Curso Online de Filosofia
Olavo de Carvalho
Aula 112
02 de julho de 2011
Boa noite a todos! Sejam bem-vindos.
Eu queria retornar ao comentário de Platão -- Fédon. Nós iremos apenas, se possível, até a linha 76-A. Estou usando a tradução do Carlos Alberto Nunes, mas qualquer outra tradução serve, porque a numeração é padrão.
Mas, antes mesmo de entrar nisso, eu gostaria de contar a vocês alguma coisa da experiência que eu tive durante minha última viagem. A coisa que mais me impressionou foi a confissão generalizada de intelectuais, escritores ― tanto da Romênia quanto da Polônia ― de que os seus países são governados pelas mesmas pessoas que estavam no topo nos tempos do comunismo, e que hoje estão lá, naturalmente com outros pretextos, com uma espécie de nova identidade ideológica, constituída, mais ou menos, de acordo com o ideário das organizações internacionais: essa conversa de direitos humanos, igualdade, essa coisa toda. Mas, são exatamente as mesmas pessoas, com as mesmas articulações de antes, e com uma unidade de ação que se expressa na sucessão dinástica: quando não é o mesmo camarada que está no poder, é o seu filho ou o seu neto.
Até acabei de escrever um comentário sobre isto mostrando toda essa campanha contra "a família" ― que se espalha pelo mundo e que suscita da parte de cristãos conservadores tanta reação indignada. A destruição da família não é nenhum objetivo sério a ser atingido pelo movimento revolucionário; não é um item programático a ser realizado; mas, é uma espécie de véu ideológico que encobre brutamente o sistema dinástico que persevera tanto dentro da liderança comunista quanto dentro da liderança globalista. Estas famílias não serão destruídas jamais; ao contrário: a dissolução das outras famílias é condição para que estas perseverem no poder. É claro que a continuidade dinástica é a condição mais óbvia da ação histórica.
Entendo por ação história aquela que se prolonga, na sua execução, para além da vida de seu agente individual. Se você tem planos para 60, 70, 80, 100, 200 anos, é claro que você está contando com algum tipo de comunidade dinástica por trás. Então, as classes que estão no poder tendem, naturalmente, a ter uma política de preservação de suas famílias; e não de dissolução. A dissolução das famílias é para as massas de trouxas, para as massas de otários que justamente, na medida em que dissolvem suas próprias famílias, perdem a possibilidade de qualquer ação de longo prazo e se tornam como fiapos soltos no espaço, folhinhas batidas pelo vento, isoladas e, portanto, necessitadas de um novo tipo de integração. O problema da solidão na sociedade moderna, sobretudo no meio urbano, deriva imediatamente da destruição do meio familiar. Essa destruição não precisa tomar a forma de uma dissolução oficial da família. Ela pode até continuar existindo, mas ela perde a sua autoridade, perde o seu atrativo, não é mais um ponto de referência para o indivíduo, que, então, se vê solitário e naturalmente busca integração em outras unidades, que pode ser um partido político, um sindicato, uma seita ou algo assim, e, em última análise, o próprio sistema educacional moldado pelo estado cria, para estes indivíduos, toda uma nova rede de relações que lhes dá um novo padrão de segurança para além e para fora do sistema familiar; e na mesma medida em que os indivíduos aí encontram o seu abrigo psicológico, eles se tornam leais a esse sistema como se fossem discípulos de uma seita.
Quando eu era jovem, a moda era os estudantes contestarem os seus professores e buscarem uma espécie de foro de auto-organização. Nos últimos trinta ou quarenta anos eu observei que a atitude dos estudantes para com os seus professores universitários é de uma subserviência canina. Esses professores tornaram-se autoridades supereclesiásticas, ao ponto de que o universo mental desses professores se tornou referência única para esses estudantes.
Durante esse debate com o Dugin eu observei muitas reações que apareciam ali, sobretudo no YouTube ― no YouTube, Orkut, Facebook etc. ― e havia ali a constante reclamação de que eu citava autores desconhecidos. Mas desconhecidos para quem? Eu estou citando autores mundialmente conhecidos, mas como são desconhecidos naquele meio daqueles professores universitários, então para eles aquilo não existe. Então eu vi que esse meio universitário provinciano se tornou, para essas pessoas, uma espécie de símbolo da autoridade intelectual universal; a ignorância maciça desses professores torna-se, para eles, um símbolo de autoridade: aquilo que meu professor desconhece é porque não tem importância, é coisa de segunda ordem. Eles não têm ideia de até que ponto, de quão provinciano é o meio universitário brasileiro. É uma coisa que não se consegue medir. Mas é o exemplo que já dei anos atrás, do famoso "Dicionário Crítico do Pensamento da Direita", organizado por 104 professores universitários tidos como os grandes especialistas nas áreas de ciências políticas, filosofia, ciências sociais etc., e no qual o que se via era total ignorância dos principais autores do pensamento conservador no mundo. Eles não conheciam nada, nada, nada. Na verdade só citaram seis pensadores, os mais óbvios, e alguns cujo direitismo é até um pouco duvidoso. Mas os principais eles desconheciam, sobretudo os das últimas décadas. Todo o movimento conservador americano eles desconheciam na totalidade. Isso é uma ignorância imperdoável! Mas como é que o indivíduo que não tem o menor conhecimento do assunto se mete a ser autor de um dicionário? E não é um indivíduo que se propôs a isso, são 104! Quer dizer: somando os 104 você não tinha o mínimo conhecimento do assunto. Isto é a prova material de que o meio universitário brasileiro é provinciano e absolutamente desprovido de qualquer autoridade intelectual. Mas para os aluninhos, aqueles professores são o ponto de referência.
Eu me lembro de que dei umas aulas aqui sobre o negócio da possibilidade universal ― dei várias aulas aqui sobre isso. Depois, um dia, resumi, no rádio, em dois minutos, aquela exposição. Daí, imediatamente, baseado naquele resuminho que apareceu no rádio ― que era a única coisa a que eles tinham acesso ― apareceram contestadores. E um diz assim: eu mostrei isso para filósofos da ciência e eles deram risada.
Bom, no Brasil, que eu saiba, há dois ou três filósofos da ciência, que estavam comigo naquele congresso na Suíça -- aliás, eu não participei fisicamente: não pude ir pessoalmente e mandei meu trabalho. Todos os filósofos da ciência que existem no Brasil são aqueles que estavam lá; os demais não existem. Mas os alunos acreditam que eles são filósofos da ciência.
Então, um dos meios de se obter esse efeito é justamente bloquear as leituras do indivíduo ― só permitir que ele leia coisas que estão na atmosfera intelectual dos seus professores ― e decretar a ignorância maciça desses professores como o extremo limite da realidade; o extremo limite do conhecimento humano.
Isto é uma coisa que nunca aconteceu no mundo! Você não observa fenômeno idêntico em nenhum país. Você vai à Tanzânia não tem isso; você vai na Zâmbia não tem isso; você vai no Polo Norte não tem isso: é um fenômeno exclusivamente brasileiro! Não surgiu sozinho: o ódio brasileiro ao conhecimento é uma coisa que vem desde o tempo da colônia. Foi amplamente registrado na nossa literatura: especialmente os livros do Lima Barreto tratam disso; se vocês lerem a "Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá" [10:00] vocês vão ver que aquilo é um documentário da opção preferencial pela ignorância, que é uma coisa muito profunda no Brasil, sobretudo nas classes altas. Mas nos últimos trintas ou quarenta anos a coisa se agravou a um ponto que se tornou indescritível. Eu não consigo mais explicar, por exemplo, para um acadêmico americano, o que se passa numa universidade brasileira, porque as palavras não dão ideia da medida ― do quantitativo ― da coisa. Se você falar: 'as universidades são decadentes'; eles dizem: "sim, mas aqui também são". Mas isso é a mesma coisa que dizer que um sujeito está doente e o outro também está doente, só que um está com gripe e outro está com AIDS. AIDS e gripe. Então, as palavras são as mesmas, mas a medida quantitativa não é.
Em função disso ― dessa situação brasileira ― e comparando isso com o que a gente vê no resto do mundo; comparando com essa experiência que eu tive na Romênia e na Polônia, eu vejo que a responsabilidade que incumbe aos alunos deste curso é um negócio monstruoso. Vocês prestem atenção: se vocês não conseguirem preservar os elementos de cultura, de alta-cultura, de inteligência no Brasil, eles vão desaparecer para sempre. Prestem atenção, o Brasil já não tem literatura: esse é um fenômeno inédito no mundo! Que escritores brasileiros representam a literatura brasileira hoje? Você pode citar João Ubaldo, mas João Ubaldo publicou seu último livro há 20 anos! Carlos Heitor Cony, ele está com 243 anos de idade! Lêdo Ivo está comemorando seu quinto centenário, e assim por diante. Quer dizer: os que sobraram são remanescentes de outra era! Eles não são característicos de hoje. Você não vai me dizer que o Lêdo Ivo, que é um homem de grande talento, é capaz de escrever algo que reflita a vida de hoje no Brasil. Ele não pode fazer isso! Um homem da idade dele não tem mais sensibilidade para acompanhar a vida das novas gerações; ele não pode fazer isso. Então, o Lêdo Ivo pertence a outra época, como pertenceu o Josué Montelo, como pertence Herberto Sales, como pertence o próprio Carlos Heitor Cony. Então, o Brasil é um país sem literatura. O que não quer dizer que não tenha um ou outro escritor de algum talento, como por exemplo, o José Carlos Zamboni, o Yuri Vieira ou o próprio Antônio Fernando Borges. São escritores de algum talento. Mas uma literatura não se constitui disso; uma literatura é uma tradição integral, onde há intercâmbio, onde há confrontação, onde há enriquecimento mútuo, não só da linguagem, mas da cosmovisão.
Se você tomar os escritores dos anos cinquenta ― que estavam vivos nos anos cinquenta: Manuel Bandeira, Carlos Drumond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Jorge Amado, Álvaro Lins, todo mundo ― todos liam o que os outros escreviam e havia, então, um intercâmbio, uma espécie de fortalecimento mútuo da linguagem, onde todos ao mesmo tempo participavam da herança comum e cada um a trabalhava de acordo com a sua diferença especifica, de acordo com seus talentos individuais. Isto é uma literatura.
Então, o Brasil, radicalmente, não tem literatura há 40 anos! Não há nenhum outro caso igual a esse no mundo. Meçam a gravidade disto: se um país não tem literatura, ele não tem uma imagem dele próprio; ele não tem onde se enxergar. O que apareceu em substituição são as novelas da Globo cuja qualidade vocês sabem o que são, e que são compostas inteiramente de estereótipos criados por pessoas que na verdade não têm nenhum contato com a sociedade brasileira. São pessoas que vivem numa mentalidade grupal, inteiramente fechada, que eles tomam como se fosse a do país inteiro.
Se você pegar os nossos jornais, ou os noticiários de televisão, o que é que eles transmitem? São as preocupações daqueles grupinhos de esquerda dos anos 60. Que são repetidas, e repetidas, e repetidas indefinitivamente! Mas quantas eram aquelas pessoas? Vamos dizer, na mais generosa das hipóteses, que era um círculo de dez mil pessoas, num país que então tinha cem milhões de habitantes. Então, por exemplo, vamos dizer: a famosa repressão. A repressão no Brasil atingiu umas trezentas pessoas. Ao longo de todo o regime militar, que durou 20 anos, passaram pela cadeia duas mil pessoas. Mas entravam e saiam, entravam e saiam. E nos combates entre a guerrilha e as forças armadas morreram uns trezentos terroristas. Qual é a dimensão desse acontecimento na história do mundo? Compare isso quantitativamente com qualquer outro episódio de repressão, de perseguição ou de violência que houve no mundo. Isso é nada. Para um país do tamanho do Brasil, que hoje tem 180 milhões de habitantes, isso é rigorosamente um nada. Ah! O Governo matou 300 pessoas? Viaja um pouco. Cuba matou 100 mil. Toma um avião e desce lá na Romênia, desce na Polônia, ali os governos mataram milhões e milhões. Chega na China, o negócio vai para cem milhões. Então, como é possível que uma nação se alimente deste assunto durante 30, 40, 50 anos, como se nada mais tivesse acontecido? O Brasil de hoje tem cinquenta mil homicídios por anos, segundo cálculos da ONU ― por certo é mais! Então, que importância pode ter a morte de trezentos fulanos, que aconteceu há 40 anos, num país que está matando cinquenta mil por ano? E notícias sobre a investigação dos trezentos são mais constantes na mídia do que debates sobre a violência atual. Quer dizer: aqueles trezentos, que não eram pessoas desarmadas ― eram guerrilheiros, eram terroristas ― continua sendo mais chocante do que a morte de cinquenta mil inocentes. É claro que o país está no mundo da lua; perdeu completamente o senso da proporção, o senso da realidade, e isto em função da autoadoração idolátrica de um grupo muito pequeno de pessoas que se acham todas maravilhosas, vivem lambendo umas às outras com farta distribuição de cargos, com indenizações, paparicações, elogios, prêmios etc. E o Brasil tem vivido disso. É claro que isso estrangulou completamente a possibilidade de uma cultura superior. Claro que isso é uma usurpação dos postos de cultura superior por pessoas que só estão interessadas na sua autoidolatria grupal. Não há país que sobreviva a isso! Pior: essa mesma mentalidade se espalhou pela sociedade inteira, afetando inclusive os grupos que, politicamente, são contrários a isto. Então, o que você vê no Brasil é formação de patotinhas com sentido de autodefesa absolutamente psicótico; que se você escreve alguma coisinha contra eles se sentem todos ameaçados; reagem todos de uma vez, esbravejando, e gritando, e dizendo que você não está discutindo democraticamente -- é um negócio fantástico!
Hoje mesmo eu via o meu verbete na Wikipédia e está lá ― a minha biografia não está tão errada ―, mas tem lá críticas a Olavo de Carvalho. Tem só as críticas, não tem as referências, então eu creio que são de cinco pessoas absolutamente desconhecidas e que disseram coisas, não contra minha obra, não contra minhas ideias, não contra meus ensinamentos, mas contra mim, contra minha pessoa, a qual eles nunca viram mais gorda. Sobretudo, é assim: "o cara é muito vaidoso". Mas, como é que você sabe? Um desses que escreveu isso é o tal do Rodrigo Constantino, que começou uma conferência dizendo: "vocês devem estar reparando que eu estou mais magro, fiz regime..." E o cara vem dizer que o vaidoso sou eu?! É um negócio tão obviamente psicótico que a gente tem que concordar: "de fato! você deve ter razão!" Então, é assim: só supostos defeitos pessoais é que eles repararam numa pessoa que eles nunca viram; cuja conduta eles desconhecem completamente. Mas, é isto? As críticas ao Olavo são isto? [20:00] Eu sou capaz de redigir críticas a mim mesmo muito melhores do que estas. Eu até vou fazer. Houve um filósofo alemão, Ludwig Vechner, que uma vez fez isso: ele escreveu um livro contra ele mesmo e publicou com pseudônimo. Daí, quando todo mundo estava aplaudindo, ele disse: "vocês todos são uns trouxas, isso aí fui eu que fiz." Também, outro dia eu estava lendo as memórias de Giovanni Papini, um escritor italiano maravilhoso. Ele tem um livro de crítica literária, então tem lá Giosuè Carducci, fulano, fulano e tem lá Giovanni Papini! Então eu falei: vamos ver a crítica que ele faz ao Giovanni Papini. Ele fala coisas horrorosas dele mesmo: bebe sangue, estupra as virgens, faz rituais satânicos. Ademais, ele é um farsante, porque ele escreveu um livro em que ele prometia falar mal de todo mundo, mas no mesmo livro tem até alguns elogios. Quer dizer: nem na difamação ele é digno de confiança! Se alguém escrevesse uma coisa engenhosa assim, sobre mim, eu até aplaudiria. Até hoje a única coisa engenhosa que fizeram foi aquele negócio de eu descobrir que a minha filha estava grávida e eu dava uma bronca nela. Achei aquilo muito legal, muito simpático. Se bem que a voz não se parece com a minha: parece com a do Reinaldo Azevedo...
Às vezes, nem para fazer uma piada que preste os caras servem. Então, é um negócio de uma miséria sem fim, onde as pessoas perderam totalmente a noção do que possa ser uma literatura, do que possa ser alta cultura, do que possa ser educação. E elas não têm como recuperar. Esperar que daqui a duas ou três gerações as pessoas vão ler livros e recuperar dos livros: isso é impossível meu filho! Quando determinados livros se tornam ilegíveis para toda uma sociedade, a possibilidade de recuperá-los depois depende de um esforço filológico monstruoso. É como você tentar ler manuscritos medievais hoje em dia. Você pode fazê-lo, mas você vai ter que ter vinte anos de estudo de filologia, daí você lê aquilo e publica suas explicações numa revista acadêmica, que será lida por três pessoas, e isto vai ser a recuperação do passado.
Para que os elementos de uma alta cultura que foi perdida se reintegrem na sociedade, precisará de muitas e muitas gerações de gente fazendo esse esforço filológico. Às vezes a coisa se reintegra. Por exemplo: as obras de Jean Batista Vico, que foram publicadas no século XVIII e foram perdidas. Ninguém entendia aquilo. No Século XX descobriram! Então um sujeito escreveu um trabalho, o outro escreveu outro, no fim Jean Batista Vico reentrou no mercado livreiro. Mas isto é um caso! No Brasil foi tudo perdido! Absolutamente tudo! E o pouco que foi recuperado ― e que continua sendo mantido ― foi mantido exclusivamente através da minha pessoa. Eu mantive o Mário Ferreira, eu mantive Otto Maria Carpeaux, e continuo batalhando para que os valores da cultura brasileira das décadas passadas continuem sendo legíveis. Eles são legíveis para vocês. Vocês estão qualificados para ler o Mário Ferreira, para ler Miguel Reale, para entender tudo que foi feito no Brasil. Mas, são só vocês: não tem mais ninguém! Realmente não tem mais ninguém! Então, metam isto na cabeça: a sobrevivência de toda essa cultura que foi criada no Brasil até os anos cinquenta está inteiramente na nossa mão. Claro que em torno do nosso trabalho existem alguns subprodutos, principalmente de ordem editorial: o sujeito escuta a gente falar de um livro e ele quer publicar para ganhar dinheiro: isso é um subproduto do nosso trabalho, não só do meu, mas do de todos vocês. Há todo um círculo de pessoas que está envolvido nisso.
Em função desta responsabilidade, existem alguns elementos de conduta moral que vocês vão ter que botar nas suas cabeças; e o primeiro deles é o seguinte: não tem sentido vocês estudarem tudo aquilo que estamos estudando ― terem essa abertura para elementos de filosofia, espiritualidade etc. ― e continuarem, nas suas vidas, julgando as pessoas pelo critério da moral brasileira. A moral brasileira consiste no seguinte: você admira um sujeito porque você o teme de algum modo; porque você sabe que ele tem alguma força que você não tem; alguma qualidade que você não tem; algum conhecimento que você não tem. Você o admira até descobrir algum pecadinho dele. Aí você diz: estou livre dessa pessoa, me libertei, superei. E daí você passa a falar mal do cara e acredita que o superou.
Eu não estou me referindo à minha pessoa: eu vejo isso acontecer com outras pessoas ligadas de algum modo ao nosso grupo; não interessa quem. Mas eu sei que quando descobrem "isto", de mal do indivíduo, então é "Ah, meu mundo caiu".
Então, em primeiro lugar, vocês que estão procurando "pais" e "mães" voltem para sua casa e procurem seu pai e sua mãe. Eu aqui não sou pai de ninguém, você não é mãe de ninguém, e aqueles que estão procurando essa espécie de proteção psicológica ― essa espécie de talismã que vai protegê-los contra os males do mundo ― não têm nada que fazer aqui. Isto aqui não é um consultório de psicoterapia; isto aqui não é curso de autoajuda: isto aqui é formação de guerreiros ― guerreiros da luta cultural, evidentemente ―, mas às vezes ela comporta riscos tão grandes quanto os da luta política, os da luta militar e assim por diante.
Claro que nós podemos fortalecer vocês; e vocês sabem que o ensino que receberam aqui de fato os fortaleceu. Vocês já não são mais as mesmas pessoas que eram. Porém, existe sempre a tentação de dar um passo atrás e voltar a julgar as coisas como você as julgava antigamente. Veja: você não pode confundir ― primeiro ― a moral com a decência. Decência é uma questão de aparências: o sujeito mantém uma atitude descente em público de modo que os seus pecados, seus erros, não deem maus exemplos a ninguém, e não possam ser objetos de ataque, de crítica, de calúnia, de difamação etc. Os critérios da decência são muito mais exigentes do que os critérios da moralidade.
É o negócio da mulher de César: é muito mais fácil ser uma mulher honesta do que parecer uma mulher honesta. Ser é apenas uma questão da sua conduta pessoal, enquanto para parecer ela tem que adaptar sua conduta pessoal ao olhar de cada observador malicioso que está querendo descobrir algo para falar mal dela. Ou seja: é um teatro permanente que você tem que manter. Acontece que os princípios da decência pública às vezes incorporam na moral individual e as pessoas passam a julgar os outros por isto. E Aí, com um julgamento que você faz, você perde tudo o que aprendeu na vida.
Isso já aconteceu, com relação a mim, várias vezes no passado, mais no passado. Então, o indivíduo que era meu aluno, ele se dizia mais que um aluno: "não, eu sou um discípulo". Eu nunca tive discípulos, porque discípulo pressupõe que se tem um comando sobre a vida dele. O discipulado é uma relação entre mestre e discípulo, portanto o mestre tem uma autoridade sobre a vida do discípulo. Eu nunca tive discípulos: eu tenho alunos, no máximo. Se o indivíduo quiser ser meu discípulo então eu vou dizer: então teremos que fazer um contrato, e o contrato é o seguinte: durante x tempo você vai me obedecer e, quando você não compreender, você vai obedecer também, porque relação entre mestre e discípulo é assim. É isso que vocês querem? Não! Também não é o que eu quero. Mas tem pessoas que se dizem meus discípulos e, de repente, ouviu uma fofoquinha e, da noite para o dia: "estou decepcionado com o Olavo". Mas, meu Deus do céu! Isso aqui é um concurso de perfeição evangélica? Por que não me avisaram antes? Então, note bem: este tipo de julgamento que por um instante faz você se sentir superior a uma pessoa que antes lhe parecia superior, é um engano trágico que destrói a sua inteligência em cinco minutos. [30:00]
Agora, existem alguns elementos de moralidade real ― não de decência ― que também são muito importantes para isso, e o primeiro deles chama-se lealdade. O filósofo americano Josiah Royce escreveu um livro mostrando que no fim das contas todos os princípios da moralidade se resumem a um: a lealdade, sem a qual nada é possível. E a lealdade significa, em primeiro lugar, a fidelidade à palavra dada. Ou seja, o indivíduo que se comprometeu a fazer algo, mesmo que leve cem anos, ele vai ter que fazer aquilo. Mais dia menos dia vai ter que fazer. Você não pode voltar atrás. Você vai dizer "Ah, mudei!". Ah, você mudou? Mas a sua palavra continua lá. Isto não pode falhar, porque sem isto a tua inteligência não funciona.
A inteligência em nós é um reflexo pálido do eu substancial. A inteligência não faz parte da personalidade mutável que nós apresentamos na vida do dia a dia; daquela personalidade que cresce, que se desenvolve, que muda, que se altera, que troca de sentimentos, que troca de objetivos, que troca de valores etc. Esta parte é, por assim dizer, puramente animal, e está sujeita a todas as influências do meio. A inteligência provém daquilo que em você é permanente e indestrutível, e este é o tema do Fédon que nós vamos comentar. Tudo o que eu estou dizendo aqui já é um comentário do Fédon.
Vejam que no Fédon a primeira coisa que você repara é que o assunto do diálogo é a própria situação que está sendo vivida pelos personagens; ou seja: não há ali a distância acadêmica; você não está defendido do assunto do qual você está falando. Por exemplo: um indivíduo pode fazer uma conferência sobre segurança pública sem que a segurança pessoal dele esteja ameaçada naquele momento. O sujeito está defendido pela instituição universitária, pela polícia etc. e lá ele está falando de assuntos temíveis. Mas, no caso do Fédon, o que se dá é um diálogo sobre a morte, com um sujeito condenado à morte, no dia em que a sentença deve ser executada. Mais ainda: o guarda da prisão dá a Sócrates o conselho de que ele não fale muito naquele dia, porque se falar muito pode ser que o sangue se agite e que a cicuta não funcione bem, e aí vai ter que dar uma segunda, uma terceira dose, e vai ser muito sofrimento. Sem nada contra Sócrates, até para benefício dele, o guarda sugere que ele não fale muito. E justamente naquele dia Sócrates entra num diálogo sobre a morte com aquele pequeno grupo de discípulos que esta ali ― curiosamente se diz que Platão estava ausente.
Então você tem uma curiosa mistura do depoimento, da reportagem feita por Fédon, que está contando o que se passou ali, e do elemento ficcional com o qual Platão, que não estava lá, trabalha a narrativa de Fédon, não se sabendo se Platão ouviu a narrativa diretamente de Fédon, ou de Equécrates, que foi o sujeito ao qual Fédon fez a narrativa, ou de um terceiro.
Então este elemento ficcional, conforme observou o grande historiador da literatura ― talvez o maior que já existiu: Ernest Robert Curtius ― ele é indispensável a qualquer obra histórica, e se tornou mais indispensável nas últimas décadas, justamente graças aos progressos das ciências históricas, que colocaram à disposição do historiador tantas informações que ele é obrigado a sintetizá-las mediante analogias e símbolos que são usadas na literatura de ficção, não havendo outra maneira de se escrever a narrativa. Então você está usando a ficção como um instrumento para tornar visível uma realidade na sua totalidade essencial, porque se você fosse dar todos os elementos materiais separados, a narrativa não terminaria mais. Então você a condensa num símbolo, e apesar do recurso literário ser ficcional, esta ficção acompanha e reflete a realidade.
Nesse diálogo ― Fédon ― você tem constantemente esta tensão: uma parte é reportagem do que de fato se passou no dia da morte de Sócrates, e outra parte é o que Platão elaborou em cima. Então, de fato nós não sabemos se todos os argumentos travados na discussão foram exatamente aqueles que aconteceram naquele dia. Se bem que temos que levar sempre em conta que naquela época a memórias das pessoas era muito mais poderosa e fiel do que hoje em dia. Toda a arte da memória que foi desenvolvida pelos retóricos gregos e latinos é um negócio espetacular: o sujeito decorava discursos de cinco horas. Ele escrevia o discurso, o decorava, e chegava na hora ele falava tudo exatamente como estava no papel. Eu só vi um sujeito capaz de fazer isso, que foi o falecido Getúlio Bitencourt, que fez uma entrevista de cinco horas com o ex-presidente João Baptista Figueiredo, não tomou uma nota sequer, e no dia seguinte colocou tudo que o Figueiredo tinha falado, e este disse: "Não, você tinha um gravador escondido". Eu sei que ele não tinha porque o Getúlio foi meu aluno e ele fazia o mesmo com minhas aulas; ele ficava sentadinho, quietinho, e no dia seguinte trazia a aula praticamente transcrita. Mas isso é uma raridade! Nós dizemos que é um fenômeno. Mas em outras épocas isso não era assim: não existia gravador, internet, computador, não tinha sequer imprensa (lançar um livro naquela época significava pegar o papiro, desenrolá-lo e lê-lo em voz alta). Então é possível que grande parte dos elementos que estão ali sejam perfeitamente reais.
Mas a profundidade filosófica que Platão coloca ali parece que transcende um pouco os ensinamentos do próprio Sócrates. Mas, desses ensinamentos, os primeiros que aparecem no diálogo são aqueles levantados pela pergunta do Cebes, que pergunta a Sócrates se é justo desejar a morte, uma vez que a vida está sob a proteção de deuses tão bons; se desejar a morte não seria trair a confiança nesses deuses.
Sócrates usa para responder isso um processo lógico que hoje nos parece rudimentar: é a técnica platônica da dicotomia: ele divide um conceito em dois, depois em dois, depois em dois, depois junta e monta tudo diferente. Ele mostra ali que a morte, sendo o contrário da vida, não pode estar separada dela. E ele mostra que no fundo de todos os conhecimentos que se tem, que se adquire na vida, existem alguns que não se pode ter adquirido nesta vida, porque eles não advêm da experiência: eles são a armadura permanente em cima do qual se constrói todos os conhecimentos. Ele dá como exemplo a própria noção de igualdade e diferença. Nós jamais poderíamos ter aprendido isto pela experiência, porque a percepção de quaisquer coisas pressupõe a percepção de igualdades e diferenças, então não pode ter sido jamais por indução ou por experiência. Se não tivéssemos a capacidade inata de distinguir o igual e o diferente, [40:00] assim como diferentes graus de igualdade ou semelhança, todas as experiências que tivéssemos seria perfeitamente inútil. Então ele usa uma imagem mitológica que é a da vida pregressa, a vida anterior, ou seja: antes de vivermos já estávamos vivos. Mas não estávamos vivos no sentido desta vida, e sim de outra vida na qual, como ali obtínhamos conhecimentos de natureza eterna, tinha de ser também uma vida eterna. Então havia uma vida eterna para trás e uma vida eterna para frente.
Nesse sentido, desejar a morte nada mais era do que desejar a passagem à eternidade; a reconquista do que seria o verdadeiro estado normal da alma. Isso quer dizer que Sócrates identifica a alma humana como uma das formas, ou ideias eternas. Então, existe uma ideia, ou forma eterna, de cada um de nós, e a morte não é senão o retorno a esse arquétipo da pessoa.
Nós vimos aulas atrás ― sem usar o método platônico, mas usando um sistema completamente diferente ― que a ideia mesma de uma identidade, isto é, de um eu, depende da existência de um elemento substancial e permanente por baixo de todas as mutações do eu físico, do eu corporal, por assim dizer, como também do eu social e do eu biográfico. As células do nosso corpo, por exemplo, estão continuamente trocando; não posso dizer que o meu corpo é hoje o mesmo que era. Não! Ele não se conserva nem mesmo na sua forma; até a forma do corpo muda (o próprio processo de crescimento, de envelhecimento, decaimento e morte mostra isso). Mais ainda: as minhas sensações, as minhas ideias, as minhas memórias, estão em constante fluxo; nós as estamos continuamente perdendo. E mais mutáveis ainda são os nossos papéis sociais, os compromissos que assumimos com diferentes grupos de pessoas, tudo isto vai mudando ao longo da vida, e nada justificaria que nós acreditássemos na existência de uma identidade pessoal se esta identidade não existisse mesmo por baixo de tudo isto. Isto é que eu chamo de identidade substancial, o eu substancial, o eu ontológico, por assim dizer.
Nos casos que nós mencionamos, brevemente, de experiências vividas durante o estado de morte clínica, um dos traços mais flagrantes dessas experiências é uma imensa ampliação da consciência e uma visibilidade, uma transparência, muito maior do que qualquer pessoa poderia ter em vida, de tal modo que aquele menino, o Colton Burpo, ele esteve nesse estado durante alguns minutos, e a narrativa dele poderia se prolongar por muitos anos. Levou muito tempo para ele acabar de contar o que tinha visto. Então não há uma proporção entre tempo terrestre da experiência e o conteúdo desta outra temporalidade que foi vivida lá. Então é evidente que neste estado a pessoa tem acesso a um aspecto dela, a uma dimensão dela, que transcende e abrange tudo o que ela experimentou em vida. Se isto não é o eu substancial pelo menos é um aspecto dele; é uma experiência dele que você está tendo.
Provavelmente o conhecimento total do eu substancial é inacessível até mesmo para o próprio indivíduo. Ou seja: como após a morte existe ainda uma continuação da temporalidade ―, mas outra temporalidade, por assim dizer, mais acelerada e mais próxima da simultaneidade ― então se pode dizer que a experiência do eu, por si mesma, pode se prolongar quase indefinidamente. Então, toda a riqueza contida em um único eu substancial humano é incompatível com a pretensão de apreendê-la dentro das formas da temporalidade terrestre. Toda experiência que nós temos aqui é, por assim dizer, fugaz: ela é breve, e recortada, e fácil de você perder. No entanto, um pouco de concentração em você mesmo basta para você perceber que dentro do círculo das experiências, que são transitórias, existe um elemento mais permanente que abrange tudo isto. Você pode chamá-lo como quiser, mas eu diria que isto é um reflexo do eu substancial: é disto que está falando Sócrates. A ideia de vida anterior ou posterior, vocês percebem que, nessa escala, não faz muito sentido e só pode ser explicado como uma imagem que ele está usando, uma imagem mítica, que não pode ser tomada como uma tese filosófica. Não podemos afirmar, de maneira alguma, que Platão acreditava em uma vida anterior. Não! Ele usa a imagem da vida anterior da qual ele não tem a mínima certeza; e Sócrates deixa isso muito claro: ele não está pretendendo apresentar uma prova doutrinal da imortalidade, ele está querendo dar uma ideia.
Isso é outro detalhe muito importante: praticamente tudo o que existe de valioso na filosofia universal tem muito pouco a ver com a arte da argumentação. Só é possível você argumentar algo quando você tem um conhecimento e você deseja persuadir outra pessoa da veracidade desse argumento. Isso significa que o conhecimento em si mesmo não pode ser problemático. A única coisa problemática é a cabeça do ouvinte. Por exemplo: eu sei que um quadrado tem quatro lados, mas tem um sujeito que acha que são três; então, baseado na certeza que eu tenho do meu conhecimento, procuro por meio de procedimentos lógico, retóricos, dialéticos etc., fazer o indivíduo ver aquilo que eu já estou vendo; ou seja: eu estou indo do conhecido para o desconhecido, e procurando trazer o desconhecido para o conhecido.
Então, o conhecimento mesmo não é posto em questão na arte da argumentação, e isto é fundamental. Isso quer dizer que só existe argumentação quando o problema do conhecimento já está resolvido, e que para a investigação da realidade, para o conhecimento da realidade, a argumentação é de pouca valia. Então o procedimento que tem que ser usado, e que a filosofia sempre usa, é exatamente o procedimento contrário, que é o de recuar das ideias e opiniões, para as experiências fundamentais, que, estas sim, estão fora de dúvida. Então você vai ter que apoiar o duvidoso no certo.
Ora, mas essas experiências fundamentais se nos apresentam sob a forma real das experiências vividas, e não na forma de teses filosóficas. Transmutar as experiências fundamentais em teses filosóficas é um desafio monstruoso. Então não se trata, portanto, de você confrontar uma tese duvidosa com uma tese certa. Não! Isto é só a aparência lógica do negócio. O que você está fazendo é confrontar meras ideias, meros pensamentos, com dados fundamentais de experiência vivida, os quais talvez você não saiba expressar como teses, mas que estão lá no fundo como padrão de toda a certeza. [50:00]
Por exemplo: todos nós temos a experiência da densidade do ser. Esta é uma expressão filosófica evidentemente, mas não é uma tese filosófica; ela é realmente uma experiência. Algum dos aqui presentes, ou alguém da humanidade, já teve a experiência do nada? Nunca ninguém teve. Então estamos metidos no ser, que nos cerca por todos os lados, não nos larga um único instante, e sabemos que estamos ali dentro. E mesmo que quiséssemos, por uma operação puramente mental, por um pensamento, negar a densidade do ser e encontrar nele intervalos, nós só conseguimos fazer isso na escala verbal, porque a isso não corresponde nenhuma experiência. Eu posso fazer um raciocínio sobre o nada, mas não posso fazer uma experiência do nada. Isso quer dizer que a densidade do ser é uma dessas experiências fundantes. Existem muitas outras. Eu não posso demonstrar agora, mas outro dia eu poderei demonstrar que todas as categorias do nosso pensamento vêm dessas experiências fundantes. Não que elas tenham, por assim dizer, vindo de fora e se impregnado no nosso ser, mas é uma espécie de harmonia, é uma espécie de jogo entre a mente humana e essas experiências fundamentais, de maneira que as experiências dão a armadura total das possibilidades do pensamento humano.
Então o que Sócrates está tentando fazer ali é exatamente isso; só que isso não é uma argumentação, isto é uma meditação. Que dizer: a meditação recua das ideias até as experiências fundamentais. Note que a todo o momento, nesse diálogo como nos outros, Platão apela ao testemunho dos ouvintes. Note que não é apenas a concordância. Embora às vezes o diálogo tome a forma aparente de uma argumentação, ele não pode ser uma argumentação porque ele é um processo de descoberta, e não a passagem de um conhecimento tido como líquido e certo. Por que Sócrates não pode passar uma teoria como conhecimento líquido e certo a ser demonstrado através de uma argumentação? Porque ele também não tem certeza. Existe um resíduo de incerteza na questão da imortalidade pelo simples fato de que o estatuto de vivente terrestre e o estatuto de alma imortal são incomensuráveis entre si. Quer dizer: a vida terrestre cabe dentro da imortalidade, mas a imortalidade não cabe dentro da vida terrestre. Então você querer demonstrar a imortalidade seria como você tentar espremer todos os versos de um poema num verso só. Não dá para você fazer isso. Pega a Divina Comédia, o verso duzentos e quarenta e tanto, e tenta botar tudo dentro dele. Isso não é possível! O sentido do verso individual é dado pela estrutura do conjunto, a qual por sua vez não depende daquele verso em particular, embora o contenha e seja harmônica com ele. Vamos supor que nós perdêssemos um verso da Divina Comédia: ele apagou, ficou borrado, então tem um verso que nós não sabemos. Os leitores habilitados são capazes de imaginar vários versos que poderiam entrar ali; versos diferentes que poderiam entrar ali porque se harmonizariam com a estética do conjunto, do todo. Porém se perdêssemos a Divina Comédia inteira e sobrasse somente um verso, nós poderíamos reconstituí-la a partir desse verso? Não. Absolutamente impossível! Então, a relação da nossa vida mortal e a imortalidade é exatamente esta.
Esta incomensurabilidade também faz parte da experiência da densidade do ser, que tem em grande parte a estrutura daquilo que Anaximandro chamava o apeíron. Você tem um círculo de experiência que é abarcável e sabe que ele está dentro de outro círculo de experiência que é inabarcável, mas que está lá, e sem o qual o seu não poderia estar. Eu acho que nunca existiu um ser humano que fosse burro o suficiente para acreditar que só existe aquilo que ele vê; que só existe aquilo que está dentro do seu horizonte de consciência. No entanto existem filósofos suficientemente burros para acreditar que a experiência do desconhecido não é uma experiência, mas uma dedução que nós tiramos a partir da experiência repetida. Ou seja, eu vi um pedaço do mundo, depois outro pedaço, e outro, e nunca faltou um pedaço que estivesse além dos pedaços conhecidos, daí eu concluo: "Ah! Isto aqui continua para além e existe o círculo do desconhecido em volta." Ninguém jamais fez esse raciocínio.
A presença do desconhecido está dada dentro do próprio tecido do conhecido, pelo simples fato de que tudo o que é conhecido só é conhecido como parte, fragmento ou aparência. Por exemplo: o fato de que você não possa ver uma pessoa por dois lados ao mesmo tempo; pela frente e pelas costas ao mesmo tempo. Você nunca viu. E você nunca duvidou que as pessoas que você vê pela frente têm costas, e que as pessoas que você vê pelas costas têm frente. Não é um processo de dedução nem de indução. É uma condição sine qua non de qualquer percepção. Ou seja, a densidade do real está dada já nas próprias condições que determinam a possibilidade de uma percepção.
Então, é a esta experiência de base que Sócrates está remetendo aquelas perguntas que os seus discípulos lhe fazem na sua cela de condenado à morte. E note que em certo momento ele faz uma espécie de paródia de seu julgamento. Ele diz: "Bom, existe a possibilidade de que o homem que deseja a morte esteja fazendo uma injustiça com os deuses, uma ingratidão com os deuses. Então eu me coloco em julgamento por vocês e espero que nesse julgamento eu me saia melhor do que me saí no outro." Quer dizer: o indivíduo ainda tem o sangue frio de fazer uma paródia do próprio julgamento que o condenou à morte. Ele toma os seus ouvintes como juízes e como testemunhas, ao mesmo tempo.
Existe uma primeira parte ― que é a conversa de Fédon com Equécrates ― onde ele começa a narrar a situação; não entrou no diálogo propriamente dito. Daí começa o diálogo quando perguntam a Sócrates se não é uma injustiça querer a morte. E além dessa exposição que eu estou resumindo aqui, Sócrates faz, primeiro, outra, onde ele diz que nós sabemos que todo o conhecimento que nos vem do sentido corporal é frágil, é mutável, é incerto, é passageiro, mas que ao mesmo tempo esses conhecimentos só são possíveis graças àqueles conhecimentos eternos e imutáveis com os quais nós nascemos, como a capacidade de perceber igualdade e diferença. Então existem evidentemente dois planos no conhecimento humano. Um não nega o outro. O plano eterno contém e abrange os conhecimentos sensíveis e mutáveis, os quais só são possíveis graças àquela grade de conhecimentos com os quais você já nasceu. [1:00]
Porém, no curso da vida, nós somos levados pela estimulação sensível a prestar atenção somente naqueles elementos que estão fisicamente presentes, e a esquecer dos elementos permanentes e fundamentais nos quais esse mesmo conhecimento se baseia.
Ele diz: o que é um filósofo? É um sujeito que faz o contrário: ele está continuamente recuando desde os dados sensíveis, passageiros, às condições permanentes que o possibilitam. Então, a Filosofia se torna uma espécie de prática de concentração, onde o filósofo vai focar a sua atenção naquilo que é permanente e imutável nele próprio e que, portanto, lhe possibilita conhecer aquilo que é permanente e imutável na realidade como tal. Isso significa que os dados sensíveis, para o filósofo, já não são importantes em si mesmos -- claro que eles continuam importantes de algum modo: você precisa comer, beber, dormir etc. Mas ele sabe que tudo isso aí é como se fosse uma espuma que se agita na superfície de um oceano que contém elementos muito mais profundos, valiosos e permanentes, nos quais o filósofo está precisamente interessado. E, na medida em que o filósofo operou esse giro da atenção para os elementos permanentes, são esses os que têm valor para ele e é em função desses que ele toma suas decisões fundamentais, e não em função daqueles outros elementos mais mutáveis e periféricos e que, por isto mesmo, não se admite que na passagem da vida física para a morte o filósofo se lamente ou tema, porque pelo exercício da atenção ele já está colocado na dimensão do eterno e permanente, e a sua atitude perante a eventualidade da morte mostra se ele está realmente sabendo do que fala ou não.
É claro, então, que esse ensinamento de Sócrates se refere a uma atitude moral que ele toma numa circunstância extrema, porém, não vale só para a circunstância extrema, vale para todos os momentos da vida, e em todos os momentos da vida é necessário que o filósofo baseie as suas decisões, não na impressão transitória dos dados externos ou internos do momento, mas naquilo que ele sabe a respeito do que é permanente, valioso e eterno.
Na mesma medida é necessário que as suas ações, suas escolhas e suas decisões reflitam a presença do eterno no meio do mutável e transitório, e é por isso que eu estou enfatizando a importância da fidelidade à palavra dada; a fidelidade à palavra dada é um sinal da presença do eterno no meio do mutável. Isto se aplica especialmente àqueles votos e promessas que foram feitas para uma vida inteira. Sabe quando você pode voltar atrás nisso? Nunca!
Eu creio que esta fidelidade, esta permanência, para nós que estamos estudando Filosofia e que pretendemos nos tornar filósofos, é um elemento disciplinar fundamental. Sem isto você permite que aquele redemoinho de sensações e sentimentos fugazes adquira perante sua mente uma realidade que ele não tem. É a força hipnótica da aparência. E no momento que essa força hipnótica da aparência prevalece sobre a consciência do permanente e eterno, então a sua inteligência inverteu, e a inversão aí toma uma característica obviamente diabólica.
Note que isso não é um elemento de decência; isso nada tem a ver com a sua conduta aparente, que os outros possam julgar. Isso é uma coisa interna que só você sabe, então é, por assim dizer, um problema entre você e Deus, e não entre você e o meio social; e é por isto mesmo que esse elemento moral é mais importante do que os outros -- se vocês entenderam o que eu estou dizendo, vocês vão entender que isso faz parte do primeiro mandamento.
Uma vez um sujeito perguntou a Jesus: "Olha, esse negócio todo é muito complicado e eu queria saber qual é o mínimo que eu posso fazer, qual a coisa simples que eu posso fazer, para ir para o céu?" E ele disse: "Cumpra o primeiro e o segundo mandamentos." Ora, isto é uma coisa na qual as pessoas prestam pouquíssima atenção, incluindo aqueles que se dizem cristãos! Por exemplo: se o indivíduo comete um adultério, tem uma bebedeira, toma um pico ou dá um desfalque no banco ou coisa assim, todo mundo cai de pau. Mas se o indivíduo é infiel à palavra dada ninguém está ligando, não parece muito sério, porque não é vistoso, não faz parte do mundo da decência: faz parte da verdadeira moralidade. A soma do primeiro e do segundo mandamentos mostra os princípios à luz dos quais os oito mandamentos seguintes devem ser interpretados. Se Jesus disse que eles são os principais, isso significa que os outros são acessórios em relação a eles, ou seja, são derivados, são consequências, são corolários, são aplicações, por assim dizer, e não estão no mesmo nível dos dois primeiros. Como aplicar o mandamento de não matar, de não roubar, ou de não cobiçar a mulher do próximo etc.? À luz dos dois primeiros. Eu conheço pessoas inumeráveis que se elas se casam e são traídas pelo marido ou pela mulher ficam ofendidíssimas, se separam, ficam com raiva um do outro pelo resto da vida. Eu já vi isso acontecer milhares de vezes. E eu pergunto a essas pessoas: Por que vocês colocam a fidelidade conjugal acima do segundo mandamento? Com que direito você faz isso? O dever de perdoar é inerente ao segundo mandamento e, portanto, o dever da fidelidade conjugal deve ser entendido em função do segundo mandamento e não sobreposto a ele. Isso é uma coisa muito simples. Se as pessoas tiverem clara essa prioridade absoluta do primeiro e do segundo mandamentos, e interpretarem tudo em função deles, então tudo fica muito mais claro. Eu, como sou um sujeito preguiçoso, tenho como critério jamais me colocar uma pergunta se o Evangelho já trouxer uma resposta clara e definitiva. Para que eu vou ficar especulando se eu vou voltar aqui mesmo? Se, além de estar no Evangelho, o negócio também está na tradição filosófica, então para que eu vou ficar buscando sarna para me coçar? Vou pensar em outra pergunta para a qual não haja uma resposta evidente!
Esses dias eu recebi uma carta de uma amiga muito querida, mas que é uma pessoa muito confusa. É dessas pessoas que ficam levantando mais perguntas do que ela mesma consegue responder, [1:10] e ela disse: "Justamente no instante em que eu estava tendo mais vida religiosa, orando e indo na missa, o meu filho morreu. E agora eu estou chocada. Como Deus permite uma coisa dessas?"
A pergunta em si viola o primeiro mandamento, porque a sua pergunta supõe que exista uma relação de causa e efeito entre a sua vida religiosa e a vida física do seu filho, ou seja, que a sua vida religiosa tem algum poder sobre a vida física do seu filho. Mas, se fosse assim, você seria a mente e o seu filho seria o corpo. Você teria, sobre a vida física dele, o poder que você tem sobre a sua vida física. Isso é inteiramente absurdo! A morte ou sobrevivência do seu filho não depende de maneira alguma da sua vida religiosa e da sua relação com Deus. Depende da relação dele com Deus. Deus não vai decidir se uma pessoa morre ou fica viva porque outra pessoa está rezando por ela, ou não. Isso não faz o menor sentido. Se nós supuséssemos que existe a relação de causa e efeito, ou seja, que a sua vida religiosa tem um poder sobre a vida física do seu filho, então das duas uma: ou Deus é culpado de trair você, de trair a sua expectativa, ou você é culpada porque a sua vida religiosa é imperfeita, então matou seu filho. As duas hipóteses são inteiramente aberrantes; ou seja: você está colocando a coisa de tal modo que, ou você vai ter de acusar você mesma ou vai ter de acusar Deus. A vida ou morte do seu filho não tem nada a ver com a sua vida religiosa ou com sua vida espiritual; tem a ver com a vida espiritual dele, a qual é um mistério para nós. Ou seja: a morte de ninguém tem nada a ver com a sua vida espiritual. Então, a questão toda pressupõe que a existência física de uma pessoa seja função da vida espiritual de outra, o que é uma coisa inteiramente aberrante, porque o próprio Deus já avisou que ninguém sabe a hora, e isto vale para todos.
Portanto, nós não temos poder nenhum de impedir a morte de quem quer que seja; e isto faz parte da nossa própria condição; para que eu possa ser um eu substancial que é alguma coisa ― e não apenas uma aparência ― é necessário que meu eu substancial esteja perfeitamente distinto e separado de outro, ou seja: nós nos comunicamos na esfera psíquica, mas não há intercâmbio entre as substâncias ontológicas de dois eus substanciais.
Você vê que um pequeno erro na colocação dessas coisas pode levar uma pessoa a se atormentar pelo resto da sua vida, buscando saber se a culpa foi dela ou de Deus. Essa é uma pergunta absolutamente insensata. E entendemos também que, para tirar uma pessoa desse dilema, não precisamos nem afagá-la e nem chicoteá-la, basta apenas girar um pouco o foco de atenção: ela está prestando atenção na coisa errada; está fazendo a pergunta errada, que se baseia numa premissa absurda. E quem nos coloca nessas situações absurdas? Isso é que é o diabo. O diabo ― isto já está na Divina Comédia ― ele é um grande lógico, e conhece muito mais lógica do que nós, e consegue criar pegadinhas metafísicas das quais se podem levar séculos para escapar.
Uma dessas pegadinhas é esta: você está conversando com um sujeito que é materialista, cientificista etc., e você cita alguma coisa da religião e ele diz "isto aí está superado, o progresso da ciência já superou isto". Você quer dizer que a humanidade está indo da obscuridade para a iluminação? Que há um percurso pré-determinado da humanidade em direção à iluminação? É isto que você quer dizer? Não há base nenhuma para você dizer isso; nenhuma ciência pode provar isso e nem o contrário disso. Então, esse é um elemento de crença religiosa que você quer nos impor. Como crente na ciência ele acredita que não existe a teleologia, ou seja: o finalismo. Não existem as causas finais, só existem as causas eficientes, então as coisas não acontecem para isto ou para aquilo, mas acontecem simplesmente porque algo as desencadeou. Então, não há finalidade. Mas, ao mesmo tempo em que ele diz que não há finalidade, ele diz que estamos indo em direção a ela.
Essa dupla crença, que é absolutamente autocontraditória e absurda, faz parte do próprio ambiente cultural no qual nós estamos. Todo mundo acredita que não há finalidade, mas que nós estamos indo em direção a ela! Só que depois que você põe isso na cabeça das pessoas, o número de consequências erradas que elas vão tirar daí é ilimitado, porque elas vão usar esse padrão para julgar tudo o que existe. Só que nunca ninguém jamais formulou a coisa assim e a ofereceu como uma tese filosófica. Sempre a coisa vem como uma premissa oculta, e as pessoas aceitam sem saber que aceitaram. Então, é como diz o Dr. Juan Alfredo Cesar Müller: é a mentira esquecida na qual você ainda acredita. Do mesmo modo que existe esse tipo de contradição básica e intolerável no seio de tantas convicções públicas, existem contradições absurdas que a pessoa internaliza e passa a viver como se aquilo fosse a realidade da sua vida, o que é exatamente o caso que está embutido no sofrimento desta minha queridíssima amiga.
A Filosofia existe para nos curar desse tipo de coisas. Não é para nos provar o que quer que seja. Provar é coisa de desocupado. Nós estamos interessados em descobrir a verdade, mesmo que não possamos prová-la para ninguém. A prova é só de conhecimentos que já são muito velhos e muito óbvios; aí nós podemos criar uma prova. Mas o conhecimento vivo que você está buscando agora, que você quer pegar na percepção e na experiência, esse não tem prova, mas tem evidência; só que é a evidência que só você percebe e que não pode transmitir a outro. Só pode se você for um gênio da literatura como Platão -- e mesmo assim a prova não é completa.
De toda essa exposição, vamos reter alguns pontos:
(a) A "fidelidade à palavra dada" como reflexo do eu substancial e como garantia que você não vai perder contato com ele. Na hora em que você acreditar mais no redemoinho de emoções que o envolve do que na permanência do eu substancial, pronto: você caiu na armadilha! E a sua inteligência, que só opera perfeitamente no nível do eterno e do imutável, se perdeu para você; se desconectou.
(b) "O dever de buscar antes a verdade do que a prova", mesmo que você só possa ter acesso a essa verdade mediante uma experiência quase incomunicável.
(c) "Nunca julgar as pessoas pelos princípios da decência", pois isso é a coisa mais imoral que existe. [1:20] A decência é a coisa mais imoral que já inventaram. Tinha aquela história: Ah, Jesus Cristo anda no meio de ladrões e de prostitutas. Era indecente! Ele já nós deu um exemplo de indecência. Ele não estava ligando para a decência! A decência é o que os outros pensam de nós. E, hoje em dia, quais são os critérios de moralidade que se usam no mundo da mídia e da política? Só decência. Não há moralidade alguma. Vejam o caso daquele sujeito do FMI que foi pego no hotel, abusando da camareira. Agora descobriram o seguinte: a camareira era prostituta nas horas vagas. E, talvez, o cara seja inocente! Só que agora a carreira dele já foi para as cucuias: ele era candidato a presidente e agora não se elege nem vereador -- não tenho motivo para falar bem do cara porque ele é um esquerdista, mas talvez ele seja inocente. Então, decência é isto: é descobrir um pontinho que você pode explorar para fazer uma pessoa adquirir uma aparência comprometedora perante os olhares de pessoas que são tão ou mais maliciosas do que você. E Jesus Cristo deu prova de que não ligava para decência. Ele ligava para a lei moral verdadeira, que era personificada n`Ele mesmo. Ele não tem porque agir decentemente porque ele é o padrão do certo e do errado. Em ralação ao que os idiotas e os maliciosos vão pensar, a própria Bíblia diz: "Você não se meta no círculo dos escarnecedores". Agora, se o que você mais tem medo no mundo é de que riam da sua cara, e façam uma piada ou uma fofoca, então, você está perdido para a Filosofia! Você perdeu contato com aquilo que é eterno, substancial, e você só liga para algo que é ainda mais fugaz do que as aparências sensíveis: as aparências imaginárias na cabeça de terceiros.
(d) Com relação a condutas pessoais que você veja no seu grupo, no seu círculo etc., vamos combinar um negócio: "nunca fale mal de ninguém". Se você puder ajudar em alguma coisa, ou se a pessoa lhe pedir um conselho, você diz. Senão, não fale mal de ninguém. Só fale bem. Se abrir a boca para falar de outro, fale bem. É claro que você pode criticar atitudes públicas, porque o sujeito que toma uma atitude pública ele a toma para que os outros a vejam. O camarada que pega uma mulher e a leva a um motel, faz isso escondido. Mas o sujeito que sai defendendo a liberação da maconha, ele faz isso para que as pessoas vejam. Ou será que ele defende a liberação da maconha embaixo do sofá, para que ninguém ouça? Atitudes públicas podem e devem mesmo ser criticadas em público; mas nunca abra a sua boca para falar de pecados ou defeitos pessoais. Se você vir, sabe o que deve fazer? Faça de conta que não viu, porque para julgar uma só coisa dessas, você precisaria prestar tanta atenção, e saber tanta coisa, e fazer aquilo com tal seriedade, que é melhor você se enganar por pensar bem de uma pessoa do que por pensar mal dela. Nunca ninguém foi para o Inferno por pensar bem de uma pessoa má; muito menos por pensar bem de uma pessoa mais ou menos boa; e muito menos por pensar bem de uma pessoa boa que, de vez em quando, cometeu algum erro. Agora, no Brasil o pessoal exige a perfeição: toda discussão é um tratado de perfeição evangélica. Como ninguém aguenta isso, as próprias pessoas que criam essa atmosfera vivem procurando uma libertação dela, então vão tomar pico, vão para o movimento gay etc.
Agora vamos para as perguntas.
Aluno: O senhor poderia desenvolver mais a questão da relação entre a fidelidade da palavra e o primeiro mandamento?
Olavo: O primeiro mandamento tem uma série de implicações: a primeira é a noção mesma de unidade da realidade. Não há duas realidades; não há dois seres universais: há um só! Esta é a primeira coisa. Mas, o número de ideias que nós temos, que violam esta lei, é imensamente grande, mas normalmente não percebemos isso. A primeira coisa que o primeiro mandamento exige é uma concentração do espírito naquilo que é realmente importante, naquilo que é absoluto, eterno e imutável. Nós podemos dizer que o culto tem três formas: (a) a primeira delas é a atenção, é você prestar atenção naquilo, é contemplação; (b) em segundo lugar existe o amor; (c) e em terceiro lugar existe a obediência. Evidentemente, aquilo em que você não presta atenção, você não pode ter amor e, muito menos, pode adaptar sua conduta àquilo.
É exatamente disto que está falando o diálogo Fédon. No Fédon, você vê que o filósofo tem como primeiro dever não se deixar enganar pelo fluxo constante das aparências, mas concentrar-se naquilo que ele sabe que é verdadeiro, que ele sabe que é eterno e que ele sabe que e imutável. Claro que aí existe uma tensão, porque a própria estrutura da nossa vida biológica é voltada para a mutação constante. Tudo o que se passa na nossa mente é entrecortado, é picotado, é fugaz e é inconstante: a coisa é assim porque é. Existe uma espécie de desajuste entre o aparato cognitivo natural humano e o seu objeto eterno; mas, por outro lado, existe também, no fundo deste aparato cognitivo, algum elemento que é eterno e permanente, que é exatamente o que nós chamamos o "eu substancial". Então, a tomada de consciência do eu substancial é, ao mesmo tempo, a mesma coisa que a tomada de consciência da eternidade enquanto tal. Na verdade não se pode dizer que seja um esforço de concentração, mas é uma espécie de reconhecimento ou adaptação; quer dizer: você reconhece de novo, e de novo, e de novo, e de novo esta permanência que está no fundo de toda mudança, e no fim você acaba admitindo que ela é efetivamente a realidade. E o resto, não é que ele seja irreal, que seja apenas uma ilusão, mas é apenas uma superfície; e a superfície, evidentemente, faz parte do ser, mas não é o ser. Não tem como você fazer o ser, na sua substancialidade, caber dentro das aparências: são as aparências que cabem dentro dele.
Quando eu falo fidelidade à palavra é porque a nossa personalidade ― que não corresponde ao eu substancial ― ela é uma das aparências das quais ele se reveste; é uma manifestação dele. Mas, na mesma medida em que é uma manifestação, ela pode servir como um suporte para você se instalar mais no eu substancial ou, ao contrário, pode servir como uma camuflagem tão bem feita que o eu substancial desapareça. [1:30]
Há pessoas que estão tão identificadas com os seus pensamentos, sentimentos, e com seus estados, que não percebem nada de permanente por baixo daquilo. Nesse caso, nada se pode fazer por elas. Você está conversando com a pessoa, você sabe que ali tem um eu substancial humano, tem uma alma imortal, mas essa alma imortal não fala: só o que fala é a superfície da pessoa. Então você não tem um meio de comunicação -- a não ser que você seja uma espécie de Milton Erickson, e consiga falar com a pessoa para além da consciência presente dela.
Mas, a "fidelidade à palavra" é uma espécie de treinamento que você faz: é você dar à sua própria personalidade mutável, um pouco de estabilidade, no fundo. É você reconhecer que o aspecto mutável não é tudo, e que existe algo que permanece. Mas, se você mesmo não é capaz de algum esforço de permanência, então, a própria imagem de permanência desaparece da sua mente.
Aristóteles dizia que "a imobilidade traz a sabedoria". Evidentemente, não se trata de você sentar numa cadeira e ficar lá eternamente. Não é disso que ele está falando. Mas, de imobilidade no sentido de imutabilidade, de retorno à mesma raiz sempre de novo. Se você não tem essa prática na sua vida, nos seus atos, a coisa desaparece da sua mente, pois, ao mesmo tempo em que nós temos esse fundo eterno e imutável, por outro lado, somos escravos da mutabilidade. Então, é na própria mutabilidade que nós temos de começar a treinar, por assim dizer, um retorno interior, de novo, de novo e de novo aos mesmos elementos fundamentais. Se não existe nenhuma tradução disso, ou expressão disso na sua vida moral, a coisa acaba por desaparecer da sua imaginação.
Nós sempre vivemos buscando alguma segurança, alguma proteção, algum alívio ― algo que, de certo modo, nos imunize contra a confusão do mundo. Mas, por que você mesmo não se torna um dos pilares desta estabilidade? Vou dar-lhes uma sugestão: leiam o livro do Joseph Conrad, "A Linha de Sombra". É a história de um jovem capitão de um navio que pega o seu primeiro comando e nessa viagem acontece uma epidemia no navio e toda a tripulação fica doente. Somente uma única pessoa não é contaminada: um velho cozinheiro, que é um sujeito cardíaco. E aquele sujeito que mal pode se mover, com a sua perseverança e insistência, leva o navio até ao porto e salva todos. Eu acho que o melhor manual de lealdade que existe na literatura universal é do Joseph Conrad, porque praticamente todos os livros dele tratam disso: da lealdade e da deslealdade como um dos pilares do mundo. E isto é uma coisa que está inteiramente ao nosso alcance. É claro que você pode falhar, mas, se isto acontecer, você poderá voltar atrás quantas vezes sejam necessárias para corrigir e retornar à palavra dada. Não importa o quanto você tenha errado. Retorne sempre, de modo que alguma confiança em você mesmo você possa ter de maneira justificada, e passe a depender mais dessa confiança do que da confiança em quem quer que seja. Quer dizer: a independência de espírito não consiste em dizer: "Ah, eu tenho opinião própria. Eu sigo a minha própria cabeça". O sujeito que fala isso não sabe do que está falando. É um bobo alegre. A autoconfiança repousa sobretudo na "fidelidade à palavra dada", ou seja: você saber que vai manter a sua palavra mesmo que você morra. Enquanto você não tiver isso, não é confiável de maneira alguma, e você precisará de alguém que mande em você.
Aluna: Há muitas aulas, o senhor falou sobre o poema "O Espectro", do Bruno Tolentino, e sobre como havia falado ao poeta que faltava sinceridade naquele poema. Como isso se deu? O senhor leu o poema e percebeu que a experiência contida ali não poderia ser acessada?
Olavo: Eu achei que no poema ele criava uma dicotomia trágica entre o mundo da experiência, o mundo da vida real, e o "mundo do conceito", quando na verdade as duas coisas estão interligadas, pois não há como você tomar o partido do "mundo como vivência" contra o do "mundo como conceito". Isto não é possível. É apenas uma atitude, um teatro, porque nós, de fato, só pensamos por conceitos, e sem conceitos você não pode dar um único passo. Então, eu achei que aquilo era mais uma atitude do que uma experiência real. Ele fazia um contraste que, depois, em outro poema, ele contrapunha o "mundo como ideia" e o "mundo como rapto". Mas, o "mundo como rapto" é uma ideia e o "mundo como ideia" é um arrebatamento também. Eu achei que ele estava forçando muito essa dicotomia e que ele não poderia ter vivenciado isso como experiência. Isso, na verdade, era apenas uma ideia. Então, a condenação do "mundo como ideia", nesse caso, estava virando, apenas uma ideia, e, portanto, estava soando falso. Mas, depois, ele melhorou o poema ― eu não lembro exatamente o que ele fez: trocou alguns versos, trocou uns personagens ―, mas no final ficou bom.
Aluno: Eu sei que essa pergunta foge do tema da aula, mas tenho uma dúvida terrível: parece-me que entre a virtude da estudiosidade e do pecado da concupiscência dos olhos, ou curiosidade, a linha é muito tênue. O senhor poderia dar-me uma luz neste assunto?
Olavo: Eu acho que o limite é dado pelo seguinte: no caso da concupiscência dos olhos, o fundo dela é um desejo de domínio; quer dizer: de você tornar o universo uma espécie de miniatura, que cabe nos seus olhos, e sobre o qual você tem um poder intelectual completo. Ao passo que a verdadeira busca do conhecimento, implica, sempre, o reconhecimento de que a nossa inteligência é apenas um reflexo remoto da inteligência divina e que a nossa inteligência não tem autonomia, pois sem a inspiração do Espírito Santo ela não é nada. Então, às vezes, não é uma questão de você fazer força, mas sim de você pedir; e, no instante em que você pede, você precisa, de certo modo, repousar no seu estado de ignorância. Pode-se dizer que é uma ignorância confiante. Nós, frequentemente, falhamos nisso porque temos ainda ― e está impregnada em nossa cultura ― a imagem de Deus como outro ente enorme que "criou o mundo" e que, vamos dizer, é uma imagem coisificada, que na mesma medida que você afirma que ele é Deus, você está afirmando a substancialidade autônoma deste mundo. Isto quer dizer, então, que este mundo existe como coisa, entidade etc., e fora dele tem um Deus que "o criou". Mas, na verdade, não é que Deus criou o mundo. Deus é a única substância do mundo. "Nele vivemos, nos movemos e somos". Não há realidade fora Dele.
Por exemplo: no caso daquela minha amiga, que eu estava lembrando agora, vê-se uma coisa importante: o amor humano não tem autonomia. Não existe amor humano. Todo amor vem de Deus. Isto aí remete à minha própria experiência pessoal de uma meditação que eu sempre faço, que é perguntar por que eu existo: buscar uma razão suficiente para a minha existência. E eu me pergunto isso repetidas vezes e não acho nem meio motivo para eu existir. Então, a minha existência é um efeito gratuito do amor divino, ou seja, nós somos o amor divino que está andando por aí. Nós somos o amor divino ambulante. Nós não somos outra coisa. Nós não temos outra substância. É claro que o amor divino nos transcende infinitamente, mas aquilo de nós que [1:40] existe é o amor divino atuando e passando através de nós o tempo todo. O próprio amor que você tem por sua esposa, por seus filhos, por amigos é a ação divina que está passando dentro de você. É claro que passando e se amoldando às suas formas limitadas e imperfeitas e, portanto, passando apenas um reflexo longínquo. Mas, aquilo que é o reflexo longínquo não tem realidade em si mesmo, não tem substância em si mesmo. Toda nossa substância é o amor divino. Não é outra coisa. Então, é a ele que você tem de se remeter na sua busca do conhecimento, e não àquela avidez de tudo abarcar, como se fosse uma miniatura. Essa ideia da miniatura é algo muito importante, pois foi ela que se impregnou na mente ocidental a partir do renascimento: de se fazer um modelo do mundo. O que é o modelo do mundo? É a miniatura. E a miniatura você domina. Ela está inteiramente dentro do círculo de seus olhos, então, a concupiscência dos olhos é uma espécie de desejo de poder. É como se o seu olhar fosse soberano e abarcasse todas as coisas. É uma espécie de símbolo: "o olho que tudo vê". É, evidentemente, uma coisa demoníaca. Nós vemos muito pouco, e este pouco é a própria luz do amor divino que passa através de nós e ativa, por assim dizer, a nossa inteligência. Existe a ação do Espírito Santo em dois níveis: a ação extraordinária ― que é quando ele dá uma revelação ― e a ação ordinária ― que existe como uma corrente que sustenta a nossa inteligência. Sem isso nós não podemos nada, por mais que saibamos e por mais que estudemos. Não é aquela questão de você querer dominar o objeto, ou abarcá-lo. Até certo ponto você pode ir até essa linha, mas chega uma hora em que você tem que parar e dizer: "Espera aí. É Deus quem vai me dar isso aqui".
Então, eu acho que a fronteira disso é esta: a virtude de estudiosidade repousa na ignorância, como um bebê repousa no colo da mãe. Mas, se existir uma revolta sua contra a ignorância e um desejo de dominar e de tornar tudo uma espécie de bola de vidro iluminada onde você enxerga tudo, então, você já entrou no diabolismo e na paralaxe cognitiva, porque o universo jamais vai ser um objeto que você vê. Ele é o próprio ambiente no qual você esta, o qual, por sua vez, está dentro do ambiente divino. É uma coisa de participação e não de visão ― no sentido de um objeto. E implica, também, uma relação de paciência, de amor e de confiança. E a confiança é, sobretudo, quando você não está dominando a situação. É quando você está na impotência intelectual total que você mais precisa dela. [1:43:56]
Transcritores: Paulo Ricardo Costa Pinto, Luiz Felipe Adurens Cordeiro, Maurício Doval e Rafael Guedes da Silva
Revisor: Eduardo Garcia de Queiroz