no que está dito na expressão "sub entendido", ou seja, embaixo daquilo que você entende; embaixo daquilo que você percebe; como uma condição necessária, que, justamente por estar presente o tempo todo, você não a repara como algo distinto. No entanto, isso não quer dizer que seja impossível repará-la, porque todos nós usamos a palavra "eu". E se perceber bem, você sempre está se referindo a si mesmo através da palavra "eu", como sujeito criador de seus atos, e não apenas como uma figura que ocupa um lugar no espaço, ou com um papel social, ou como membro de uma família. Todos nós sabemos que somos sujeitos criadores, ou seja, dentro daquela famosa distinção de John Scottus Eriugena, que seria: [0:10] 1) existe a natureza incriada e que cria, que é Deus; 2) Existe a natureza criada e que cria, que é o ser humano. 3) Existe a natureza criada e que não cria, que são os animais, os planetas as montanhas, as nuvens etc*.*; 4) E existe a natureza que não é criada e nem cria, que é o nada. Dentro dessa escala nós estamos num lugar muito determinado, ou seja, nós somos sujeitos criadores. Não somos, evidentemente, criadores do universo; não somos, sequer, criadores da língua que falamos; mas somos criadores de nós mesmos. E, mesmo neste aspecto, limitadamente, porque boa parte do que nós somos já está recebido da hereditariedade, do meio social, da educação etc. Mas existe uma ampla margem onde você decide aquilo que você quer ser. E, na verdade, todas as suas decisões subentendem a presença desse sujeito criador, ainda que ele esteja adormecido e tenha cedido o passo ao hábito, ao automatismo etc. Se o sujeito criador cedeu o passo ao automatismo, quem foi que cedeu o passo? Foi o sujeito criador. Ele não poderia ser totalmente dominado pelo automatismo, pois isso o tornaria incapaz para a ação humana, e você reconheceria nitidamente o estado de incapacidade em que essa pessoa se encontraria.
Todo o sujeito humano com um mínimo de normalidade é um sujeito agente mesmo quando não é ele que esteja agindo como agente criador, e mesmo quando ele está deixando que os automatismos o usem como um canal, pois alguém tem que abrir a porta para o automatismo. E não somente automatismo exterior, mas também interior. Por exemplo, no instante em que você se deixar arrastar por um fluxo de pensamentos fantásticos, atemorizantes, megalômanos etc. Neste caso você não está no governo da situação no momento, mas você cedeu o comando a estas forças, pois se você não estivesse lá para ceder, elas não poderiam tomar conta de você. Ou seja, foi você que abriu a porta. E se abriu a porta sempre é possível fechá-la de algum modo.
Obviamente, existe uma série de condições sociais, culturais e educacionais que favorecem em mais ou em menos a tomada de consciência de si mesmo como sujeito criador. Por exemplo, numa sociedade como a americana, onde a autonomia dos indivíduos é, até certo ponto, incentivada --- onde cada um tem que decidir a sua vida, e as pessoas são convidadas a se tornarem autônomas desde pequenas ---, obviamente que essa tomada de consciência se torna mais fácil, pois o indivíduo tem de tomar decisões. Ao passo que numa sociedade mais compressiva, mais autoritária, os indivíduos estão acostumados a entender que os outros são autores de suas ações. E é exatamente isso que acontece no Brasil. A sociedade brasileira é assim. No Brasil todo mundo passa o abacaxi, e a frase mais frequente no país é "não fui eu". No entanto, isso não quer dizer que as pessoas sejam mentirosas, mas sim que elas não estão habituadas a se sentirem como sujeitos criadores de seus atos. Aqui nos Estados Unidos se vê também que nas últimas décadas tem havido essa tendências. A sociedade americana está numa mudança, e é o que está no livro de David Riesman, A Multidão Solitária, ou seja, os tipos de personalidade necessária em cada etapa da história. Riesman assinala três tipos nesse livro: 1) O homem autoritário, que obedece às tradições, necessário no tempo da colônia; 2) O self-made man, que é necessário na expansão do capitalismo industrial; 3) E, finalmente, o homem organizacional, que se entende apenas como uma peça dentro do conjunto, e é aqui que se começa a entrar na mentalidade do "não fui eu". Essa transição entre o self-made man e o homem organizacional aqui nos Estados Unidos, que começa entre as décadas de 1950 e 1960, hoje já está bem visível. Já no Brasil o "não fui eu" é uma instituição nacional.
O assumir responsabilidade é impossível se o sujeito não assumiu antes o poder de tomar decisões. Se ele não sente o poder, como vai assumir a responsabilidade? É impossível. E se as ocasiões para a manifestação externa desse poder são raras, ou se elas são boicotadas de alguma maneira, então a idéia do ser humano como sujeito criador dos seus atos aparece diluída. E pelo fato de que ela aparece diluída, cria-se então uma situação secundária que é a do predomínio das explicações coletivistas e impessoais. Dessa forma, tudo teria causa social externa. O predomino dessas teorias coletivistas é, por sua vez, um fato social, e este fato social é criado justamente pela escassez, ou pela diluição da consciência de si mesmo como criador dos seus atos. E essa situação é evidentemente patológica. Mas essa patologia não chega a bloquear totalmente a tomada de consciência de si mesmo como sujeito criador, a qual você sempre pode chegar por uma espécie de anamnese. Ou seja, sempre que você cedeu passagem a forças externas, foi você que abriu a passagem; houve um momento onde você teve o poder na mão e abdicou dele. E quando mais cedo você abdicou desse poder, mas difícil fica de recordar quando foi que abdicou. No entanto, esse poder está sempre disponível. Na medida em que você vai tomando consciência de si como sujeito criador você percebe que no fundo foi sempre a esse sujeito criador que você se referia quando dizia a palavra "eu". Não existe outro. Quando se fala "eu", este "eu" não corresponde a uma auto-imagem, --- aliás, nós freqüentemente não temos auto-imagem alguma, ou a temos momentaneamente e a substituímos com freqüência --- e quando a pessoa pergunta "quem sou eu", não adianta ela querer se descrever, ou tentar obter dos outros uma descrição perfeita. Você pode fazer testes psicológicos, pedir os depoimentos das pessoas, ler seu mapa astrológico etc., mas todas essas descrições não compõem um "eu", porque essas descrições são figuras que foram criadas como manifestações externas de uma força que vinha de dentro. E esta força que vinha de dentro é o sujeito em ato. Ou seja, é você como sujeito criador. Então esse sujeito criador não tem figura física, mas sim todas as figuras físicas dependem dele. Ele não tem uma descrição externa formal, acabada e perfeita, mas é ele que está no fundo de todas as descrições possíveis.
Vocês devem se lembrar do Exercício do Necrológio que eu lhes passei no começo do curso. E eu lhes disse que esse Necrológio mudaria muitas vezes ao longo de sua vida. Na medida em que você vai tentando realizar o seu sonho de juventude, o próprio sonho vai mudando, de modo que ele vai assumindo um novo contorno. E isso significa que o sonho que você tentou realizar não era bem o seu sonho. Nunca foi, pois sempre virá outro, mais outro e assim por diante. Então você pergunta "quem sou eu", e a resposta está clara: é aquele que gerou todos esses sonhos, e pode gerar outro mais adiante.
Então essas considerações estão implícitas em tudo que Louis Lavelle escreveu sobre a experiência do eu e a experiência da presença total. Nem sempre elas estão explicadas nessa linguagem, mas Louis Lavelle sempre realça a dificuldade dessa experiência. Na verdade, a dificuldade e, ao mesmo tempo, a facilidade, pois o objeto da experiência está sempre presente; ou seja, você está sempre presente e o ser sempre esteve presente. A partir do momento que você está lá, o ser também estará. Não há nada mais fácil do que encontrar o eu e o ser. No entanto, o difícil não é encontrá-los, mas sim apreendê-los. Na realidade a própria noção de apreensão também é errada. Você não apreende essa experiência, mas se abre a ela. [0:20] Assim como na experiência dos ruídos que eu mencionei anteriormente, você não apreendia os sons, mas deixava que eles chegassem a você. Então não é um estado de busca, mas sim de aceitação; um estado de abertura, onde você aceita a realidade tal como ela está, ainda que você não possa nem sequer nomeá-la, apreendê-la ou dominá-la. É só quando temos essa noção é que pela primeira vez nós entendemos, conscientemente, o que significa realidade. Realidade nunca é aquilo que pensamos, pois nós pensamos a respeito dela; ou seja, pensamos sobre a realidade, e não a própria realidade. Todo nosso pensamento é apenas uma referência à realidade. Mas se a realidade não chega a nós, por nenhuma outra via a não ser por essas referências, então nós apenas temos a referência da referência da referência; por fim chegamos à conclusão que não temos realidade alguma. As pessoas realmente chegam a ter essa impressão quando elas pensam e analisam muito seu próprio pensamento e querem, daquilo que elas pensaram, criar uma nova forma a qual possam pensar e dominar mais claramente. Esses sujeitos nunca recuam e perguntam da onde veio todo esse fluxo de pensamentos. Ou seja, sem se abrir para algo que não é pensamento, embora você chegue a ele pelo pensamento. Na realidade, não é que você chega a ele pelo pensamento, mas seria mais correto dizer que você volta a ele pelo pensamento. Como a experiência da presença já está dada, pelo pensamento você retorna a ela. Mas o pensamento não pode produzi-la. O pensamento não produz você mesmo, não produz o ser, o universo, realidade; tudo isso já estava dado, então o pensamento apenas se refere a isto. Mas no instante em que você entra na análise do pensamento sem a concomitante análise da experiência da qual esse pensamento emergiu, você se fecha num mundo que é constituído só de pensamentos, ou só de linguagem, só de conceitos; e você acaba chegando à conclusão que não existe realidade alguma. E eu diria que à essa altura, dentro do seu círculo de referência, não existe realidade nenhuma, porque esse círculo de referência foi construído inteiramente de um pensamento que se analisa a si mesmo, e que jamais retorna à experiência de onde tudo isso emergiu.
É esta a diferença eminente entre a presença do "eu" tal como Lavelle explica, e a presença do "eu" tal como aparece no texto de Descartes que lemos há alguns meses atrás. Na época eu assinalei que Descartes descobre a presença do "eu" pensante, o "eu" que está refletindo --- para refletir ele precisa estar presente, evidentemente; se o "eu" já não estivesse ali ele não poderia pensar coisa nenhuma ---, mas em vez de aprofundar o exame dessa experiência, Descartes faz desse "eu" um conceito e em seguida começa a raciocinar e tirar conclusões a partir desse conceito. Ou seja, até certo momento ele estava descrevendo uma experiência, depois ele começou a criar um raciocínio, sem articulá-lo com um novo aprofundamento da experiência. Dessa forma o filósofo vai parar longe do real objeto de reflexão.
O ponto de partida de Louis Lavelle foi exatamente o mesmo de Descartes. No entanto, como veremos nesse texto brilhante de Christiane D'Ainval, Lavelle articula o raciocínio com a revivescência da experiência. Ele sempre fala, quando se refere a essas experiências (os momentos em que ele percebe isso), que é importante retê-las, não as esquecer, de modo que você possa voltar uma, duas, três vezes. Claro que você vai perder, evidentemente, pois é próprio do pensamento humano só ver os objetos aos quais ele está interessado no momento. E a conseqüência dessa nossa capacidade de abstração é, justamente, o vício que nós geramos de tomar o abstraído como se fosse uma realidade em si, como se não existisse uma raiz de experiência pessoal. Pois toda experiência é pessoal. E aqui eu não falo de experiência empírico-científica, pois o que chamamos de experimento cientifico também é uma abstração. Nenhuma experiência científica se refere a uma realidade. Isso é impossível! A realidade só aparece para o indivíduo concreto, vivente e consciente, e só para ele existe realidade. A ciência só lida com realidades já recortadas conceitualmente e que por si mesma jamais podem ser objetos de experiência. Por exemplo, quando uma ciência define seus objetos, ela os separara criteriosamente dos objetos de outras ciências e dos mesmos objetos tal como enfocados por outras ciências, de modo que essa ciência fique apenas com um pedaço pequeno. E esse pedacinho existe? Ele não existe. Ele só foi recortado para fins de estudo. Por exemplo, se você recortar um órgão do ser humano para examinar em laboratório. Então eu pergunto: esse órgão tal como você o está examinando, existe? Não, ele não existe dessa forma. Se perguntarmos, existe um fígado? Não, só existe fígado dentro do corpo humano, a partir do momento que o cortamos, ele não funciona mais como fígado; torna-se, por assim dizer, um cadáver de fígado. Ou seja, todos os objetos, de qualquer ciência, são sempre assim. Então quando falamos de experiência científica devemos nos lembrar que ela é uma experiência de segunda ordem. A experiência efetiva só existe para o indivíduo humano concreto.
Agora vamos ler o texto e analisá-lo:
A experiência da presença é comum a todos, mas o primeiro que chega não a obtém em plenitude, mais ocupado que está em preencher a presença "como se ela fosse em si mesma um quadro sem conteúdo" do que em refletir sobre ela. (...)
Tentamos apreender essa noção da presença do "eu" e instantaneamente a preenchemos de símbolos, de objetos, de recordações etc., e dizemos que isto é a presença. Mas tudo isso é apenas aquilo que você a está preenchendo agora. E se você a está preenchendo com os pensamentos que tem agora, é porque no momento você nada está apreendendo da experiência da presença do "eu", e de fato a está tratando como se fosse uma forma vazia. Mas se a presença fosse uma forma vazia, você nunca teria apreendido nada. Se tudo que está presente é vazio, portanto o resto só é preenchido com o que sai do seu pensamento, então de fato não há nada para ser percebido.
A dificuldade em se restaurar a experiência da presença, que é a experiência do seu próprio "eu" criador, e a presença do ser como ato, nos impele a tentar preencher esses dois conceitos (de ser e de presença) com conteúdos do nosso pensamento atual, quando na verdade ela não precisa ser preenchida. A experiência da presença é como a experiência dos ruídos que eu fiz com vocês no começo do curso, ou seja, é algo onde você deve se abrir e aceitar aquilo que é trazido a você pelo simples ato de estar presente. Você sempre soube que está presente, mas isso é como se fosse um som que é contínuo. Então imagine um som que estivesse continuamente soando em seus ouvidos desde que você nasceu; há muito tempo você já teria perdido a percepção distinta desse som. Mas você pode recuperar esta percepção distinta. E para recuperar você não deve pensá-lo, pois assim você estará ocupando o espaço dele com algo que você criou agora; ao invés, você deve simplesmente aceitar que ele está aí, e deixar que ele apareça e que desapareça. Porque se você tentar apreendê-lo, [0:30] ou conceitualmente, ou visualmente, ou simbolicamente, ele já escapou. É o mesmo que você tentar pegar água corrente. Então não é a percepção de uma coisa, mas sim a percepção de um ato. E ato é aquilo que está por baixo de todas as coisas, é a possibilidade das coisas existirem, é a força que gera e mantém as coisas na existência, inclusive você. Então se trata de passar de uma referência visual, pictórica, estática ou conceitual, para uma percepção de ato, a percepção de uma força criadora, que está em você e que sustenta todas as presenças que estão no mundo.
Que o mundo se compõe mais de ato do que de coisas nós podemos perceber através dessa experiência. Mas se não percebemos através da experiência, podemos entender através do raciocínio. É só você entender que a figura presente que as coisas lhe apresentam são somente um estágio da sua vida, não são elas inteiras. Por exemplo, você está vendo um gato, então o gato está sentado no sofá no momento. Mas isso é só a figura que ele lhe apresenta nesse momento, ele não nasceu deitado no sofá, ele não nasceu deste tamanho e ele não esteve sempre aí, ele tem toda uma história por trás dele. E essa história é o desenvolvimento do ato, a força criadora.
Devemos ter uma certa percepção disso, como no caso da própria consciência de imortalidade onde eu dizia que você tem de passar de uma percepção periférica, uma visão interior de você como sujeito agente; é mais ou menos a mesma coisa. Essa percepção é sempre possível, desde que você consiga se desinteressar momentaneamente dos aspectos periféricos e momentâneos. Note bem: não se trata de se desinteressar das presenças físicas, aparências momentâneas, para pensar. Quando você faz um raciocínio, por exemplo, estudando matemática: você também faz abstração do mundo físico presente. Faz isso para prestar atenção numa coisa que você mesmo está inventando. Agora, os cálculos que você está fazendo você tem de ir inventado, mas o sujeito que está fazendo esses cálculos não foi você quem inventou, é o que você é. Então é nisso que é para prestar atenção, e não num pensamento. Em suma: perceber-se a si mesmo como vivente e agente.
É curioso que se você nunca tivesse percebido isso, você nunca perceberia nada. Um bebê no bercinho já percebe isso. Se ele não chegasse a perceber isso, ele não poderia perceber nada em particular. Toda a percepção em particular subentende essa percepção de fundo que é a da presença, o tempo todo.
A tarefa do filósofo é justamente esforçar-se para experienciá-la com mais pureza e acuidade (...)
O que é pureza? É não confundir essa experiência com as formas, figuras e conceitos que a simbolizam, porque é evidente que se está se tratando de uma força agente --- uma força agente não pode ser percebida pelos olhos da cara ---, e o conceito que você faça dela não corresponde a ela porque é apenas uma forma esquemática que a sua própria mente criou. E, no entanto, essa força pode ser sentida, por assim dizer, porque você a exerce. Por exemplo, no momento que toma uma decisão, uma decisão a mais livre possível.
Imagine quando você está adormecendo ou quando acabou de acordar, essa passagem da vigília para o sono ou do sono para a vigília. Há momentos em que o seu interior está totalmente livre de qualquer pressão externa, e você imagina então a sua vida exatamente do jeito que você a quer. Nesse momento você tem a noção de uma força criadora. Claro que essa força criadora pode ser em seguida sufocada por pensamentos, por percepções, pela dispersão etc., mas todo mundo tem essa percepção da sua própria intimidade, a sua mais profunda intimidade consigo mesmo.
Muitas vezes essa intimidade é encoberta por temores, falsas previsões, desconfianças etc. Mas imagine que você está totalmente tranqüilo dentro de você mesmo, com total sinceridade com você mesmo. Todo mundo tem momentos disso aí. Neste momento você sabe que você é o agente criador da sua vida. Pode ser que no instante de exteriorizar essa força, você encontre tantos obstáculos que a sua liberdade interior desaparece, mas nem por isso ela deixa de existir.
Esta é uma pergunta que você pode fazer para si mesmo: quanto do que faço na vida, quanto do que tenho feito, vem desta minha intimidade comigo mesmo? E quanto vem da distorção posterior que eu mesmo impus a esta intimidade em função de fatores externos? Até o que vem da minha própria memória é externo, por assim dizer. Eu não posso dizer que criei toda a minha vida do jeito que queria, aconteceram-me coisas que não fui eu que quis e que às vezes pode ter me traumatizado, me amedrontado, me inibido e assim por diante. Tudo isso está presente aí. A intimidade do indivíduo consigo mesmo é uma força tremenda.
Há um livro em que Lavelle explica a psicologia dos santos (analisando quatro santos) como o sujeito que não sai desse centro, dessa intimidade; ele não negocia. É aquilo que Ortega y Gasset chamava "o fundo insubornável" que cada pessoa tem, onde ela sabe a verdade a respeito de si mesmo, a qual em geral é mais simples do que ele a pensa. Isso porque quando nós a pensamos, pensamos com um monte de preconceitos, temores, julgamentos aprendidos etc.
Por exemplo, vocês já devem ter reparado que na cabeça de todo mundo existe um tribunal onde tem as vozes da acusação e da defesa, de onde vem um demônio e o acusa de mil e um pecados; e então vem um outro demônio e o defende dizendo que você é vítima de injustiça, quando na verdade você não é nem uma coisa nem outra. Mas isso tudo está no pensamento, não está na profunda intimidade. Enquanto você está nesse jogo, você está na periferia de você mesmo. Quando você está na intimidade, você está seguro de si e tranqüilo, na verdade; você é o dono da sua vida naquele momento. Todos temos essa experiência e todos podemos voltar a ela quantas vezes quisermos. E por que não fazemos isso? Não tivemos a idéia simplesmente. Mas quem quiser fazer, pode fazer sempre.
Então diz ela:
A tarefa do filósofo é justamente esforçar-se para experienciá-la com mais pureza e acuidade (...)
Quer dizer com mais nitidez, de uma maneira mais exata, sem confundi-la com outras coisas externas.
e, de vaga que ela era de início, torná-la cada vez mais distinta. (...)
A repetição, a insistência produz esse efeito. É só no momento em que você começa a fazer isso que você pode dizer aquela famosa frase de Dom Quixote que há muitos anos adotei como minha máxima: "Yo sei quien soy". Eu sei quem eu sou. Não sou capaz de explicar, [0:40] e às vezes me esqueço de quem sou e ajo como se fosse outra coisa, às vezes até dentro de mim mesmo. Mas no fundo, no fundo, eu sei quem sou.
Do mesmo modo que o cientista visa a obter experiências mais e mais precisas, o filósofo deve colocar tudo em ação para obter uma experiência interior cada vez mais fina e completa. Ainda que a experiência de que se trata seja sempre atual, nota Lavelle, no mais das vezes o é de uma maneira confusa e implícita; ela tende incessantemente a nos escapar; e cabe a nós, precisamente, torná-la distinta e retê-la.
Sem este retorno a si mesmo, sem você se perceber como sujeito agente e livre, sem sentir a sua liberdade, do que vale uma oração? Ela pode valer como uma espécie de automatismo que você usa para afastar os fantasmas exteriores. Mas a verdadeira oração só começa aqui [no eu interior].
A experiência da presença não serve somente de ponto de partida do sistema de Lavelle; ela também o sustenta ao longo de todo o seu desenvolvimento, e é ela ainda, mais sublimada (...)
quer dizer mais elevada, analisada, conceptualizada etc.
que constitui o seu coroamento. Seu método reside numa associação contínua entre ela e o raciocínio, um explicando a outra, que lhe traz provas por sua vez, a progressão do raciocínio indo de par com um aprofundamento da experiência, à qual está referido cada elo das "longas cadeias de razões", segundo a expressão de Descartes. (...)
É isto que é a famosa dialética de Louis Lavelle que ele estava explicando no Manual de Metodologia Dialética, essa contínua passagem do plano da experiência para o plano do raciocínio. Você tem, claro, uma construção lógica por cima, porém essa construção lógica não é senão a tradução em palavras de uma experiência. Em outro trecho pergunta ele: Afinal de contas, o que seria uma experiência que não se manifestasse em um processo verbal que a transcende? Se a experiência fica só na experiência, então é uma experiência muda. É preciso que ela se expresse verbalmente. Mas a expressão verbal não tem autonomia, e é este o erro que caiu Descartes. A expressão verbal que ele faz da experiência adquiriu uma autonomia e se transforma em um raciocínio desligado da experiência, ele não retorna à experiência, ele tira conclusões dela, quando não é para tirar conclusões. É para retornar à experiência e ir aperfeiçoando esse raciocínio. O raciocínio não vai provar coisa nenhum. Você não está afim de fazer aqui um longo discurso que vai provar por A + B tal ou qual coisa; não. Você tem a experiência e dela você tira o raciocínio, você a expressa mediante um raciocínio.
Essa experiência da presença é o que Mário Ferreira dos Santos chamaria o ponto arquimédico, ela é o fundamento único de todas as filosofias. No entanto, ela pode se expressar logicamente de um milhão de maneiras diferentes. Você pode fazer como Lavelle está fazendo aqui, ou você pode dizer aquilo que dizia Henri Bergson, que todas as filosofias resultam de uma única intuição que o filósofo teve na vida que ele passa o resto da vida tentando expressar --- é uma maneira de dizer; uma terceira maneira seria a do Mário Ferreira: transformar aquilo em uma tese "algo há", e daí você faz uma construção. Isso pode ser expressado de um milhão de maneiras diferentes. E o que faz Lavelle? Ele expressa um pouquinho e volta à experiência. Quer dizer que nenhum raciocínio que ele faz é auto-suficiente: ele começa a tirar conclusões, daqui a pouco volta à experiência, e assim por diante. É por isso que ele chama dialética, ou seja, é uma coisa que segue dois movimentos simultaneamente: o movimento do raciocínio e o movimento da experiência, um fecundado o outro.
Daí também evidentemente vem a dificuldade verbal dos textos de Lavelle, porque se ele está se referindo a uma experiência, então não adianta ler os textos de Lavelle só conceptualmente, você tem de refazer a experiência senão nada funciona. Isso quer dizer que esses textos não podem ser lidos só como um texto de "filosofia", no sentido acadêmico da coisa, mas tem de ser lido como uma pauta musical. Quando você lê uma pauta musical, você não toca a melodia na sua mente, mesmo que você não saiba tocar coisa nenhuma? Otto Maria Carpeaux nunca tocou nada e também não ouvia disco, só lia a partitura. Isto quer dizer que ele tocava a música na mente dele --- e isso que é ler a partitura. Se você ler a partitura, mas não está refazendo a música mentalmente, você não a está lendo, ou seja, você não está lendo a música, você só está vendo sinais gráficos. Os livros de Lavelle são como partituras que você tem de refazer. Isto quer dizer que eles têm de ser lidos muito lentamente, embora eles pareçam tão claros e bonitos que às vezes dá vontade de continuar lendo. Se você continuar lendo vai perder o fio da meada em poucas páginas e terá a impressão de que ele não mais está falando de coisa alguma. Mas é você que não está apreendendo coisa nenhuma. Agora se você voltar, tiver paciência e disser "vou ter de refazer, isso que ele diz dele ou do ser humano em geral eu vou ter de reencontrar dentro de mim mesmo porque é a essa experiência que ele está se referindo". Nesse sentido, os livros de Lavelle não são livros teóricos apenas, eles correspondem a uma técnica ascética, por assim dizer.
Pois, se essa experiência é una, sua riqueza é insondável --- é a "presença total" que ela nos entrega. Lavelle expõe em detalhes esse papel fundamental da experiência da presença: "O próprio do pensamento filosófico, escreve ele, é apegar-se (...)
Apegar-se, recordar-se, reter, renovar, restaurar, reencontrar --- toda hora ele usa esses termos.
O próprio do pensamento filosófico, escreve ele, é apegar-se a essa experiência essencial (da presença), afinar-lhe a acuidade, retê-la quando ela está perto de escapar, voltar a ela quando tudo se obscurece e temos necessidade de um limite e de um a pedra de toque, analisar seu conteúdo e mostrar que todas as nossas operações dela dependem, encontram nela a sua fonte, a sua razão de ser e o princípio da sua potência [ou do seu poder].
A palavra "potência" aqui não está dita no sentido aristotélico, não está no sentido de uma coisa estar apenas em potência, mas no sentido de quando uma coisa é possante.
É difícil isolar essa experiência, para examiná-la na sua pureza: "[para isso] é preciso uma certa inocência, um espírito liberado de todo interesse e mesmo de toda preocupação particular". Se a metafísica em si mesma é uma "via estreita", o caminho que a ela conduz já é laborioso (...)
Ou seja, até para chegar a colocar essa questão, você vai ter algum trabalho antes.
E há poucos homens que aceitam galgá-lo. Pois trata-se de abolir tudo o que parece sustentar nossa existência, as coisas visíveis, as imagens e todos os objetos habituais do interesse e do desejo (...)
Ora, todas essas coisas visíveis, imagens e objetos habituais são formas estáticas, formas paradas. Mesmo que estejam em movimento, é um movimento que você vê de fora. E trata-se de inverter a posição disso e vivenciar a sua presença como força agente e criadora --- do mesmo modo que você vivencia o esforço que vem de dentro quando está correndo ou fazendo força, ou qualquer coisa assim. Na verdade, pela minha experiência, quando você está fazendo um grande esforço físico, você tende a prestar muito menos atenção no mundo externo, você vem como que para dentro para concentrar a sua energia e ir, por assim dizer, até o fundo da fonte de onde vem a sua energia.
Quando eu era mais jovem eu tinha uma amiga, uma mocinha coreana, [0:50] que adorava esse negócio de caminhadas, e o único trouxa que ela encontrou para acompanhá-la nas caminhadas fui eu. Começávamos a caminhada às seis horas da manhã e terminávamos às seis horas da tarde, era um negócio horroroso. Chegava uma hora que você não agüentava dar o próximo passo, eu não olhava mais nada. Às vezes vinha cachorro latindo e nos atacando, eu nem olhava o cachorro, já estava no nirvana. Onde eu estava? Eu estava dentro de mim procurando a última reserva de energia. É ali que está a presença do "eu" como elemento criador, não como figura, não como forma, não como conceito, mas como vivência da sua força, do seu poder.
Se a presença é em si mesma uma experiência metafísica, o método que é preciso empregar para analisá-la deve ser ao mesmo tempo, como já notamos antes, psicológico e moral. Poder-se-ia chamá-lo "o método mesmo da filosofia", declara ele, "um método psicometafísico". Em outra parte, ele fala de "metamoral". Pois a busca da verdade exige todo o nosso ser: "a verdade não deve ser somente contemplada, mas desejada e amada".
Ora, esse "desejada e amada" faz parte da atitude interior, por assim dizer, de esforço descansado, esforço sossegado que você tem de fazer dentro de você para chegar nisso. Curiosamente, eu também lembro que nessas caminhadas via que se ficasse um pouco preocupado ou um pouco enervado com o que quer que seja, não teria mais força para andar. Então eu tinha de ir bem no centro de mim mesmo e buscar aquela força e ficar totalmente tranqüilo. Quer dizer, havia um esforço, mas ao mesmo tempo havia um estado de repouso, ou seja, era um esforço de concentração. E concentração consiste precisamente em evitar os elementos dispersantes e buscar apenas aquilo que interessa, quer dizer, em um estado de extrema economia de esforço. A economia de esforço é um esforço.
Na base de toda filosofia espiritualista, encontramos um período de purificação: Platão pratica a kathársis antes de chegar à theoria. Descartes lança uma dúvida severa sobre todos os seus conhecimentos. Não espanta, pois, que encontremos em Lavelle tantas advertências contra o divertimento (entendido no sentido pascaliano do termo) (...)
Pascal usa o termo divertimento como tudo aquilo que distrai, que o tira de dentro de você, porque ele não está se referindo à concentração no sentido que você precisa, por exemplo, para estudar matemática. Você está estudando matemática, você está concentrando a sua atenção em uma determinada coisa, em um raciocínio, em uma seqüência de raciocínio. E aqui trata-se de prestar atenção a si mesmo como sujeito criador dos seus atos, como força criadora.
Quando dizemos "de dentro", já está errado porque dentro da impressão de que é dentro do corpo, quando não é. O dentro é uma referência espacial. E é por isso que Lavelle em vez de interioridade usa a palavra "intimidade". O que me é íntimo é eu mesmo, não é o interior do meu corpo. O interior do meu corpo pode ser totalmente estranho. Eu nunca vi o interior do meu corpo e acho que, se me mostraram, vou achar muito esquisito. Agora, a interioridade de mim mesmo é aquilo que me é mais próximo, evidentemente. É na intimidade neste sentido que Santo Agostinho dizia que é no interior do homem que existe a verdade, e é neste sentido que Pascal e Lavelle recomendam afastar do divertimento.
É claro que os divertimentos no sentido usual do termo também são divertimento no sentido pascaliano. O sujeito ficar jogando joguinho de computador ou ficar no Twitter o dia inteiro, tudo isso pode ser divertimento no sentido pascaliano, mas ele está falando do divertimento no sentido mais radical, mas grave.
Não espanta, pois, que encontremos em Lavelle tantas advertências contra o divertimento (entendido no sentido pascaliano do termo) que desvia a atenção dos seus objetos essenciais e perturba a "simplicidade do olhar espiritual". (...)
A simplicidade do olhar espiritual consiste em aceitar aquilo que está, sem acrescentar nada que vem do seu pensamento. Ou seja, você pode disciplinar o seu pensamento para que ele expresse essa experiência sem nada lhe acrescentar de fora.
"A filosofia, afirma ele, começa no momento em que cessa o divertimento". Nele como em Descartes, o método interessa a um tempo a inteligência e a vontade, mas, ao passo que em Descartes ele apela a esta última no plano intelectual sobretudo, (...)
O que é o ato de vontade no caso de Descartes? É justamente a dúvida metódica: "eu vou colocar tudo em dúvida". É uma decisão de vontade que orienta a inteligência.
ele [Lavelle] a faz intervir também no plano moral, lá onde ela deva lutar contra o amor-próprio, fonte de todas as cegueiras. (...)
O amor próprio se manifesta de muitas maneiras, mas eu acho que a principal é este contínuo discurso de acusação e defesa.
"É preciso ir à verdade com todas as nossas forças", dizia Platão. "A verdade não pode jamais penetrar senão numa consciência que dela seja digna", retoma Lavelle. "Isso é verdade já no conhecimento das coisas materiais. Mas aí basta uma certa aplicação da atenção; (...)
Ou seja, um cientista precisa de uma atenção concentrada e séria no seu objeto ao longo de bastante tempo.
quando se trata das coisas espirituais, é preciso ainda uma certa pureza do querer". (...)
Ou seja, é necessário que a sua vontade se dirija inteiramente à percepção do seu próprio "eu" como fonte criadora dos seus atos e, portanto, como criadora da sua presença no mundo. E da sua presença no mundo você obtém em resposta a presença do mundo, a presença do ser.
"Esforço de meditação pessoal e de purificação interior", isto é, disciplina da atenção e aprofundamento da sinceridade, tais são as diretrizes que resumem a propedêutica psicológica e moral de Lavelle.
Já dei muitas aulas aqui sobre a importância da sinceridade interior nesta busca. E a sinceridade interior, não é somente que ela falha muitas vezes, é que existe às vezes um esforço sério para evitá-la a todo preço. Por exemplo, manter a discussão filosófica ao nível dos conceitos das ciências. Isto é uma coisa que não requer nenhuma participação pessoal, nenhuma consciência de si, exige apenas o desempenho de um determinado papel social que é uniforme em todos os participantes. Tudo isso se destina a proteger esses papéis sociais contra uma irrupção da pessoa verdadeira. No diálogo cientifico não é preciso pessoas verdadeiras, pode ser feito dentro de computadores ou entre papéis sociais. Quando a filosofia se desvia para isso, ela acabou. Ela pode usar conceitos filosóficos, técnicas criadas pela filosofia, mas ela é realmente uma antifilosofia no sentido mais radical da coisa. A filosofia é uma disciplina interior, ela implica uma responsabilidade pessoal profunda, a mais extrema sinceridade do indivíduo consigo mesmo, e sem isso não é filosofia. A filosofia nasceu assim com Sócrates e é assim que tem ido para frente. Às vezes as pessoas se esquecem, tomam outros caminhos, começam a inventar coisa, mas volta e meia se retorna a isso como aconteceu nessa filosofia de Louis Lavelle.
Aluno: Seria o conceito de jogos de linguagem de Wittgenstein expressão do automatismo que surge a partir da ausência do procedimento dialético tal como colocado por Lavelle? Ou seja, da ausência da remissão à experiência que o faz analisar apenas o raciocínio formal ou conceitual? Dessa forma, seria a linguagem enquanto conceito mais amplo [1:00] expressão da continuidade da presença do ser, do fundo insubornável que o senhor citou da formulação de Ortega e Gasset?
Olavo: Mas sem a menor sombra de dúvidas. Note bem, Wittgenstein analisa a experiência, mas é a experiência reduzida à sua mais extrema banalidade. Por exemplo, a análise de frases hipotéticas tipo "a vassoura está atrás da porta". Não deixa de ser uma análise da experiência, mas, primeiro, é uma experiência hipotética e, segundo, é uma experiência reduzida ao seu aspecto mais banal. O que caracteriza toda essa linhagem de pensadores --- que é muito variada em si, existe muitas discordâncias entre eles (Bertand Russel, Wittgenstein, Rudolf Carnap, Maurice Schlick etc.) ---, não é só esse ponto, é uma coisa mais grave: é a total ausência da intimidade pessoal. Esses indivíduos não se examinam enquanto agentes criadores e, portanto, eles não confrontam umas com as outras as suas atitudes, as suas palavras etc. No fundo é a ausência de consciência moral. Se não há intimidade, não há consciência moral. Se o indivíduo não é capaz de penetrar no fundo de si mesmo --- para se perceber como agente criador --- como é que ele pode aplicar a si mesmo, o princípio número um de toda a moralidade? Como eu expliquei no curso de ética no Paraná, o princípio de autoria --- que é o princípio de que cada um é o autor de seus atos, seus atos vêm de você e não de uma outra pessoa ou uma outra força. Se o princípio da autoria é negado não existe moral nenhuma e, sem um aprofundamento como um sujeito criador, não há princípio de autoria nenhuma. Então essas pessoas jamais tem que prestar satisfações ao tribunal de sua consciência, sua consciência está desativada. Existe uma consciência, mas só no nível puramente operacional, não no sentido da intimidade profunda. Não há uma consciência moral que estivesse, por exemplo, ao nível da exigência da religião cristã, ou de qualquer outra religião. O que existe é uma permanente negociação, um cambalache moral. Por vê-se que essas pessoas têm muitas tendências a essas atitudes de puro teatro, de autopromoção desbragada, um fingimento atroz o tempo todo. Não são pessoas sérias e não são filósofo nesse sentido, são, por assim dizer, pessoas versadas em filosofia que podem manobrar a linguagem filosófica, mas não são filósofos porque não tem esta sinceridade profunda que é a condição número um da conversa. Cambalache é isso: a troca de uma coisa que não vale nada por uma coisa que vale coisa nenhuma. É isso que estão fazendo o tempo todo. E o que eu que vai sobrar da filosofia desses caras? Absolutamente nada. Quando passa aquele efeito periférico de momento, eles entram na história apenas como criadores de dificuldades, ou seja, como antifilósofos.
Aluno: Podemos dizer que essa investigação da experiência do "eu" em nível antológico é iniciada em Santo Agostinho? A análise e descoberta do cogito agostiniano já pressupõe o conhecimento da presença do ser (...)
Olavo: Sem sombra de dúvidas.
Aluno: (...) Agostinho não estaria adiantando essa experiência que o senhor apresenta como descoberta por René Descartes?
Olavo: Sem dúvidas. O famoso cogito agostiniano é baseado na consciência da sua existência e na consciência de ausência de um fundamento da sua existência. Na forma de Agostinho --- eu sei quem eu sou, mas eu não sei porque eu sou --- essa exigência de um porquê ou de um fundamento é o que sobra quando a consciência do "eu" se fecha em si mesmo. Agostinho mostra que a consciência do "eu" não pode parar aí --- ela exige algo mais. Portanto, já está insinuado de algum modo a linha de investigação de Louis Lavelle, para não falar do Descartes.
Aluno: Fiz esse resumo sem pensar muito, o espírito se realiza no ser através da sua liberdade (...)
Olavo: Você que dizer o nosso espírito, o espirito é a liberdade e a liberdade é a força criadora. E força criadora consiste em você não apenas ser objetos, ou efeito de causa já desencadeada, mas ser você mesmo a causa de alguma coisa --- você inicia processos que não existiam antes e que não existiram sem você. Você pode associar isso facilmente a noção do sentido da vida do Victor Frankl que diz que o sentido da vida é aquilo que só você pode fazer e que ninguém mais pode fazer no seu lugar e que, portanto, se não fosse você não existiria dentro da ordem das causas --- é aquilo que você insere dentro da ordem das causas.
(...) o ser é ato e não ente. E é nesse ato que o espírito encontra liberdade (...)
Olavo: Sem sombra de dúvidas.
(...) em relação a frase "o ser não pode se colocar senão através do todo do ser" onde a palavra pose não era mais adequada tentei achar um substituto e saiu a palavra realizar.
Olavo: Não é bem isso, a palavra mais exata seria estatuir, ou estabelecer. Alguma coisa que você estabelece. Agora na versão que você colocar aqui está certo: "o ser não pode se realizar se não a partir do todo do ser". É evidente, se não há a presença total não há presença alguma. Então onde você vai se realizar? O ser individual, o indivíduo, não pode se realizar senão incluindo-se no todo do ser. O realizar-se é essa inclusão --- você se realiza através da sua ação no ser, não só na ação interior.
(...) está correta esta interpretação?
Olavo: Está, com uma ou outra dificuldade de linguagem, é exatamente isso que eu disse.
Aluno: Parece haver uma grande semelhança entre a experiência da presença e o processo de crescimento espiritual conforme a ascética e mística cristã. Santo Antão em sua sentença já pontuava: "Todo ser dotado de inteligência espiritual, aquele para quem veio o Senhor, deve tomar consciência da sua própria natureza, isto é, deve conhecer-se a si mesmo". Esse conhecimento de si mesmo, e da sua própria miséria, é um processo de purificação, que coloca a pessoa em condição de contemplar a realidade na sua verdade mais profunda, como coloca Santo Antão em outro ponto: "Grande é a vossa felicidade por teres tomado conhecimento da vossa miséria e por teres fortalecido em vós essa invisível essência que não passa com o corpo" (...)
Olavo: Essa essência que não passa com o corpo é a sua própria liberdade, sua própria força criadora. E por ser liberdade é exatamente --- associando um pouco isso com o negócio de Santo Agostinho --- quando você percebe que você é a sua liberdade, e que a liberdade é o que lhe permite ser causa, e não apenas efeito de uma outra causa, por outro lado você entende que essa liberdade não pode ser causa sui. Você entende que ela não vem de nenhuma causa externa, nada pode ter causado ou criado a sua liberdade, mas ao mesmo tempo não foi você também quem a criou porque você é ela. É aí que você começa a entender a noção de Deus ter criado as almas --- você não tem explicação externa, portanto só pode ter uma explicação interna. De onde vem a sua liberdade? Vem da fonte total da liberdade, que é a liberdade suprema. E isso o que é? Isso é Deus.
Daí prossegue ele com Santo Antão aqui:
Aluno: Aquele que se conhece verdadeiramente não terá dúvida alguma sobre sua essência imortal.
Olavo: Precisamente, é a mesmice coisa. Acontece o seguinte, toda a linguagem com que a religião nos transmite isso é uma linguagem que se consagrou e que se cristalizou muitos séculos atrás, para situações sociais e culturais muitíssimo diferente das nossas. Hoje as pessoas lêem isso e acham que entendem; às vezes entendem ao contrário. Se falar, por exemplo, "você tem de se arrepender dos seus pecados". O sujeito vai achar que ele tem de ficar muito triste, deprimido e acusando a si mesmo. Aí você está dando voz ao diabo; a coisa não é assim. Por que o Lavelle fez tudo isso aqui? Porque a linguagem usual com que se trata essas coisas não está funcionando [01:10], as pessoas estão entendendo outra coisa. Tem de voltar à experiência originária e descrevê-la de uma maneira apropriada à linguagem de hoje --- é o que ele esta fazendo. Não é muito diferente do que Santo Antão fez ou qualquer outro santo fez. Só é uma outra língua, uma outra época e uma outra circunstância. E, sobretudo, ele faz questão de não usar a linguagem religiosa, porque na linguagem religiosa o individuo se investe da autoridade da revelação. E você pode ter certeza que 99,99% das pessoas que fazem isso são todas charlatonas, não tem autoridade nenhuma. É o negócio do padre que foi fazer o exorcismo e disse "em nome do senhor Jesus Cristo" e o demônio saiu e falou "Jesus Cristo já ouvi falar, mas e você quem é?" Às vezes não usar uma linguagem teológica é abdicar de uma autoridade que ele de fato não tem, ele está falando apenas como testemunho individual, como Sócrates, como um filósofo. Agora se ele fosse papa, ou cardeal, talvez ele falasse em uma outra linguagem, porque aí ele estaria devidamente investido de autoridade. Mas isso é um perigo, meu filho. Quem foi que falou que as paredes do inferno estão todas cobertas com a pele dos bispos? Se você quer ser bispo, quer ser cardeal, cuidado, não vai brincar com essas coisas.
Nós não brincamos, nós não falamos com autoridade da Igreja, nós não temos mandato nenhum, não temos cargo nenhum. Isso quer dizer o seguinte, nós temos que realmente explicar o que estamos dizendo e o pessoal que esta falando com autoridade vai lá e cita a Bíblia --- usa versículo da Bíblia pra dar porrete na cabeça dos outros. Eu hoje mesmo levei um monte de porrada porque falei do Padre Pio e veio um monte de cara falando do culto das imagens etc. O cara não pára nem para pensar no sentido da frase que ele está usando --- aqueles que fazem e veneram imagens são não sei o que. Opa, você prestou atenção no verbo fazer? Isso quer dizer que todos os que fazem quaisquer imagens estão condenados. É isso que você está querendo dizer? Não pode ser isso, então é evidente que esse fazer de imagens se referia a uma atividade específica daquela cultura e você tem de ver o que era fazer imagens ali, naquele momento e naquele lugar. Outra coisa, venerar imagens, eu nunca soube que em algum lugar se venerasse alguma imagem. Não existe isso. Por exemplo, o próprio culto a Nossa Senhora é um culto de veneração, não é um culto de adoração. A Nossa Senhora, quanto mais ao retrato de Nossa Senhora. Esses caras nem estão sabendo do que estão falando.
Um aluno desesperado veio me falar que estava discutindo a Igreja na idade média e os caras que vieram discutir com ele citaram O Nome da Rosa como fonte --- e isso foi numa universidade. No Brasil atualmente, as pessoas não buscam conhecimento, se buscassem conhecimento elas fariam abstinência de opiniões.
Hoje alguém no Facebook me perguntou: "Professor, onde podemos encontrar à venda supositórios de opinião?" Que eu sugeri no programa True Outspeak. Eles estão em falta no mercado porque o Mino Carta e uma outra senhora compraram todos. A abstinência de opinião, o jejum de opiniões, durante um bom tempo da sua vida é a condição prévia para você aprender alguma --- se você não faz isso você nunca vai aprender nada. Esse pessoal com dezoito anos já está cheio de opinião, já julgou tudo. Tem uma senhora aqui que diz --- eu virei feminista aos sete anos de idade. Então a senhora é um gênio, com sete anos já tinha entendido todas as relações, tomou posição e ficou lá mesmo. Eu com quinze anos descobri a lei dos três estados --- não, com doze anos --- aí logo depois eu descobri que era do contra e eu estava errado --- minha primeira grande decepção comigo mesmo. Agora essas pessoas já resolveram todos os problemas com doze anos. Quando eu peço a vocês um jejum de opiniões durante algum tempo, é para o seu bem, é pra você chegar aquele estado de concentração, de sinceridade, e para você obter um mapa da sua ignorância, o que que falta eu saber para eu opinião responsavelmente sobre isso aqui? As pessoas nunca colocaram esse problema, e quanto menos interesse tem em conhecer o problema, maior é a intensidade emocional com que opinam. Sempre no sentido de mostrar que elas são boas e as outras são ruins. É claro que isso é uma muleta psicológica, uma mera compensação de complexo de inferioridade, é sempre assim. E isso vai desde os estudantes que palpitam no Twitter ou Facebook, até os professores de universidade e os opinadores de mídia. Porque eu não vejo ninguém ter algum interesse pelo problema.
Por exemplo, vocês viram que eu tive um debate com o professor Alexander Duguin. Dez anos antes eu já falava do Alexander Duguin, porque eu estou querendo saber o que está acontecendo na Rússia então eu vou lá buscar e investigar os livros. Até hoje o nome do Duguin não aparece na mídia brasileira e todo mundo tem opinião sobre a Rússia. Como você vai saber alguma coisa sobre a Rússia, se você não entende, você não conhece o principal pensador, o mentor do governo da Rússia? "Não, não tenho interesse, mas quero ter opinião assim mesmo": é a resposta daquele cara que era correspondente do Globo, que fizeram uma rodada de pergunta para ele e eu perguntei: "o que que você sobre tal assunto?", e ele: "nunca ouvi falar, mas acho que não tem o menor cabimento". Perfeito. Não sei quem é você, não sei nada a seu respeito, mas acho que você é uma besta quadrada.
Aluno: Estaria eu correto dizer que a minha presença é a causa primeira de tudo que me define?
Olavo: Não, é a causa primeira de tudo quanto eu sinto, penso, imagino, faço etc. O definir é que um problema, eu não sei se isso te define. Porque jamais chegamos a nos definir de maneira alguma. É a causa primeira de todas as minhas experiências; a experiência primordial é a fonte de todas as experiências --- essa é a maneira mais certa de dizer.
Aluno: Queria algum comentário seu sobre a obra O Ser e o Nada de Sartre. Alguma semelhança com Lavelle na questão do ser e do existir?
Olavo: Não, O Ser e o Nada é exatamente o contrário do Lavelle. Existe até um livro do autor Gonzague Truc que é Sartre e Lavelle, ou destruição e reconstrução. A comparação é assim cento e oitenta graus oposto.
Aluno: Padre Pio ouviu de nosso senhor Jesus Cristo: "ninguém se perderá sem saber". Como é que se sabe? Em que circunstância um sujeito --- criador de seus hábitos --- pode ou não pode alegar "não fui eu"? É a liberdade que salva ou condena?
Olavo: Se você se coloca no plano da liberdade de espírito, primeiro tudo amansa formidavelmente. Tem que cessar o tribunal interior, você tem que parar de se condenar e se absolver --- você tem de entregar isso para Deus. E acredite, Deus exige de você muito menos do que você esta exigindo. Você vai lá na Bíblia e vê que homens que cometeram pecados horríveis, até homicídios, Deus considerou-os perfeitos. O rei Davi mandou matar o sujeito para ficar com a mulher dele --- quer você uma coisa pior que essa --- Deus depois o considerou perfeito, claro que ele sofreu por causa disso etc. Isso quer dizer que Deus não está exigindo de você uma perfeição quantitativa. Quando Jesus fala "sedes perfeito como meu Pai é perfeito" está guardado a relação analógica aí: se você não é criador do universo, você não pode ser perfeito no sentido em que Deus é perfeito, mas como o Pai é perfeito. Como, isto é, uma relação analógica. A nossa mente e os nossos demônios exigem da gente uma perfeição quantitativa que é inumana. Você não vai encontrar nenhum santo que algum dia não tenha feito [01:20] alguma sacanagem. O próprio Padre Pio, uma vez de brincadeira, empurrou um cara de uma carroça ladeira abaixo e o cara quase morreu --- quase foi autor do que aqui eles chamam de homicídio de segundo grau. E assim por diante. É preciso transferir essa coisa para um nível mais interior onde você não está conversando com seus demônios, nem com a sociedade humana, nem com seus acusadores humanos e nem com a sua própria loucura. Você esta conversando com Deus.
Aluno: Na frase "é difícil isolar a experiência para examiná-la na sua pureza; é preciso uma certa inocência, um espirito de liberdade e de interesse e menos preocupação em procurar". Russel subscreveria essa frase?
Olavo: O problema de Russel é o mesmo problema de todos os outros que eu disse --- ele quer analisar a experiência, mas ele não tem verdadeira intimidade. Ele analisa isso como um cientista que está examinando estados de consciência em geral, não os seus estados de consciência pessoais. Não há envolvimento pessoal na coisa, a consciência de que fala Russel é uma consciência abstrata, genérica, não uma consciência dele indivíduo Russel. Este é o que falta a muitos filósofos do século XX, Russel fez o melhor que podia, mas tinha essa e outras limitações.
Aluno: No início do curso, o senhor ressalta que a tolerância contra o estado de dúvida é uma atitude interior necessária e fundamental para a vida intelectual. Qual a diferença entre esse estado de dúvida saudável, condição indispensável e intelectual, e o estado de dúvida paralisante, a exemplo do que o senhor chama de síndrome do Piu-Piu?
Olavo: A diferença é bastante simples. Se é uma dúvida intelectual, regulamentar e saudável, e você vai ter de tolerar ela, ou é porque você confia que você vai saber aquilo algum dia, ou que alguém vai saber aquilo algum dia, ou que dá perfeitamente para você passar por esse mundo e sair dele sem saber disso e que isso não vai fazer diferença nenhuma porque Deus sabe. Ao passo que a dúvida paralisante é a dúvida premente --- que você sabe que não pode resolver, mas ao mesmo tempo você tem que resolver. Você já entrou no conflito de acusação e defesa. Ao mesmo tempo você está se cobrando o saber alguma coisa e você mesmo está decretando que não pode saber aquilo. A diferença é a atitude de confiança --- de fé, no fim das contas --- ou a atitude de urgência obsessiva como se o destino do mundo dependesse de você saber aquilo.
Transcrição: Paulo Uzai Junior, Paulo Ricardo Costa Pinto e Fabrício Castro Machado.
Revisão: Éricson Rojahn