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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 163

14 de julho de 2012

Como tema da aula de hoje escolhi um assunto que mal comecei a pesquisar, que apenas arranhei, pois, durante a semana houve acontecimentos infelizes com motivos imensos de tristeza, que me vieram inclusive desde os pontos mais inesperados e mantiveram-me ocupado e não tive tempo de preparar outro assunto. Por isso abordarei esse mesmo, ainda que esteja em estado imaturo ou cru, sem prejuízo de que eu possa mais tarde voltar ao assunto e apresentar versões mais elaboradas.

O tema: há algumas semanas tomei conhecimento, por vários meios, de uma epidemia de ataques de animais ferozes a seres humanos. Comecei por uma estatística da revista American Hunter que mostrava um número crescente de ataques de ursos a pessoas nos parques florestais, dos quais existem uma infinidade nos Estados Unidos e onde há ursos à solta; as pessoas podem alimentá-los, jogar-lhes pipoca, conviver com eles na base diária. Até vinte anos atrás, simplesmente não havia nenhum caso de ataque de ursos; de repente, começaram a acontecer, e estão em número crescente.

Evidentemente, cada um dos casos é estudado para descobrir se há um causa para a mudança de comportamento do animal. Chamam-se zoólogos, etólogos, psicólogos de animais etc. para desvendar o problema, e sempre aparece uma explicação muito engenhosa: ou o urso recebeu um sinal errado, ou de que ele estava com fome, ou algo parecido. Em nenhum caso vi tentativa de fazer uma análise sociológica para ver se existe hoje alguma mudança na conduta dos seres humanas que provoque isso.

Comecei a comprar alguns vídeos que davam conta de fenômenos similares acontecidos em vários lugares do mundo, na Europa, na África. Até em regiões em que os ataques já costumavam acontecer, houve um aumento no número. Não é nada absurdo falar de uma epidemia ou, pelo menos, de um problema crescente.

Sobretudo, existe dentro desse fenômeno um setor especial que é o das pessoas atacadas por animais criados por elas mesmas --- sujeitos que criam em casa um tigre, um leão, um rinoceronte, um búfalo. Começaram a acontecer ataques a essas pessoas em quantidades alarmantes.

Em primeiro lugar, comecei por ver se havia alguma constante na conduta do agente humano, mas não na conduta dos animais porque a simples idéia de investigar em cada um desses casos o que houve com o animal - ou seja, por que um animal que antes não atacava passou a atacar - parece-me um pouco unilateral, pois em um ataque, existe o atacante e a vítima, e algo pode ter acontecido pelos dois lados. As pessoas que estudam o fenômeno acabam vendo as miúdas diferenças entre cada caso. Por exemplo, o fato de que a vítima, sem saber, invadiu o território do animal, uma área que pertencia a um urso ou a um leão, e foi atacada.

Mas não vi, em parte alguma, uma investigação com o seguinte teor: houve alguma mudança de conduta dos seres humanos em massa, alguma mudança geral na sua conduta para com os animais que pudesse explicar essa mudança de atitude dos animais? Isso realmente não foi estudado. Só o que se estudou foram atitudes pessoais e individuais das vítimas, e os erros que cometeram. Um sujeito que criou um depósito de lixo perto de sua casa, por exemplo, e as pessoas da aldeia começaram a jogar lixo ali, o que atraiu uma multidão de lobos, que começaram a atacá-las; uma senhora que, contrariando a lei, alimentava ursos no seu quintal --- primeiro apareceu um, e ela lhe deu uma salsicha; nos dias seguintes apareceram dois, três, quatro ursos, e, no dia em que houve escassez de salsichas, ela mesma foi comida por eles.

Em resumo, existem os erros individuais. Mas, por trás desses erros individuais, ou até de acidentes ocorridos sem culpa da vítima, por acaso não existe alguma constante? Procurei, pois, ver certo número de casos --- uns cem --- formei uma amostragem, e reparei que de fato havia algumas constantes. Primeiro: todas as vítimas estavam desarmadas, ou, se tinham armas, hesitaram em usá-las. Há o caso em que um guia turístico armado conduzia um grupo de turistas europeus na África, numa região repleta de rinocerontes e, na hora em que um dos animais investiu contra o grupo, o guarda atirou para o ar, na vã esperança de assustar o rinoceronte, que não ligou para aquilo e continuou a avançar, acabando por matar o próprio guarda e outras pessoas.

Em segundo lugar, invariavelmente, nenhuma das vítimas que sobreviveram lançava a culpa no animal: todas tratavam de dar uma explicaçao e referiam-se ao animal em termos afetuosos. Terceiro item: todas estavam convencidas de que os animais em si não são perigosos e não oferecem perigo para a espécie humana, a não ser que o homem lhes dê algum motivo para atacar. A racionalidade dos ataques animais, portanto, era um pressuposto no fundo de todos esses argumentos.

De onde vêm essas crenças, tão uniformes e aparentemente arraigadas no coração das pessoas? Notem que nesse mesmo momento, existem expedições, safáris não para caçar, mas para fotografar ou observar animais a curta distância, compostas de gente totalmente desarmada. No mundo inteiro são milhares. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que criam animais ferozes em casa está aumentando muito. Só em matéria de tigres --- eu não tenho estatística sobre outros animais ---, existem, no presente momento, pelo menos cinco mil tigres domésticos nos Estados Unidos, sem contar outros países. Evidentemente, há um fator econômico: a ascensão social de classes antes menos favorecidas explica que hoje uma pessoa de classe média possa comprar um tigre --- pagando, talvez, uns dez mil dólares. Economizam dinheiro, compram um tigre e criam-no em casa.

Esta é outra constante: em geral, as vítimas não eram pessoas muito ricas, que possuíssem palácios, guardas e treinadores para cuidar dos animais, mas sim indivíduos que pessoalmente criavam-nos nos quintais; é claro que havia dois ou três ricos, assim como também havia casos de pessoas bem-sucedidas na área, com as quais nunca aconteceu nada. Mas a ascenção social permite que um luxo outrora de príncipes, duques e reis possa ser cultivado por imensas faixas da classe média. A simples expansão quantitativa já sugere a suspeita de que essas pessoas não tinham um preparo adequado para se meter nesse tipo de coisa.

O aspecto sócio-econômico certamente existe e pesa muito entre os fatores; mas há um elemento ideológico-cultural, que é a disseminação da ética ideológica a partir dos anos 60. Vocês - que não existiam no tempo em que eclodiu no mundo o movimento da Nova Era - não podem imaginar, talvez, o impacto que essas idéias tiveram para as pessoas que alcançavam a maioridade nos anos 60 e 70. A mentalidade dessa geração foi inteiramente formada por esses novos princípios éticos, encobrindo outros princípios milenares que tinham vigorado na civilização desde o início do Cristianismo, princípios que essa geração já nem conhecia mais.

Havia até uma mescla de ética ecológica e cristianismo na qual a primeira se expressava nos termos do segundo. Lembro-me, por exemplo, de que as palavras de São Francisco de Assis, que se referia aos animais como seus irmãos, eram amplamente usadas nesse contexto, supondo-se, então, que São Francisco de Assis foi um homem de classe média que criou tigres em casa, ou algo assim. Quer dizer, não havia nenhum esforço sério de compreender exatamente o que São Francisco queria dizer, mas tomava-se aquilo num sentido literal.

Como resumir da maneira mais simples essa tremenda mudança de mentalidade, que ainda tem importância e efeito na mente das gerações subseqüentes até hoje? Eu diria que a idéia do homem como topo e senhor da natureza, tal como foi estabelecido no Gênesis, foi trocada pela de uma convivência democrática com os animais. O ser humano não teria ou não deveria desfrutar de nenhum privilégio sobre os animais; eles não lhe pertenceriam e não estariam à sua disposição; seriam criaturas que teriam a sua vontade própria. Na época, ainda não se falava de "direito dos animais", mas, aos poucos, a idéia que estava embutida foi, por assim dizer, extraindo-se de dentro daquela síntese confusa, expressando-se formalmente com a doutrina dos direitos dos animais.

Essa doutrina é amplamente aceita hoje, e mesmo as pessoas que não a aceitam formalmente compartilham algo dela. A idéia de que todas as civilizações anteriores foram cruéis com os animais e que nós, pela primeira vez na história, somos tocados pelos sofrimentos de um cachorro, de um leão ferido, essa idéia é ainda muito comum hoje em dia. Mas, se a ética ecológica que nos chegava nas décadas de 60 e 70 era uma síntese confusa, a própria idéia de ética e de direitos dos animais, tal como aparece hoje na obra de Peter Singer, é um bicho de sete cabeças. Quando a analisamos, vemos que possui elementos incompreensíveis.

Em parte, essa ética inspira-se em motivos budistas: a simpatia ou a compaixão não só pelos seres humanos, mas por todos os seres vivos. Vemos, porém, que essa compaixão e essa simpatia não são igualmente distribuídas. Por exemplo, pessoas que são contra caçar raposas ou leopardos usando cachorros não são contra caçar ratos usando gatos. Do mesmo modo, a simpatia tem os seus limites: ninguém simpatiza com uma aranha ou uma cobra na mesma medida em que simpatiza com um cachorro ou um leão. Se descermos um pouco mais na escala, veremos que, se devemos ter sentimentos até para com insetos, devemos tê-los também para com bactérias e vírus, que, no entanto, os nossos antibióticos liquidam em escala de macro-genocídio. Para se curar uma simples gripe, faz-se uma devastação nessas "criaturas de Deus" --- a expressão "criaturas de Deus" aparece com uma freqüência extraordinária. Por que, então, não deveríamos ter piedade também das bactérias, que, em geral, não nos fazem mal, mas somente em certas circunstâncias? Podemos também extrair daí um racicíonio incubatório que afirme que as bactérias em si não nos fazem mal, e somente o fazem quando cometemos algum erro, alguma imprudência, ou seja, quando violamos o equilíbrio da natureza, e, portanto, tornamo-nos doentes.

Nas décadas de 60 e 70 também se espalhou, nesse sentido, um novo tipo de ética médica em que se definia a doença como um desequilíbrio, uma desarmonia com as leis da Natureza. Se alguém fica doente é porque há algo de errado com ele. Ficar doente, então, era sinal de algum delito, de algum pecado mal confessado. Isso se disseminou de uma maneira extraordinária; é difícil fazer uma documentação, pois ela é tão vasta que ficaria difícil de juntá-la. A idéia de que o ser humano é apenas um animal entre outros e deveria conviver democraticamente com eles, foi aos poucos transformando-se na idéia de que o homem está abaixo dos animais, pois estes vivem na harmonia da natureza e conservam o equilíbrio ecológico que nós rompemos.

Todas as doenças seriam, pois, em última análise, atribuíveis ao desequilíbrio ecológico criado pelo homem. Nesse sentido, houve uma infinidade de autores que viam a presença do ser humano na Terra como se fosse uma espécie de câncer ou vírus. Nós estaríamos contra a natureza, seríamos inimigos da harmonia cósmica. Havia, portanto, algo de intrinsecamente errado na condição humana. De rei da Criação, o homem transformou-se no bandido da história.

Todas essas idéias vieram juntas e formaram um amálgama que de modo algum foi espontâneo. Não podemos esquecer que toda essa ideologia ecológica, essa ideologia do equilíbrio na natureza etc., veio de entidades internacionais muitíssimo poderosas, como o Clube de Roma, a ONU e outras, havendo, portanto, campanhas com financiamento bilionário para que essas idéias se espalhassem pelo mundo, não sendo de espantar que a população, inerme, as receba como se fossem palavras do Evangelho. Isso, em primeiro lugar, pelo fato de o cidadão comum não ter condição de abacar as transformações ideológicas de escala mundial e entender o que está acontecendo; não podendo orientar-se, simplesmente segue o que lhe parece ser a opinião da maioria, embora muitas vezes não o seja.

Aristóteles dizia que a diferença entre a retórica e a erística consiste em que a retórica raciocina a partir de premissas que são comumente admitidas, que são de domínio público ou crença geral, e a erística consiste em raciocinar a partir de premissas que somente parecem ser de crença geral ou domínio público, quando, na verdade, não o são. Isto é algo característico de todo esse tipo de argumentação: sempre se toma como se fosse de aceitação geral aquilo que se pretende tornar de aceitação geral. É uma espécie de blefe e ele em geral funciona.

Não podemos nos esquecer de que a origem de tudo isso foi o chamado Iron Mountain Report, quando, por iniciativa dos Rockefeller, reuniu-se um grupo de duzentos estudiosos --- economistas, sociólogos, cientistas políticos, psicólogos etc. --- para discutir a seguinte questão: qual poderia ser o substitutivo ideal para a guerra --- "guerra" no sentido da força unificadora de uma população? Quando uma nação é atacada, evidentemente, os vários setores políticos e ideológicos que a compõem unificam-se, pelo menos durante algum tempo, para responder ao desafio, como aconteceu aqui nos Estados Unidos no Onze de Setembro, em que houve demonstrações públicas de unidade nacional, todos se dando as mãos, aparecendo nos palanques, tornando-se, de repente, irmãozinhos contra o inimigo comum. Isso é uma constante na história.

Suponhamos, porém, uma situação mundial onde não exista mais a possibilidade de guerra, ou seja, onde já exista um governo mundial. Não há mais guerra, mas apenas operações policiais e punitivas para domar rebeldes aqui e ali --- mais ou menos como o império mongol, que considerava que o mundo dividia-se em duas partes: o império mongol e as regiões rebeladas. Ali não se reconhecia a existência de outros poderes soberanos que pudessem entrar em guerra; dito de outro modo, o império mongol não fazia guerra, mas operações policiais para reprimir os rebeldes.

Raciocinando dentro de um esquema desse tipo, o que se poderia usar como símbolo unificador para as massas, no caso de se precisar do apoio delas para algum objetivo particular? Várias hipóteses foram consideradas, até mesmo a de invasão de extraterrestres, mas, no fim, fechou-se em torno de um negócio chamado ecologia. A ameaça global ao planeta é um símbolo capaz de despertar em todas as sociedades o desejo de união e de ação organizada para defender o planeta da sua extinção.

O único depoimento que existe a respeito do Iron Mountain Report é do economista John Kenneth Galbraith, que confessou que fez parte da comissão. Os outros autores do Iron Mountain Report permanecem anônimos. Não vejo por que Galbraith mentiria a esse respeito. Ele disse que foi um dos signatários, que esteve lá e acompanhou, e que se deu exatamente o que ele contou. Foi nos anos 50. A partir da década seguinte, a difusão da ética ecológica se observa em todos os países do mundo, numa escala maciça, penetrando todos os setores da sociedade por meio de uma estratégia multilateral na qual o mesmo discurso vem de fontes completamente diversas e sob pretextos os mais variados, dando a impressão de uma convergência espontânea, de um consenso natural entre os seres humanos.

Essas campanhas não se apresentam ostensivamente como tal, mas aparecem em teses universitárias, livros, documentários, filmes, sobretudo, novelas de televisão, notícias que são espalhadas. É como se fosse uma transformação espontânea da consciência pública. Operações desse tipo são facílimas de montar se houver dinheiro para isso.

Se acompanharmos as mudanças que aconteceram no cinema, sobretudo em Hollywood, a partir dos anos 60, vemos que a idéia da mágica harmonia da natureza violada por um homem ou um grupo de homens é uma constante nesses filmes. É a história do capitalista malvado que quer derrubar uma floresta e enfrenta a oposição de um heróico menino ajudado por um tigre, um lobo ou um urso, e, invariavelmente, por um índio.

A partir dessa época, os índios começaram a sistematicamente aparecer no cinema como portadores de uma sabedoria milenar infinitamente superior à compreensão que os invasores ocidentais pudessem ter a respeito. A mistificação da sabedoria indígena tornou-se uma constante com presença avassaladora nos filmes. Às vezes, não era um índio necessariamente americano; populações de culturas menores, localizadas na África e na Ásia, também eram sempre apresentadas como detentoras de uma sabedoria milenar. Isso acontecia desde filmes vulgares feitos pela televisão até em filmes altamente elaborados, como Dersu Uzala, de Akira Kurosawa, onde um caçador aparece como se fosse um novo Ramana Maharshi ou São Francisco de Assis, um homem que dialoga com as plantas, conversa com as minhocas e recebe mensagens divinas que um pobre capitão russo absolutamente não entende.

Notem bem que o que está sendo descrito é a cultura atual na sua quase totalidade. Imaginem que, para fazê-lo, é preciso realmente muito dinheiro. Até hoje, ninguém parou para observar quais seriam as consequências disso em longo prazo. Lembrem-se da advertência de Georg Jellinek, segundo a qual, para entender os processos históricos, é preciso começar por distinguir quais são os processos que atendem a um plano, a uma premeditação, e quais são aqueles que resultam da confluência impremeditada de fatores diferentes. Há uma diferença brutal entre esses os dois. Porém, evidentemente, quando o plano é de abrangência enorme, como é o caso, ele tem a peculiaridade de se apresentar como se fosse uma confluência espontânea de fatores. Justamente porque o plano é muito grande, torna-se difícil de traçar o perfil, a coerência do plano inteiro, e, mais ainda, de rastrear as suas origens.

Um cidadão comum tem a condição de investigar isso? De jeito nenhum! É só quando isso chama a atenção de dois ou três estudiosos que se começa a rastrear, e, então, a figura do plano começa a aparecer por trás da aparente confluência espontânea de fatores. Nesse momento, é muito fácil aos defensores do plano alegar que se trata de uma teoria da conspiração, que processos históricos de enorme abrangência não podem ter sido planejados num escritório, tachando esses estudiosos de teóricos da conspiração.

O próprio tamanho do plano é uma camuflagem. Ele não precisa realmente se camuflar, pois o parfil da unidade da ação por trás das suas diferentes manifestações é dificil de se apreender; não é impossível, e hoje nós temos, por exemplo, o site de David Horowitz, Discover the Networks, onde se vê quais entidades recebem dinheiro de outras tais ou são orientadas por estes, de modo que se pode reconstituir o esquema inteiro, desde a sua aparência pública mais popular, até o centro de comando de onde ele apareceu.

Sem contar o seguinte fator: já na década de 30, Stálin e Antonio Gramsci, separados um do outro por uma distância enorme, perceberam, ao mesmo tempo, que esses processos só têm necessidade de ser dirigidos até certo ponto, porque, depois, têm início as famosas "leis da imitação", descritas pelo sociólogo francês Gabriel Tarde, que são, evidentemente, um mecanismo social usual. Fazer como os outros é um mecanismo realmente espontâneo de adequação social. É o caso de se perguntar: quantas pessoas resistem a criar as suas próprias idéias desde os seus próprios estudos e considerações, resistindo contra a opinião dos seus pares? Essas pessas são raras, evidentemente.

A partir de certo momento desencadeia-se o movimento, financiado e alimentado com doses maciças de dinheiro durante certo tempo, com apoio de agentes profissionais pagos; em volta destes, forma-se uma militância que paga para que o movimento subsista; em volta desta, forma-se um círculo de aceitação passiva que chega até aos confins do universo.

Até em operações de menor escala o princípio da propagação espontânea vigora. Eu acabo de ler um livro escrito por um casal francês, Pierre de Villemarest e sua esposa, sobre a penetração da KGB na Igreja Católica, que começou desde a década de 30 em escala maciça. Nos arquivos de Moscou, há relatórios do seguinte teor: "Houve um conclave, uma reunião de bispos, e o nosso agente fulano de tal --- um nome suposto, evidentemente --- se pronunciou no seguinte teor, fez um protesto contra os Estados Unidos etc." Isso desde a década de 30, o que quer dizer que a palavra da KGB desde então começou a aparecer em reuniões de bispos, cardeais, em seminários.

Contudo, por volta do Concílio Vaticano II, apareceram relatórios com o seguinte teor: "Já não precisamos fazer mais nada. O processo está desencadeado e, daqui por diante, ele prossegue sozinho. Podemos alocar os nossos agentes para outras missões, dado que essa já está cumprida e o processo entrou no piloto automático." Esses documentos realmente apareceram nos arquivos de Moscou, e são reproduzidos nesse livro.

Rastrear a origem das crenças públicas pode ser enormemente trabalhoso, mas é a única maneira de podermos nos posicionar racionalmente diante disso tudo. Ora, o posicionar-se racionalmente é precisamente o contrário daquilo a que o plano visa, pois, se esse plano de ação tem por objetivo justamente simular um processo espontâneo de transformação sócio-cultural, a última coisa que se deseja é que alguém se posicione racionalmente perante ele. Ele conta com a aceitação passiva, com a propagação de símbolos, slogans, lugares-comuns que se impregnam no senso comum com uma velocidade muito grande, dependendo da quantidade de dinheiro e do número de agentes.

Quando voltamo-nos para aquelas pessoas que foram atacadas e comidas pelos seus próprios animais domésticos, ou que ingenuamente percorreram regiões infestadas de animais ferozes sem uma arma, sem um meio de defesa, vemos que elas são as vítimas últimas desse processo.

São pessoas que não têm a menor idéia de como isso começou, e que acreditam nessa nova visão de ética ecológica com uma credulidade total, com uma ingenuidade profunda, e que devotaram a isso suas vidas, e as perderam, evidentemente. São algumas das consequências letais deste processo de transformação sócio-cultural. É uma coisa realmente deprimente, consternador, você ver a ingenuidade com que as pessoas repetem estas coisas. Por exemplo, a afirmação: "se o animal me atacou é porque eu fiz algo de errado". Um desses "erros" é a suposta invasão do território do animal. Essa noção de território é uma das mais místicas que existe em circulação no mundo, quando se fala dos viajantes europeus que invadiram o território indígena. O que é o território indígena? Se analisarmos só o caso dos EUA havia mais de duzentas culturas indígenas separadas, em geral hostis umas às outras, disputando território e matando-se mutuamente e essa era das ocupações principais dos indivíduos. A qual delas pertence o território? Você pode dizer que um grupo de sociedades em conflito umas com as outras é, no seu conjunto, dono do território em disputa, ou, ao contrário, esse território, pelo simples fato de estar em disputa, não pertence juridicamente ou moralmente a ninguém? Em segundo lugar, como é possível assinalar a propriedade de um território se não havia meios de medi-lo, e se a simples preocupação de medi-lo era completamente alheia a estas culturas? No caso do México, por exemplo, o pessoal fala dos astecas. Eles foram os últimos de uma série de culturas que se inter devoraram durante milênios! Era assim: aparecia uma tribo, ocupava um território; surgia outra tribo, matava todos de uma vez, ocupava o território, e assim por diante. A matança só parou quando chegaram os espanhóis. Mas a noção de que os europeus invadiram e tomaram o território indígena é uma coisa que está no senso comum como se fosse uma verdade óbvia. Ademais, considerando-se o número de índios que havia aqui e o tamanho do território, o número de índios na América não era do tamanho da população de Portugal, então aqueles índios seriam os maiores latifundiários do planeta. Dez milhões de índios que possuem um continente inteiro, absolutamente sem limites, com o pequeno detalhe que eles também estavam invadindo o território dos animais. Hoje se sabe mais ou menos qual é a área ocupada por um animal, digamos, um lobo. Ele pode caminhar certo terreno por dia e tem uma zona de caça mais ou menos delimitada. É possível fazer essas medições. Mas em que sentido esta região pertence àquele lobo, ou àquele leão? Nós podemos facilmente transportá-lo para outro lugar onde ele tenha até mais disponibilidade de caça, sem que ele sequer entenda o que aconteceu. A noção de propriedade territorial animal é uma das coisas mais confusas e místicas que existe, mas é aceita hoje em dia como se fosse impressão de uma realidade física. Essas idéias são a cultura contemporânea e constituem o arroz com feijão da nossa alimentação cultural, diariamente, e está cada vez mais difícil sair de dentro disso, porque na mesma medida em que essa mentalidade se impõe às populações, ela se consolida em novos critérios legais, e, portanto policiais. Criam-se novas modalidades de crime que expelem da sociedade decente uma multidão de pessoas que simplesmente não está muito bem adaptada a isso. Um exemplo é a famosa teoria do fumo passivo. Se há um sujeito fumando aqui, duzentas pessoas em volta supostamente estão sofrendo danos imediatos para a sua saúde. Essa teoria nunca foi comprovada, não existe o mais mínimo sinal de que o fumo passivo seja uma realidade, e, no entanto, a coisa já virou lei imposta num mundo inteiro. E a questão vai além: essas leis entram nas almas das pessoas e modificam as suas emoções. Em certos ambientes, se alguém acende um cigarro, as pessoas se sentem realmente ameaçadas e realmente ofendidas, na sua mais profunda dignidade! Aqui nós EUA, os comerciantes de livros usados têm de anunciar se o livro vem de um ambiente onde tinha fumantes ou não! "Esse livro é bom porque vem de uma casa onde o fumo era proibido, não tem contaminação". É o fumo passivo e indireto. Não se trata de estar num ambiente onde o sujeito fumou; você está tocando um objeto que esteve anos atrás no ambiente onde uma pessoa fumou, e, portanto, pode ter alguma contaminação. É claro que é um sentimento paranoico. Mas ele se tornou normal, e o simples fato de você levantar dúvidas em relação a ele já nos torna virtualmente anormais. Essa mentalidade ecológica se implantou no mundo com tal vastidão, com uma abrangência tamanha, e com uma autoridade avassaladora que está criando as formas de discriminação mais extremas que já existiram ao longo de toda a história da humanidade. E, curiosamente, uma boa parte disso imposta em nome do combate à discriminação e coisas desse tipo. Por exemplo, a idéia de que os seres humanos, de algum modo, são superiores aos animais é combatida como se fosse um preconceito, uma discriminação. Ora, o que você tem contra os lobos e as hienas? É evidente que esta nova onda de vítimas de ataques animais jamais poderia ter acontecido sem este fator que induziu essas pessoas a terem, para com os animais, uma atitude de desarmamento, de entrega, por assim dizer, sentimental, e que pagaram seriamente por isso. É evidente que nem todas as pessoas que criam animais acabam tendo esse destino, mas o número delas já é altamente significativo. Existe uma página na internet chamada Animal Attack, onde o indivíduo reproduz ali, na medida do possível, todas as notícias de ataques animais. É muito impressionante. Existe uma série de filmes chamada Hunter and Hunted, que mostra muitos casos nos quais o ser humano se torna o caçado e o animal o caçador; e, evidentemente, existem livros importantes como Man Eaters/(Comedores de Gente), de Peter Hathaway Capstick, um famoso caçador americano; existem ainda milhares de relatos de caçadores sobre a conduta animal, onde se vê que realmente, em qualquer caçada, o caçador é virtualmente ele próprio a caça; o que é a coisa mais óbvia do mundo. Um exemplo que todos os caçadores de búfalo relatam: quando você está seguindo o búfalo, é ele que está seguindo você. Ele já deu a volta, está atrás de você; o urso faz a mesma coisa, e às vezes leões também. Evidentemente, isso coloca em questão a diferença entre os homens e os animais, e, às vezes, algum autor, alguma boa alma, decide dar alguma explicação que pareça aceitável para todos os lados. É o caso do livro de Roger Scruton - Animal Rights and Wrongs - onde ele diz que a sobrevivência humana será impossível se nós não conseguirmos formular alguns padrões éticos que possam ser aceitos uniformemente por todas as pessoas, independente de serem religiosas ou ateísticas. Eu acho impossível. Por quê? Porque o movimento ateístico não se constitui de um grupo de pessoas que simplesmente exercem o seu direito de não crer em alguma coisa, mas sim de um movimento firmemente empenhado em desarraigar o Cristianismo da face da terra. É um movimento tão grande e tão vasto como foi o da ética ecológica nos anos sessenta, e vemos os reflexos por toda parte. Pior ainda: nesse movimento confluem duas forças opostas, que são, por um lado, os ateus ocidentais militantes e por outro o Islam. Ambos estão interessados em extinguir o cristianismo, e isso é um dos motivos pelos quais facções declaradamente ateísticas aparecem de mãos dadas com os mulçumanos, contra o ocidente. Isso é sistemático, sempre é assim. Claro que um dia eles terão de acertar suas contas entre si. Mas, evidentemente, cada um dos lados tem a esperança de que vai poder controlar o outro no mundo. Eu não sei o que vai ser, mas considero que isso vai ser um dos grandes problemas da humanidade, daqui a pouco. Quando a aliança entre comunistas e islâmicos chegar ao seu limite natural - pois é claro que uma boa parte do movimento islâmico é apenas manipulação soviética -- o problema já terá sido exposto. Tem o famoso artigo do Ion Mihai Pacepa contando como treinou Yasser Arafat, entre outros relatos. Então, uma parte do acordo é controlada, de fato, pela antiga KGB, hoje FSB. Porém, há também uma boa parte do movimento islâmico que é autóctone e genuinamente islâmico, e, mais dia, menos dia, essa aliança terá de se romper, sobretudo caso alcance a vitória contra o inimigo comum, que é a civilização do Ocidente. De qualquer modo, a questão da diferença substantiva entre homens e animais é abordada de uma maneira sistemática pelo Roger Scruton, que usa o velho método aristotélico de descrever o aparato cognitivo dos animais e dos homens por faixas diferentes de capacidades, como, por exemplo, capacidade de sensação. Se não houver um aparato sensorial, nenhum conhecimento é possível, então deveríamos reconhecer que o homem tem uma capacidade sensorial tanto quanto os animais. Alguma capacidade de percepção de objetos, não só as sensações, mas dos objetos correspondentes; também, os animais têm memória, e assim por diante. Ele repete aquele belíssimo raciocínio de Aristóteles, do começo da Metafísica, os vários graus de conhecimento, até chegar a um que os homens têm e os animais não. Roger Scruton entende que a tendência hoje entre os filósofos e formadores de opinião, é mais para seguir aquela orientação aristotélica inicial, do que para aceitar a visão moderna, iluminista e mecanicista de René Descartes, para o qual os animais eram apenas máquinas, desprovidas de alma, de psique etc. A argumentação do momento ecológico é mais copiada de Aristóteles do que de Descartes, porém, quando chega a definição das faixas superiores, existem aqueles que negam que haja diferença entre homens e animais, ou pelo menos procuram atenuar ao máximo essa diferença. Essa semana ouvi uma notícia dando conta de que pesquisas experimentais afirmam os animais têm consciência. E quem é que não sabe? Desde o tempo de Aristóteles se sabe que eles têm consciência de alguma coisa. O problema não é saber se têm consciência; eles pensam, têm sentimentos, se recordam, são capazes de julgar uma situação e tomar uma decisão imediatamente e são capazes de ter condutas sociais - por exemplo, quando um cavalo sai correndo o resto do rebanho sai correndo atrás dele. Não é descoberta nenhuma. Se não é uma novidade, por que anunciá-la? É porque o artigo vem com uma determinada ênfase subentendida: vocês humanos não são superiores aos animais. O Scruton assinala como primeira diferença básica a linguagem abstrata pela qual o homem, à diferença dos animais, pode pensar o futuro, pode pensar possibilidades, impossibilidades, probabilidades, elementos que para o animal não existem, de maneira alguma; para o animal só existe o dado imediato. Porém, isto também não basta para distingui-los, porque até certo ponto um animal pode raciocinar sobre probabilidades. Eu já citei o exemplo do gato que está tentando pular para cima do muro, e ele, então, mede a força que vai ter de fazer para alcançar o topo do muro. O muro está diante dele, o gato está a determinada uma distância. O que o gato está fazendo? Uma equação trigonométrica - com a linguagem dele - mas está. Ou seja, está avaliando a probabilidade, maior ou menor de alcançar o muro, desde uma distância x com um empuxe y; dentro de uma situação dada, da situação imediata, o bicho pode e é até capaz de especular possibilidades, além de alguns raciocínios de causa e efeito bastante complexos. Um macaco não consegue alcançar uma banana, então ele pega um pedaço de pau para derrubar o cacho. Ele experimentou duas ligações de causa e efeito, e achou que uma era mais provável que a outra. Isso também não deixa de ser um raciocínio de probabilidade. Em qualquer caso, a diferença entre o homem e o animal é uma diferença quantitativa. Ou seja, um homem é capaz de abarcar o horizonte de probabilidades enormes, é capaz de abarcar todo um passado humano, não só o passado dele, e é capaz de conjeturar, por exemplo, o futuro de toda a humanidade. Mas essa é uma diferença quantitativa. Eu sugiro que leiam esse livro, é muito interessante. Mas se perguntarmos: existe alguma diferença básica na qual tudo isso se baseia? Na qual tudo isso se fundamenta, na qual todas as diferenças quantitativas se fundamentam, existe uma base qualitativa da diferença quantitativa? Creio que está diferença está na unidade substancial do eu humano, que - já expliquei para vocês no curso de imortalidade e em outras aulas -- sem isto, nada dessas faculdades seriam possíveis ou teriam o menor significado. Porque essas faculdades, como por exemplo, a da conjeturação de possibilidades, linguagem abstrata, etc., como enfatiza o Roger Scruton, todas essas são faculdades sociais. Ele se remete a autoridade da demonstração feita por Hegel na Fenomenologia do Espírito, e por Wittgenstein nas Investigações Filosóficas mostrando que todas essas faculdades são inconcebíveis fora de uma rede de solidariedade social, e isto é verdade. Porém, eu pergunto: se não existisse nenhuma unidade substancial do eu humano por baixo de tudo isto, todas essas faculdades seriam literalmente impossíveis, porque a sua própria memória dependeria de um constante reforço social. A idéia de que a sua identidade pessoal vem da sociedade, a sociedade lhe dá um nome, e você aprende a se reconhecer por aquele nome, como um cachorro. Quando você chama o meu cão pelo nome 'Big Mac, Big Mac!', ele aprende que é dele que estamos falando. Esta doação da identidade pela sociedade seria impossível se não existisse uma base para recebê-la no próprio ser humano individual. E o cachorro pode se reconhecer quando você o chama pelo nome, mas isso não quer dizer que ele pode reconhecer a si mesmo chamando-se por aquele nome. O cachorro só se reconhece pelo nome quando você o chama, quando alguém o chama. Então, a identidade dele só aparece numa circunstância imediata, que é uma unidade quebradiça. No instante em que ele não está sendo chamado pelo nome, ele não tem nenhuma representação histórica de si mesmo -- por exemplo, uma memória refletida dos seus acontecimentos; ele não pode contar a sua vida, muito menos a vida dos seus antepassados, e muito menos pode se julgar como um todo. Esta capacidade diferencial aparece, sobretudo, naqueles momentos assinalados pelo Louis Lavelle, naquele trecho que eu usei no curso sobre momentos de lucidez, onde ele diz dos momentos em que toda a sua vida lhe aparece como um conjunto coerente, e você entendem o sentido da sua vida. Claro que são momentos fugazes, depois você o esquece, mas poderá retornar outras vezes a estes momentos. Acredito que essa é a capacidade humana diferencial, baseada no fato de que o indivíduo humano tem uma identidade substantiva. Esta identidade substantiva permanece a mesma ao longo de toda a sua vida, e é compatível com todas as mudanças psicológicas e até psicopatológicas, pelas quais ele pode passar durante a vida. Já mencionei a vocês diversas técnicas de concentração psicológica pelas quais o indivíduo se situa dentro deste fundo permanente, recuando desde a periferia dos estímulos ambientes, sensoriais, afetivos etc., até aquilo que simbolicamente se chama "o coração". Existe uma literatura imensa sobre esta ciência do coração humano, que não tem nada a ver com sentimentos e emoções, mas justamente o contrário; é uma tomada de consciência daquilo que existe de permanente no ser humano, ao ponto de ultrapassar a duração da sua própria vida física; é o que nós chamamos de consciência de imortalidade. É isso que vai diferenciar o ser humano, e não a faculdade de linguagem ou a faculdade de organização social etc., pois tudo isso subentende esta existência de um eu verdadeiro, por baixo das sucessivas identidades assumidas pelo ser humano ao longo da vida. Ora, não há nenhum fator natural ou social que explique essa consciência permanente. Observemos, por exemplo, a experiência de morte clínica, em que o indivíduo sai do seu corpo, observa e toma ciência de fatos que estão acontecendo fora do alcance dos seus sentidos corporais - como a mulher que viu o sapato no teto do hospital em cujo leito ela estava morrendo - e outros fatos deste tipo, e que vão além, com relatos de fatos exteriores ao ambiente circundante, como coisas que viram no outro mundo: encontros com Jesus Cristo, Nossa Senhora, ou o menino que viu as três pessoas da Trindade, o Carlton Burpo. Até hoje não houve nenhum exame crítico sério que pudesse impugnar essas narrativas; ao contrário, cada vez que as examinam, elas se tornam mais consistentes. Quem é esta pessoa que sai do corpo e vai para a eternidade? Quem é? Bom, a sua pessoa física não é. A sua pessoa social também não pode ser. Você não pode levar a sua identidade social para além da duração da sua vida física. Entre outras coisas, porque a nova faixa de realidade à qual se tem acesso é tão diferente da sociedade humana que conheceu na Terra, que não haveria jeito de se produzir uma a partir da outra. Então é evidente que essa parte que se desloca, esse eu que se desloca, é o eu permanente, e não o eu histórico criado ao longo da vida, o eu biográfico, o eu social etc. A existência deste eu só pode ser explicada como uma coisa que é fundamentada dentro do indivíduo humano pela própria unidade completa do real. O real é considerado não só em termos de universo, mas em termos de transuniverso; e isto é precisamente o que está no versículo da Bíblia no qual Moisés pergunta a Deus 'quem é Você?', e Ele responde 'Eu Sou o Eu Sou'. Este é o fundamento da identidade humana, da verdadeira e profunda identidade. Então o simples fato de podermos dizer 'eu', de podermos contar a nossa história, de podermos entrar em relações sócias altamente complexas, e desenvolver a linguagem abstrata, tudo isso se fundamenta nesse "Eu Sou". Percebemos aquilo que Aristóteles entreviu sem ter a linguagem suficiente para poder explicar: quando ele diz que naquela escala das faculdades que vêm subindo -- as sensações, a memória, raciocínio etc. -, quando ele chega ao Nous, no espírito, ele diz: esta é a parte imortal do ser humano, portanto ela não faz parte da natureza. Claro que, na mesma medida em que se perde a visão do Nous, se perde a visão da identidade profunda, se começa a simbolizá-la pelas faculdades que a expressam na vida prática, como a inteligência, a memória, capacidade social, raciocínio abstrato, etc. Mas todas essas coisas não são o Nous, mas apenas expressões que ele adquire quase acidentalmente no curso da vida terrestre. Quando as pessoas não têm a visão do Nous a comparação que elas fazem entre o homem e os animais, pára no nível da inteligência abstrata, ou do raciocínio, ou até das emoções. Quando descobrem que os animais têm emoções, logo declaram: não há diferença entre nós e eles. Insisto: quem é que não sabe que animais têm emoções? Todo mundo sempre soube disso. Qualquer criança que tenha um cachorrinho sabe quando ele está alegre ou triste. Neste exato instante começou uma trovoada e a minha cachorrinha Missy, imediatamente saltará a cerca e se esconderá no nosso quarto porque está aterrorizada; os outros não ligam muito. E ela se deita lá e, como se diz popularmente não fala com ninguém. Mesmo com um carinho, ela está imóvel. Nem olha para você. Eu sei que ela está aterrorizada, e que nada vai consolá-la. Todo mundo sabe disso. E os cientistas descobrem isso em laboratório, pelos meios mais indiretos possíveis! Para se descobrir que o cachorro tem emoção, foi preciso examinar o cérebro do animal e ver qual área foi ativada em certas circunstâncias. Precisa de tudo isso para descobrir o óbvio? Mas o fato é que essas comparações são feitas entre faculdades que o homem de fato compartilha com os animais, mas que ele só tem em nível muito maior. O problema é justamente essa pergunta: porque o homem tem em nível maior? Porque ele tem outro fator que não é quantitativo, mas qualitativo, que é justamente o Nous, ou a sua verdadeira identidade permanente e imortal, como já tinha entrevisto Aristóteles.

INTERVALO

Aluno: logo no início deste curso o senhor falou sobre um assunto que estou achando que seja a ciência do coração numa das aulas; tem relação com a tradição contemplativa. Outro aluno pergunta*: a ciência do coração humano que o senhor nos fala deve ser entendido no sentido de autoconhecimento, baseado em práticas ascéticas de recolhimento meditativo profundo, ou mesmo certos estados de alma nos quais em raros momentos o indivíduo vislumbrar aspectos da verdade superior?*

Olavo: sim, estou me referindo precisamente a isso. Um bom livro sobre isso, sobre a teoria disso, não sobre a técnica, é o do Frithjof Schuon, L'oeil du Coeur -- O Olho do Coração. O Schuon, embora esteja sob suspeita sob outros aspectos, é um grande expositor sobre esses assuntos, e não vejo porquê não confiar nas exposições dele. Do ponto de vista mais prático, existem os famosos Relatos de um Peregrino Russo, que foram publicados no Brasil, inclusive. Por incrível que pareça, foram publicados por iniciativa de gente da Teologia da Libertação, assim como o René Girard foi publicado por gente da TL. São, digamos, especialistas em parasitar essas coisas. E tem alguns livros que eu creio ter mencionado no curso sobre a Consciência da Imortalidade. Eu vou rever isso, e na próxima aula dou mais alguns títulos.

Aluno: Se os fundamentalistas islâmicos e os ateístas ocidentais tiverem a necessidade concreta de resolver suas diferenças depois de atingido o objetivo comum -- destruição do Cristianismo e Judaísmo -, é porque nós acreditamos nas profecias erradas, não?

Olavo: É claro que não. A destruição do Cristianismo como um fato que tem validade e autoridade pública é algo que está perfeitamente previsto nas profecias. Primeiro a fé vai desaparecer; desaparecer praticamente -- sempre haverá um grupinho ou outro. E esses conflitos entre diferentes aspectos das forças do Anticristo estão previstos também na profecia, não há nada de errado com elas.

Aluno: O que mais poderia provar a veracidade do Iron Mountain Report, sendo que seus próprios editores disseram ser uma fraude?

Olavo: Entre o depoimento do Galbraith e o desmentido posterior dos editores, prefiro ficar com o primeiro. Pelo menos o sujeito está assumindo uma responsabilidade, e ele não teria porque se inculpar a si mesmo, ao passo que os editores podem ser facilmente comprados para desmentir uma coisa dessas, é o mais óbvio. Ademais, existe a lógica interna das coisas, aquilo que está ali planejado foi realmente feito. Ainda que fosse um relato ficcional, ele corresponde à realidade, mas não é ficcional, porque você tem pelo menos uma testemunha que disse 'eu estava lá, eu assinei essa coisa'.

Aluno: No Iron Mountain Report, além da busca do elemento aglutinador, há também a preocupação com o aspecto econômico e de controle demográfico desempenhado pela guerra. Seria exagerado imaginar que a escolha da ecologia também atende essas necessidades, e, no caso do controle demográfico, a solução seria a disseminação do aborto?

Olavo: Sem a menor sombra de dúvida; existem provas cabais disso. A família Rockefeller tem, no controle demográfico, na redução da população na Terra, um dos seus objetivos permanentes desde o começo do século XX, e está disposta a tudo pela causa. Inclusive existe o famoso número de cinco de maio de 1993, do periódico Granma cubano, que dá conta de uma reunião que houve entre representantes do Diálogo Inter-Americano, que é think tank do Partido Democrata, e os representantes do Foro de São Paulo, em Miami, para discutir um apoio da primeira à segunda organização no caso deste assumir a política abortista. Um recorte desta edição do Granma cubano me foi enviado, mas procurei o exemplar inteiro e este número sumiu da Biblioteca do Congresso norte-americano e também de várias outras bibliotecas coordenadas pela Biblioteca do Congresso. Eu enviei há uns três anos um aluno pesquisar e ele descobriu que o documento havia desaparecido de todo lugar e por uma coincidência a diretora do setor de publicações latino-americanas da Biblioteca do Congresso norte-americano na ocasião era a mesma senhora que havia organizado o encontro entre o Diálogo Inter-Americano e o Foro de São Paulo em 1993. Há uma ocultação tremenda. O controle que essa turma desfruta sobre a circulação de informações é terrível. Não é total e nem invensível evidentemente, mas no máximo um ou outro pesquisador fica sabendo e isso nunca terá circulação pública.

Aluno: Existe um documentário do cineasta Werner Herzog ''Grizzly Man'' de 2005 sob o ativista ecológico Timothy Treadwell, especialista em ursos e que acabou sendo comido pelos ursos junto de sua namorada. É muito impressionante.

Olavo: Eu também assisti um documentário de um pesquisador russo que passou trinta anos no meio dos ursos. Uma das poucas pessoas que tiveram sorte nisso foi um cidadão chamado Peter Sipek que fez em alguns filmes o papel de Tarzan, nos anos 1940 ou 1950. Sipek era um homem muito alto, algo impressionante, porque um urso ficaria assustado com ele. Um dia o estúdio pegou fogo, ele caiu e ficou desmaiado. De repente, viu-se arrastado para fora do local e quando acordou quem o estava arrastando era um leão. Ele ficou tão grato aos leões que decidiu passar o resto de sua vida criando leões e tigres. E chegou até a extrema velhice criando tigres e nada aconteceu a ele. Evidentemente é uma exceção, pois estes casos existem. Mas o número de estudiosos que foram comidos por leões ou tigres é muito maior.

Aluno: Gostaria de saber qual a natureza da sua relação com o Instituto Olavo de Carvalho. Você ajudou na criação e nos desenvolvimentos dos programas do sistema de ensino?E do aconselhamento que se adotou lá? Você acompanha as atividades do IOC? E dá instruções aos seus membros?

Olavo: As únicas instruções que eu dou para os membros do IOC são aquelas que vocês estão recebendo aqui no curso. E nada mais. Tudo o que se faz lá é exclusivamente mérito de quem fundou o Instituto e de quem está dirigindo seus trabalhos. Eu realmente não dou orientação nenhuma. Acredito que eles devam ter a capacidade para conduzir as coisas, e nós vemos alguns trabalhos que eles fizeram como aqueles videos sobre escritores brasileiros, que está muito bem feito. Isto é o máximo que eu sei sobre o IOC. Espero que tudo esteja bem.

Aluno: Recentemente constatei que nossa leitura é muito lenta. A minha é de cinco minutos por página, mas o Otto Maria Carpeaux era capaz de ler duzentas páginas em duas horas. Ele leu A Mulher que Fugiu de Sodoma em uma única noite. Tudo isso dá menos de quarenta e cinco segundos por página. O que fazer para aumentar a velocidade da leitura? Conhece alguma dica sobre isso?

Olavo: Existe uma técnica que se chama leitura fotográfica, mas creio que ela nunca pode servir para livros de filosofia porque seria um desastre total. Pode servir para um livro de ficção ou um livro informativo. O livro de filosofia deve ser recomposto mentalmente porque ele é como se fosse uma partitura de uma música que você tem de tocar. Você tem de refazer a filosofia como se ela fosse a sua própria. Para isso Nietzsche recomendava a leitura lenta, ele se considerava mestre na leitura lenta, e, portanto para a filosofia isto é o certo. Eu não pratiquei a leitura fotográfica, eu me informei rapidamente a respeito e achei que não serviria para meus propósitos. No entanto, eu reparo que quando faço uma pesquisa - por exemplo, a pesquisa sobre a mentalidade revolucionária - havia livros que eu lia e resumia num único dia. Eu lia o livro e a Isabela me ouvia ditar os excertos da leitura para que ela tomasse as notas e, no fim do dia, eu já tinha terminado o livro. Isto acontece realmente quando é sobre um assunto que você já domina e sabe imediatamente tudo a que o sujeito está se referindo, isto é possível. Numa obra de ficção também, caso ela arraste o seu interesse, que é o caso da leitura de A Mulher que Fugiu de Sodoma - que também li muito rapidamente porque não conseguia parar de ler. Eu acho que você não deve se preocupar muito com isso porque é tudo uma questão de motivação. Por exemplo, Abraham Lincoln, que era um homem de uma cultura extraordinária, lia tudo em voz alta e de pé, andando de um lado para outro, portanto uma leitura muito lenta. O que você absorve numa leitura assim é diferente do que se absorve de uma leitura feita só com os olhos. No caso de A Mulher que Fugiu de Sodoma, lendo só com os olhos você passa por cima das palavras e refaz as cenas como se fossem um filme. Você capta o enredo e a estrutura. Mas as belezas específicas do estilo do autor você não capta desse modo. E de fato, você precisa ler em voz alta e desenvolver não apenas os olhos, mas também o ouvido. Bruno Tolentino insistia muito que "em poesia o ouvido é tudo". E como ele fazia? Ele decorava poesias. Você decora uma, duas, três, cem vezes e permanecerá a musicalidade, que você consegue decorar com leitura fotográfica. Mesmo que você o decore usando esse método, só vai tirar proveito quando reapresentar esses escritos para você mesmo na memória ao recordar uma ou mais vezes, até captar a música. A leitura fotográfica só serve para você arquivar num scanner mais passivo da memória de onde se possa retirá-lo para sondá-lo de novo. Carpeaux leu A Mulher que Fugiu de Sodoma numa noite, e quanto tempo ele levou para pensar sobre o livro? Você pode pensar depois ou enquanto está lendo o livro, e no fim das contas, dá na mesma. Além disso, você não pode esquecer que era notável a acuidade que Carpeaux percebia certas sutilezas dos autores pela imensidão do campo de referência dele. Porém, como expositor filosófico ele deixa muito a desejar. Ele se pauta muito pelo que a opinião letrada consagrou a respeito dos autores. E nunca faz um exame em profundidade, por exemplo, da filosofia de Aristóteles ou Hegel. Ele vai por uma lambida superficial baseado no consenso da crítica. O método dele para estudar literatura brasileira também foi este: antes de ler os livros, ele colecionou o que os críticos diziam a respeito de cada autor. E com isto fez A Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira. Tinha livros que ele não tinha lido ainda porque ele simplesmente pegou o consenso da crítica e repetiu. Depois ao examinar melhor ele poderia concordar ou dizer outra coisa. Então, não se impressione muito com isso.

Aluno: A forma como estão invertendo as relações humanas, entre si e dos animais e o homem, está tão alterada que eu assisti acho que no programa Fantástico da Rede Globo uma reportagem sobre mães na Austrália que ensinavam crianças desde pequenas a acariciar cobras como sendo inofensivas e bichinhos tão bonzinhos. No dia em que a cobra ataca a criança o alarde é total. Mas como esta cobrinha tão boazinha pôde fazer uma coisa dessas?

Olavo: A reação das pessoas atacadas por animais é exatamente essa. Houve uma mulher que criava uma pantera e foi totalmente desfigurada pelo animal, tendo que ficar três anos no hospital. E depois quando voltou para casa, ela ainda conservava a mandíbula da pantera e a acariciava. Tinha tantas saudades dela! É evidente que há uma perda do senso das proporções na atribuição de emoções aos animais. As emoções são uma coisa, pois qualquer animal as tem, o problema é saber se os animais têm algum juizo moral. Um animal pode sentir arrependimento? Não pode. Ele pode sentir tristeza, alegria, raiva etc., que são coisas diretas. Mas e o arrependimento, que é um sentimento retroativo que depende de uma complexa memória, de uma história interior inteira? É impossível para um animal. Ele definitivamente não tem senso moral algum. Nenhum animal tem. Ele pode ser treinado na base do reflexo condicionado, do castigo e recompensa; e inclusive - diz o Roger Scruton - ao observar muito bem que uma punição dada a um animal no curso de um treinamento não é propriamente uma punição, é apenas um reflexo aversivo que ele adquire, e nada mais. É claro que nem tudo no animal pode ser explicado pelo reflexo condicionado, mas jamais vai chegar ao plano das emoções e sentimentos morais. Veja que existem até seres humanos desprovidos de sentimentos morais. Estudem o caso da psicopatia que há no livro do Andrew Lobaczewski, Political Ponerology, que eu comentei, e tem outro clássico de Robert D. Hare. Vocês verão que o sentimento moral frequentemente falha no ser humano. Tem continentes inteiros da moralidade para os quais o indivíduo é cego e insensível. Não intelectualmente cego e insensível, porque ele sabe o que significam estas coisas, mas ele não as sente como se fossem dele. Sabe só que os outros sentem. Se o fenômeno pode ocorrer até com um ser humano isso quer dizer que ele não é suficiente humano, pois se trata de um predador realmente. Por que supor que animais tenham sentimentos morais? Isso não faz o menor sentido. Por exemplo, várias pessoas depõem a respeito de felinos, sobretudo tigres, descrevendo que o tigre só ataca se você desvia os olhos dele. E enquanto você está olhando para ele não tem perigo. Ou seja, o ataque do animal é apenas uma questão de oportunidade. O certo para ele é sempre atacar pelas costas. Um ser humano que agisse assim seria considerado um bandido ou covarde, mas para o tigre isso é normal. Toda esta afetação de bons sentimentos animais chega a ser uma farsa. Aqui nos Estados Unidos há uma organização chamada PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), sendo a mais importante campanha de direitos de animais que há nos Estados Unidos. Os membros dessa organização foram surpreendidos por terem matado vinte e três mil gatos e cachorros, no quartel general em Nova York. Evidentemente, matando os bichinhos para que houvessem menos bichos incomodando, e portanto, para que houvesse menos pretextos para dizer que os animais oferecem alguma pericolosidade ou possibilidade de contágio etc. Eles fornecem a teoria e já criam a circunstância prática que justifica a teoria. É a profecia auto-realizável. Claro que essa gente é de uma crueldade fora do comum.

Aluno: Em relação ao que os filósofos até hoje pensaram, será que ainda veremos algum pensador trazer à luz algum novo sistema filosófico ou um novo paradigma? A impressão que eu tenho é que nós que amamos a filosofia estamos andando em circulos, sempre voltando onde o pensador do passado já esteve. Goulez disse que o filósofo deveria ser um criador, e o que eu tenho visto é um eterno retorno que pesa em repetir o mesmo tema, mas com uma roupagem nova em relação aos nossos dias. Não quero com isso dar uma de Hegel, longe disso. Sinto que talvez seja pura ignorância minha parte discutir um tema nunca antes pensado, mas estamos recorrendo ao que antes refletido para tentar explicar o hoje.

Olavo: Por um lado, você observa que as questões filosóficas não são as mesmas, pois elas mudam. Mas elas mudam em função de novidades e novas situações culturais que já não permitem equacionar o tema nos mesmos termos de antes. Por outro lado, essas questões permanecem as mesmas. Às vezes as soluções encontradas há dois milênios continuam sendo as mais válidas. Roger Scruton está dizendo que nós não conseguimos sair ainda da abordagem que Aristóteles fez porque esta abordagem está certa. Ela não é completa em si mesma. Às vezes o indivíduo não tem sequer um instrumental linguístico para expor o tema de uma maneira que permaneça satisfatória por dois milênios. Mas em essência o esquema está todo dado em Aristóteles, e não há como você escapar disso. Aliás, o simples fato de dizer que a Filosofia tem de ser criadora é verdade por um lado porque o filósofo não deve apenas se limitar a repetir, mas se ele no fim da sua investigação criativa descobrir que o filósofo anterior tinha razão ele tem de reconhecer a mesma coisa. A filosofia pode ser criadora na sua abordagem, mas não pode ser sempre criadora no seu conteúdo e nas suas conclusões finais, pois isto é impossível. De minha parte, eu não tenho o menor interesse em saber se o que eu estou fazendo é original ou não, porque eu quero descobrir a verdade para o meu uso próprio, para minha própria orientação na vida e pode servir para duas ou três pessoas também. Não é obrigatório para ninguém, mas quem achar que isso é útil deve usar e aplicar. Eu acho que isto deve ser a pretensão do filósofo e não a criação de algo novo ou repassar uma verdade eterna já consolidada. Não é uma coisa e nem a outra.

Aluno: Foi feito um estudo nomeado Síndrome do Bambi. Comportamento tipicamente moderno de pensar que os animais têm sentimentos e pensamentos como os seres humanos.

Olavo: Isso é muito interessante. Eu estudarei a Síndrome do Bambi. Eu estou colecionando uma bibliografia sobre o assunto e pretendo fazer um estudo mais demorado.

Aluno: Compreendi depois de muito ouvi-lo e lê-lo que estudo, arte, palestras e escritos só tem valor com um lastro existêncial, uma substância existêncial biográfica que preencha a coisa e consiga mantê-la de pé. Fica evidente para quem ouve algumas explicações do senhor que nas suas aulas o senhor as realiza com matéria de sua experiência examinados com a técnica filosófica.

Olavo: É exatamente isso. Você tem de partir da experiência real. É o que dizia Eric Voegelin ''não estude filosofia de Eric Voegelin, estude a realidade''. Nós damos aqui um método e alguns exemplos e dizemos que é mais ou menos assim que se faz. Dependendo da questão que você colocar pode ser que o meu método ajude ou pode ser que você tenha de inventar outro, ou complementar o meu de algum modo. Isso é o máximo de pretensão que eu tenho.

Aluno: Fica ainda assim sempre a curiosidade de quem realmente é o senhor. Sempre dá vontade de saber mais sobre sua vida, suas decisões, suas circunstâncias. Sugiro que fizesse uma aula na qual o senhor nos contasse melhor a sua vida.

Olavo: O problema em contar a minha vida é que aconteceu tanta coisa nela que eu não seria capaz de contar. Só aquilo que eu assisti, pessoas que eu conheci, situações que vivi etc., é coisa demais porque eu tive umas dez vidas. Outro dia, fiz uma experiência onde estava alguns alunos aqui e eu comecei a contar um episódio da minha vida. O episódio era tão cheio de detalhes que levou várias horas para contar. Se alguém transcrevesse, isso daria oitenta páginas. Se há alguma coisa que é utópica é fazer minha autobiografia, não vai dar. Lembro de uma das minhas primeiras experiências da vida, no Partido Comunista. Daria para escrever um livro inteiro só sobre isto. E esse livro explicaria muito do está acontecendo hoje no Brasil.

Aluno: O senhor soube da confirmação sobre o Boson de Higgs?

Olavo: Ninguém sabe se é o Bóson de Higgs. É uma coisa que parece mais ou menos. Entre o Boson de Higgs e as conclusões teológicas que tiram existe uma diferença tão imensa que, o simples fato de dizer que há uma partícula de Deus, é uma bobagem. Primeiro existe um conceito primário a respeito do que seja Deus. Eles entendem Deus como uma causa eficiente externa, o que não faz sentido. Vamos esperar para ver se isto é realmente o tal do Bóson de Higgs. Vai demorar alguns anos para saber, e depois discutiremos.

Aluno: Na aula passada, o senhor mencionou de passagem que a explicação de Panofsky sobre a estrutura compartilhada entre as sumas e as catedrais medievais não é históricamente exata. O senhor pode comentar algo a respeito?

Olavo: A teoria do Panofsky divide-se em duas partes: Primeiro, onde ele analisa a identidade ou homologia, que é como ele chama as estruturas entre as sumas medievais e as catedrais góticas, ambas estruturadas pelo mesmo princípio de clarificação, que seria como uma ramificação. Esta parte é inteiramente confirmada e ninguém duvidou dela. Mas acontece que ele diz em seguida que a arquitetura das catedrais foi se desenvolvendo à medida em que a filosofia escolástica a influenciava. E esta tese já é duvidosa: a) porque não há a menor prova de que os arquitetos das catedrais estudassem filosofia escolástica, eles eram pessoas formadas nas corporações de ofícios, sem nenhuma instrução universitária; b) as obras mais decisivas que criaram, até mesmo o estilo gótico, já estavam prontas antes que aparecesse a primeira suma. Em vez de ser uma influência da filosofia escolástica na arquitetura das catedrais, parece-me que foi antes o contrário: aquela impressão visual recebida da estrutura das catedrais inspirou os filósofos escolásticos para que estruturassem as suas sumas de uma maneira mais ou menos parecida com aquelas. Isso me parece uma explicação mais razoável. De qualquer modo, Panofsky era um estudioso de artes visuais e não um historiador propriamente dito. A parte especializada dele foi feita de modo corretíssimo porque essa identidade de estrutura existe mesmo, não há como negar. E ela não existe só no Ocidente; afinal, existe um estudioso de budismo tibetano, Juan Antonio Cabezon, que diz que a mesma coisa acontece nos templos tibetanos, entre os Templos Tibetanos e as exposições da teologia escolástica budista. O fenômeno está provado, só a explicação histórica que está invertida.

Transcrição: Instituto Olavo de Carvalho -- Curitiba, Guilherme Santos Zomkowski, Evandro Santos de Albuquerque.

Revisão: Fernando José da Silva.