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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 101

09 de abril de 2011

Boa noite a todos, sejam bem-vindos.

Vocês ainda têm duas semanas para terminar de ler a Apologia de Sócrates e o Fédon, então não entraremos nesse assunto ainda. Nesse ínterim gostaria de fazer alguns comentários aos próprios comentários que eu fiz em relação ao debate com o professor Dugin. Esses comentários foram transcritos (transcrição da aula n° 99) e já estão à disposição de vocês no site.

É uma transcrição não corrigida. Mas é preciso estar consciente do seguinte: embora o texto que eu disponibilizei seja bastante longo, tudo o que eu estou dizendo nesse debate tem uma série de pressupostos embutidos que, para meus alunos, são mais fáceis de apreender. Para o público em geral, vão permanecer um pouco enigmáticos.

Na medida do possível, gostaria de tornar explícitos esses pressupostos. Para isso precisaríamos reler esse texto e, assim, como se diz, ir quebrando a casca e vendo tudo que está insinuado ali.

No mínimo há toda uma teoria da dinâmica histórica, que trabalhei durante muito tempo, e que fui obrigado a expor em duas páginas (não tenho muita certeza se o professor Dugin vai entender do quê eu estou falando). Na verdade essa teoria -- que está no parágrafo 9 da segunda mensagem do Debate -- começou muito tempo atrás, com uma fenomenologia do poder, que eu desejaria ter publicado sob o título Ser e poder. Mas, como sempre acontece, a coisa começou a aumentar, a crescer tanto, que ultrapassou as proporções de um livro, e então circula hoje como dezenas de transcrições. Provavelmente não terei jamais o tempo de dar a isso o formato de livro, assim como aconteceu com meus estudos de Teoria do conhecimento e com a Mentalidade Revolucionária. Mas isso não é o maior dos problemas, porque vocês têm tudo isso nas aulas, nas gravações das aulas.

Essa fenomenologia do poder foi-me inspirada pela pergunta que José Ortega y Gasset, colocou como título da segunda e decisiva parte do seu livro La rebelión de las massas: "Quem manda no mundo?"

Lembro que essa pergunta teve um impacto muito grande em mim. Falei: "Meu Deus, já estamos neste planeta há tantos milênios, e até hoje não sabemos quem manda em nós." Lembro também que, mais ou menos na mesma época, havia caído em minhas mãos um livro do sociólogo americano -- um sociólogo esquerdista -- chamado Wright Mills. O livro chamava-se A elite do poder. Ele tentava, mais ou menos, descrever o que era a classe dominante nos Estados Unidos. Tinha um conceito bem abrangente e muito sério do que era a classe dominante. Não se limitava à expressão direta do poder político, mas abrangia todos os mecanismos que sustentam esse poder e o tornam possível: círculos de influência, prestígios familiares, círculos de amizades, enfim. Ele tentava abarcar todo o terreno.

A descrição era ainda bastante sumária e incompleta, na medida em que se atinha à descrição propriamente sociológica, isto é, se interessava mais pelos grupos, tomados como generalidades, do que pelas pessoas concretas.

Muitos anos depois caiu nas minhas mãos o livro de Fritz Springmeier, que é um sujeito que chegou a sofrer perseguições políticas por causa desse livro, chamado As linhas dinásticas dos Ilumitatti [Bloodlines of the Illuminati]. Ali se estudava um grupo de treze famílias, rastreando até não sei quando, e chegava a algumas conclusões absolutamente extraordinárias. O livro era composto mais de fatos e informações do que de interpretações. Era exatamente o contrário da perspectiva do Wright Mills, que era bastante teórica e muito influenciada pelos métodos usuais da sociologia. O Springmeier se atinha mais aos fatos concretos e aos personagens individuais.

Dentre outras descobertas, ele viu que 21 presidentes dos Estados Unidos eram descendentes de reis europeus, especialmente de duas famílias: umas de reis da Inglaterra, os Plantageneta [Casa Plantageneta], e a outra, dos reis da França. Evidentemente, basta esse fato para se entender que a república não é tão republicana assim. Por baixo de uma mudança nominal de regime podem continuar os mesmos grupos e, sobretudo, as mesmas dinastias familiares que já estavam no poder antes, e essas dinastias - cujos descendentes chegaram à Presidência da República - não influenciaram o curso das coisas somente através desses seus descendentes. Elas ocupavam um vasto lugar no ambiente político e, além dos seus descendentes diretos, tinham muito mais gente trabalhando para eles. À medida que ia rastreando isso, apareciam famílias suíças, chinesas, russas. Começava a aparecer, simplesmente, por estudo de genealogia - quem é parente de quem.

Quando descobri o livro do Springmeier, tinha, há muito tempo, chegado à conclusão de que o que chamamos de ação histórica é uma coisa muito peculiar. Uma ação se torna histórica na medida em que se prolonga no tempo, para além da duração dos seus agentes individuais. Aquilo que um sujeito leva consigo para o túmulo não tem consequências históricas, simplesmente não deixou marcas. Então, esse fenômeno da durabilidade da ação começou a me chamar a atenção. Vi que os historiadores e sociólogos de ofício não pareciam prestar a mínima atenção nisso; o impulso que tinham de dar uma aparência de ciência aos seus estudos os levava a tentar trabalhar sempre no nível da generalidade, quer dizer, formulando conceitos gerais e leis. Com isso, saltavam sobre uma etapa muito importante da formação de qualquer ciência, que é a etapa da coleta.

Não se pode esquecer que, no século XVIII, quando a Biologia começa a elaborar suas primeiras teorias gerais, havia mais de vinte séculos de coleta de fatos biológicos. Se pegarmos a obra biológica de Aristóteles, vemos que são coleções de fatos -- fatos que ele não consegue, de maneira nenhuma, articular em leis gerais, porque só se consegue perceber alguma generalidade real quando os fatos são em número suficiente e todos os buraquinhos estão tampados, não existem lacunas.

A sociologia e a moderna ciência histórica voltada para a teorização (que não é o caso de todos os historiadores, mas é o caso das teorias da História como a de Comte e de Karl Marx, que traçam leis enormes tentando captar regularidades no curso da história) esquecem o seguinte: que os instrumentos de pesquisa de fatos ainda eram muito recentes. Foi só a partir do séc. XVII que houve uma técnica correta, [00:10] por exemplo, para a crítica dos documentos históricos: como é que você lê um documento histórico, como se separa um documento falso de um verdadeiro, como se consegue datar um documento que não tem data (a partir do estilo de caligrafia, da tinta usada) etc. Todas as chamadas ciências auxiliares da História eram relativamente recentes. A coleta de fatos, simplesmente, não era suficiente para fundamentar nenhuma generalização. Todas as teorias gerais que apareceram na Sociologia, na História, são bolhas de sabão. Lamentavelmente, temos de voltar à coleta dos fatos individuais (juntar um fato com outro fato) e reconstituir uma linha constante de ação que se prolonga por muitas gerações -- sem perder o rumo, mas, ao contrário, se adaptando bem às mudanças da situação.

Sobre essa coleta poderíamos operar aquela distinção fundamental de Georg Jellinek - que citei na comunicação ao Duguin -, segundo a qual os fatos da ordem humana se dividem em dois tipos: aqueles que são deliberados e aqueles que não são. Observando o que acontece no cenário histórico, vemos que algumas coisas aconteceram porque foram planejadas e depois houve uma execução, que manteve a unidade do plano e a unidade de propósito ao longo dos muitos percalços e das situações imprevistas, de tal modo que o plano conseguia absorver as circunstâncias imprevistas e fazê-las trabalhar para ele. Nesse caso se observa a linha de execução de um plano. Em outros casos, não. Vêem-se coisas que acontecem, mas não se consegue atribuir àquilo a uma autoria única. Ao contrário: existe uma mescla de linhas causais que se confundem, se alteram, se modificam e acabam dando um resultado que ninguém previa.

Quando Max Weber definiu a História como o conjunto dos resultados impremeditados das nossas ações, estava tendo em vista somente esses últimos fatos -- o que seria mais próprio da sua profissão (ele não era historiador, mas sociólogo). O sociólogo está mais interessado nas grandes linhas do que na reconstituição fato por fato. Olhando assim, para Max Weber, todas as situações históricas pareciam resultados impremeditados.

Jellinek diz que esses dois tipos de fatos históricos, ou de sucessões históricas, só podem ser explicados por dois tipos diferentes de racionalidade. Ele diz que a racionalidade de um plano antecede a ação, e o plano guia todos os passos da execução, todas as adaptações que vão sendo feitas. Porém, quando há um conjunto de resultados que foi produzido por diversas linhas de ação diferentes, sem conexão umas com as outras, sem uma intenção comum, não existe uma racionalidade anterior, mas apenas uma racionalidade posterior, que só aparece na cabeça do historiador. O historiador é que tenta achar um nexo. No primeiro caso, o nexo é bastante claro, porque o sujeito disse o que queria fazer. Você acompanha a ação e vê o resultado. No segundo caso, a própria unidade do processo é duvidosa. Não sabemos se é um processo único ou uma multiplicidade caótica. Tentamos encontrar uma racionalidade por baixo dos acontecimentos, mas não é garantido que ela esteja lá e que vamos encontrá-la.

Quando existe essa massa complexa de resultados que não se pode atribuir a uma autoria única, é muito grande a tentação de se safar mediante generalizações e tentar atribuir à sucessão histórica alguma lei ou força anônima que esteja atuando (por exemplo, a luta de classes, a lei dos três estados [de Comte] etc.) É de fato impressionante o número de obras que se produziram nos últimos dois séculos que visam precisamente isto: dar uma unidade, ex post facto, uma unidade a posteriori, a processos que não têm autoria. O processo máximo que não tem autoria é o chamado "História Universal". Quem foi que planejou a história da espécie humana inteira? Ninguém a planejou. Não havendo autor, não há uma racionalidade prévia, então tenta-se achar uma racionalidade a posteriori, e é justamente aí que aparecem as regularidades, as leis, os ciclos etc.

Tudo isso, para mim, sempre me pareceu fantasia. Qualquer regularidade que você encontre na história se deve ao fato de que você selecionou os dados (os fatos) excluindo aquilo que não entrava no ciclo -- sobretudo quando se dá a esses ciclos um sentido metafísico, como acontece na obra de René Guénon, ou na famosa obra de Gaston Georgel, Les quatre âges de l'humanité ("As quatro eras da humanidade", que é um livro guenoniano), ou todas as obras da Escola Tradicionalista sobre os ciclos.

Os ciclos têm um sentido simbólico, não correspondem a datações precisas. Você pode olhar as coisas numa certa escala e dizer que existe um ciclo de, digamos, 120 ou 2.400 anos. Mas quando você olha numa outra escala, há uma série de subciclos dentro. Qualquer teoria cíclica só pode ser encarada como um símbolo, ou até como uma metáfora poética. Quer dizer que, olhando de uma certa maneira, parece haver esse ciclo; olhando de uma outra maneira, parecerá um outro ciclo. Sobretudo, porque toda teoria dos ciclos tem um sentido evolutivo ou involutivo: ou se vê uma evolução ou se vê uma decadência. Mas acontece que -- como é próprio do simbolismo dos ciclos -- sempre há um ciclo ascendente dentro de um ciclo descendente, e vice-versa. Quando se diz que "as coisas estão piorando", elas não podem piorar uniformemente. Se tudo piorasse uniformemente, ninguém perceberia que está piorando. Quando tudo piora, sempre aparece uma inteligência que se eleva acima das outras e percebe que está piorando. A existência dessa inteligência é um sinal de melhora. Então, freqüentemente, justamente no meio da decadência, destacam-se um ou dois indivíduos (que estão fora da decadência), que representam a semente de um ciclo, ascendente, futuro.

Todos esses ciclos de progresso ou de decadência são altamente duvidosos. Não se encontrará nenhum para o qual não apareçam milhões de exceções. Teorias cíclicas são como um quadro que você está pintando. A primeira decisão que o pintor tem de tomar - primeiríssima, a mais fundamental -- é: o que não entrará no quadro. Primeiro: um quadro tem um tamanho x, uma moldura, e o que está fora da moldura não entra. Segundo: precisa decidir qual é o nível de detalhe que vai colocar. Por exemplo, se vai fazer um desenho em branco e preto, vai excluir as cores; se vai privilegiar os perfis, o traçado ou a impressão de volume, tridimensionalidade etc. Em suma, tem de tomar uma série de decisões que são seletivas. As teorias cíclicas são obras de arte. E, nesse sentido, elas têm uma função meramente literária e sugestiva: a teoria de Oswald Spengler na Decadência do Ocidente ["O Declínio do Ocidente"], de Arnold Toynbee nos estudos da História, de Carroll Quigley no Tragedy and Hope, ou, mais recentemente, no livro maravilhoso The Fire and the Stones, de Nicholas Hagger. Todas essas teorias cíclicas têm de ser tomadas cum grano salis, isto é, com um pouco de ironia.

O livro de Nicholas Hagger tem o mérito de criar um método que é fundamentado num fato de alcance universal, um fato que se verifica em todas as civilizações: o fato de que alguns indivíduos ou grupos de indivíduos, através de sua dedicação à religião, à vida mística etc., acabam algum dia tendo uma visão da luz divina. [00:20] Essa luz divina é encontrada mediante um mergulho do indivíduo na sua própria alma; de repente, lá dentro da alma, ele descobre uma coisa que a transcende e que a formou, de algum modo -- no sentido em que, depois, Paul Claudel diria: Deus é aquele que, em mim, é maior do que eu mesmo. Você descobre que, dentro de você, há uma coisa que é maior do que você e que te formou.

Nicholas Hagger mostra que essa experiência é universal; em todos os lugares e civilizações sempre houve alguém que descobrisse isso. Mostra justamente que desses indivíduos e grupos que tiveram essa experiência é que surgem as primeiras leis, instituições, religiões etc. Ele enuncia, então, a sua lei: a visão da luz divina é a origem das civilizações, é a base das civilizações. Depois, essa visão -- por isso o livro se chama "A Luz e as Pedras" -- se consolida em templos, monumentos, estátuas, símbolos, obras de arte, leis, instituições etc. Essas são as pedras, as formas fixas que a coisa adquire. Através da lenta formação desse conjunto de "pedras", "monumentos", a visão inicial vai se perdendo. Então, entra num ciclo de laicização cada vez maior. Ele mostra que esse ciclo atravessa 61 etapas, que são constantes, idênticas em todas as civilizações; e chega a situar a Europa na quadragésima-terceira etapa, fazendo, a partir daí, uma série de previsões do que pode acontecer, antes ou depois.

Acho que a teoria dele é inteiramente verdadeira, só que, eu pergunto: isso é o movimento real da história ou é apenas o movimento que aparece, quando vistas as coisas numa certa escala? E se mudarmos a escala para maior ou para menor, será que a coisa aparece totalmente diferente?

Li o livro do Nicholas Hagger muito superficialmente -- é um livro de mil páginas --, mas cheguei a entender a teoria. E me parece que ela não escapa dessa generalidade negativa que estou enunciando a respeito das teorias cíclicas: todas elas são uma seleção dos fatos. Na seleção, você primeiro demarca uma escala de tempo e uma escala de detalhamento. Depois, recorta determinados acontecimentos, que lhe parecem os fundamentais, e busca acontecimentos análogos em várias circunstâncias. Em seguida, mapeia-os numa escala de tempo e chega à conclusão de que existe uma certa ciclicidade. Foi exatamente isso que fizeram, também, Spengler e Toynbee.

Em comparação, a obra de Eric Voegelin não é uma teoria cíclica, mas uma série de confissões do seu fracasso em compor uma teoria cíclica. Voegelin inicialmente queria descobrir a sucessão das idéias de ordem social e de ordem cósmica que haviam aparecido nas várias civilizações e articular o modelo de ordem cósmica com o modelo de ordem político-social, para ver se existia uma sucessão delas no tempo. No começo, pensou que havia. Só que, depois, a teoria começou a vazar por todos lados, começou a fazer água, e ele confessou isso. Disse: "Eu tento achar uma regularidade, mas não consigo." Várias vezes arriscou uma hipótese, daí vinham novos fatos e estouravam a teoria. Comparada às teorias cíclicas, a obra do Eric Voegelin é de um realismo brutal.

Prefiro acreditar mais no fracasso das teorias cíclicas do que nas próprias teorias cíclicas. Um dos motivos do fracasso [da tentativa de Voegelin]1 é que formações de idéias de ordem, que, teoricamente (conceptualmente) seriam sucessivas, começaram a aparecer simultaneamente. Então o esquema temporal foi pro brejo, e ele teve de recomeçar outra hipótese, e outra, e outra etc. Tenho a impressão de que os autores de teorias cíclicas só não chegam a fracassos semelhantes porque não têm imaginação suficiente para tentar olhar as coisas por um outro lado.

No caso do Nicholas Hagger acontece uma coisa muitíssimo interessante. Ele diz: se a experiência fundamental, que funda as civilizações, é a experiência da luz divina, então temos de descrever a sucessão das experiências da luz divina que estiveram na origem das várias civilizações. Só que o método que ele usa é o método fenomenológico de Husserl, que descreve as experiências na base de como os objetos se apresentaram à consciência humana, e não na base do que os objetos são em si mesmos. Para Husserl, a questão da objetividade -- de um fato, de um ente, de um fenômeno que ele está estudando -- não interessa. Interessa, apenas, sua descrição precisa -- colocando entre parênteses a questão da realidade ou irrealidade dessa experiência.

Ora, então o que nós temos é uma sucessão de experiências subjetivas humanas a respeito da luz divina. Mas acontece que a luz divina, pela sua própria natureza, não admite ser tratada, apenas, como "objeto de consciência". Ela não pode ser um "objeto de consciência", porque ela se apresenta à consciência como sendo a própria origem e fundamento dessa consciência. A luz divina não é um objeto que esteja dentro da consciência; é algo que você descobre dentro da consciência, mas que a transcende infinitamente e que se apresenta a você exatamente como tal. Como dizer que a luz divina é um objeto de consciência, um dado da consciência? Ela não é de maneira alguma.

Se a luz divina, que os indivíduos captaram ao longo do tempo, é uma coisa que os transcendia, havia-os originado e que, no instante dessa experiência, transfigurava-os, dava-lhes uma nova dimensão que não tinham antes, então é forçoso admitir que a ação dessa luz divina transcende não só a consciência desses indivíduos, mas transcende a sua esfera de ação. Ou seja, ela é capaz de fazer coisas que eles não são capazes de fazer.

A sucessão das experiências da luz divina é uma sucessão de aberturas. O Voegelin usava inclusive este termo: "abertura para o transcendente". Há uma série de aberturas para o transcendente. Mas o fato é que essas aberturas aconteceram para os seres humanos e nos seres humanos. Ora, mas no que consiste essa luz divina? A única atividade dela é criar esses seres e revelar-se a eles depois? Será que é só isso que ela faz? Se aquilo que aparece na experiência merece o nome de Deus, então Deus se torna apenas a origem da luz da consciência humana e só age através dela. Mas será que é assim? Se a única função de Deus fosse essa, ele não poderia ter feito nada antes da existência dos seres humanos. Mas o fato é que, além de criar a consciência humana, ele criou os corpos humanos e o universo físico que nos rodeia.

Olhando a história pelo prisma das experiências da luz divina, Nicholas Hagger chega à conclusão de que as coisas seguem uma determinada linha e há uma certa regularidade cíclica identificável. Porém, vamos raciocinar como na pintura: o que esse método exige deixar de lado desde o início? [00:30] Ele deixa de lado, a priori, a ação divina no mundo. Deus aparece como objeto da experiência (ainda que transcendendo a consciência). Ele transcende a consciência pela sua amplitude, seu poder, sua beleza, sabedoria infinita etc., mas, até aí, não está agindo de maneira alguma.

E se tentássemos olhar a sucessão dos acontecimentos históricos, não como uma série de experiências cognitivas humanas que geraram civilizações, mas como uma série de intervenções divinas?

Se você admite que existe a luz divina, se o conhecimento da luz divina é universal e não há mais como negá-la, é claro que algo de Deus esteve na origem das civilizações. Mas será que Deus não fez mais nada, além de dar inspirações a essas pessoas para criar civilizações que, ciclicamente, estão destinadas a declinar e morrer no fim? Será que não houve uma intervenção divina?

No final do livro, Nicholas Hagger diz que o método dele restaura a noção da história sacra. Mas, espere aí: a história sacra não pode ser constituída somente das visões que certas pessoas tiveram. Afinal de contas, será que Deus existe somente para ser visto? É só isso que Ele faz? Iluminar e ser visto? Se olhássemos por um outro lado, será que essa teoria cíclica ainda se sustentaria? Ou, pelo menos, será que ela não apareceria apenas como um caso peculiar de generalidades muito mais amplas?

Lá pelas tantas, ele cita o Milagre de Fátima. Segundo ele, Nossa Senhora teria dito que, se a Rússia não se tornasse "mais cristã" (expressão dele), poderiam se seguir enormes catástrofes. Ora, mas isso falsifica completamente a mensagem de Fátima! Não foi isso o que ela disse, mas, sim, que os cristãos ortodoxos têm de se converter à Igreja Romana. Foi isso o que ela disse. Não é "tornar-se mais cristã". Começar a ir mais à igreja ortodoxa, rezar mais, ser mais bonzinho... Não foi isso que ela disse.

Por que Nicholas Hagger fez isso? Porque o método dele só permite analisar acontecimentos da ordem cognitiva humana, e não intervenções diretas de Deus no processo. Isso está completamente fora da perspectiva dele. Algo como o Milagre de Fátima, pelo método dele, se torna incompreensível. Fátima não foi uma "visão da luz divina"; foi uma intervenção factual, por assim dizer, de Deus na ordem das coisas. Além disso, as setenta mil pessoas que assistiram àqueles acontecimentos não tiveram uma "visão da luz divina", mas a visão de acontecimentos da ordem física e a audição das profecias que eram dadas através das crianças. Essa experiência não se enquadra no tipo "visão da luz divina"; é um acontecimento de ordem completamente diferente. É um acontecimento da ordem física e histórica diretamente. E, como é da natureza dos milagres divinos -- conforme já expliquei em outro lugar2 --, é um fenômeno que já traz em si a sua própria explicação. É um fenômeno autotransparente. Ele se explica a si mesmo, e não há explicação, fora dele, que possa abarcá-lo.

Quando tentamos analisar o acontecimento de Fátima sob o prisma das várias ciências possíveis, vemos que não existe nenhuma que seja capaz de conectar os vários aspectos do fato: ao desmembrá-lo nos seus aspectos separados, ela não teria como juntá-los depois. O que o estudo científico faria, no caso, seria apenas desmembrar um fato concreto real em abstrações perfeitamente irreais. Como, por exemplo, fazer hipóteses sobre as possíveis causas astronômicas naturais da chamada "dança do sol". Ainda que se encontrasse uma explicação, e mesmo que perfeita, ainda se teria de explicar por que esse fato ocorreu com hora marcada por três crianças. Evidentemente, a astronomia não tem condição de fazer isso.

Mas, ora, o fenômeno da dança do sol, em si, não significa nada. O importante é, justamente, o fato de que aconteceu com hora marcada -- que aconteceu como parte de uma revelação profética, articulado com outros aspectos da revelação profética (as três crianças, a reunião das setenta mil pessoas naquele dia e naquela hora, a sucessão de revelações feitas quanto ao curso da história e a sua confirmação posterior etc.) É a junção de tudo isso que constitui o Milagre de Fátima, e não o fato de uma coisa acontecer separadamente. Existe alguma ciência que possa explicar o fato astronômico e o seu anúncio por três crianças? Uma ciência dessas é inconcebível. Seria uma espécie de "macro-astrologia". A presunção de explicar isso transcende a própria ambição dos mais megalômanos astrólogos de todos os tempos.

A intervenção direta de Deus no curso das coisas -- não só das forças históricas, mas no curso da vida dos indivíduos -- é uma outra linha de sucessão, que não tem nada a ver com as experiências da luz divina. Por exemplo, a coleção imensa de curas miraculosas obtidas ao longo dos tempos. As pessoas que foram curadas não viram luz divina nenhuma (freqüentemente não entenderam nada, e o único nexo que viram entre uma coisa e outra foi o nexo da fé). Elas tinham confiança, rezavam, pediam a Deus, confiavam que Ele iria atender, e Ele atendeu mesmo.

E se fizéssemos um estudo da história humana à luz dessas intervenções, que certamente foram em número muito maior do que as experiências da luz divina (que foram vivenciadas por meia-dúzia de místicos, ao longo dos tempos)? As curas miraculosas estão acontecendo o tempo todo. O livro do James Rutz, "MegaShift", assinala, pelo menos, uns 80 casos de ressurreição comprovados, com centenas de testemunhas. Pessoas que estavam mortas, inclusive uma com o crânio rachado em dois, com o cérebro à mostra, que, em um dia, colou-se; a menina que tinha caído do quinto andar, o pai ficou orando e, diante dos olhos de todo mundo, a ferida fechou e a menina viveu de novo. Há vários casos desse tipo. Essas intervenções marcam o curso da história humana. Até hoje, não se desenvolveu um método para estudar isso.

Mas todo mundo sabe que a nossa civilização começa com um fato dessa natureza. O advento de Nosso Senhor Jesus Cristo não foi nenhuma "visão da luz divina". Luz divina uma pinóia! O homem estava lá fisicamente presente, e a sua presença física é o dogma central da religião cristã. São Paulo diz: "Aquele que não professa que Jesus Cristo veio na carne, então, está contra nós." Isso é um artigo de fé? É um artigo de fé para quem veio depois, mas, para quem estava lá, não era fé nenhuma -- eles estavam vendo. Tome-se por exemplo a história dos profetas hebraicos: eles tiveram muito mais do que uma experiência da luz divina. [00:40] Deus se dirige a eles dando instruções específicas para praticar determinados atos em determinados lugares e tempos muito precisos. Quando agem de acordo com a instrução, seguem-se determinadas consequências; quando desobedecessem, seguem-se outras. Se a mera experiência da luz divina é capaz de gerar civilizações, que dizer dessas outras experiências, desses outros fatos?

Esses outros fatos têm de ser excluídos do campo de estudos por um único motivo: fatos miraculosos desse tipo só acontecem na esfera judaico-cristã e em mais parte alguma. Em outras civilizações vêem-se milhares de experiências da luz divina, ou seja, o acesso de certas pessoas a uma dimensão de compreensão metafísica que naturalmente as modifica e as reforma instantaneamente, e as investe de um certo poder de ação, mas não se vê nada além disso. Sobretudo não se vê milagre com hora marcada, como em Fátima, e não se vê nenhum caso como o do Padre Pio, que fazia cinco, seis, dez, quinze milagres por dia. Isso não acontece no resto do mundo. Pelo método de Nicholas Hagger, chega-se a uma espécie de universalismo fundado na teoria da "Unidade Transcendente das Religiões" de Frijoff Schuon, teoria que eu acho certa, mas que afirma apenas que a doutrina metafísica que está subjacente às várias religiões é a mesma. Mas a doutrina metafísica é um conhecimento que nós temos, um conhecimento a respeito da transcendência. Houve experiência da transcendência em vários lugares e épocas diferentes, e elas convergem no seu significado metafísico: transpondo-as da linguagem simbólica para uma linguagem doutrinal metafísica, vemos que é mais ou menos a mesma doutrina, com diferenças mínimas. A documentação reunida por Whittal Perry no livro "A treasury of traditional Wisdom" não deixa a menor dúvida quanto a isso. Mas a unidade de uma doutrina metafísica é apenas a unidade de um conhecimento humano; não se trata ainda de intervenção divina no curso da história, e muito menos de intervenção divina no curso da vida das pessoas. Muito menos se trata de intervenções que modificam a própria ordem física do ambiente para além do que as pessoas podem compreender, pois as pessoas que são beneficiadas por milagres não têm ao mesmo tempo o milagre e a experiência da luz divina para explicá-lo.

A sucessão das intervenções divinas faria com que víssemos a história de uma maneira completamente diversa e entendêssemos por que Jesus Cristo disse: "Todos os que vieram antes de mim são ladrões". É uma frase arrepiante! Ele está dizendo que todas as tradições são baseadas no erro e na mentira, embora seu fundamento último seja a luz divina -- pois a experiência da luz divina é uma coisa, e a maneira como você a interpreta é outra completamente diferente. A experiência certamente vem do Espírito Santo, mas quem garante que você continua sendo inspirado pelo Espírito Santo nas conclusões que tira daí, nas mitologias, nos símbolos e nos ritos que você cria a partir daí? O que se observa nesse caso é aquela mistura de luz e trevas que caracteriza exatamente o demoníaco, pois o demônio não é treva completa. (A treva completa seria a paz definitiva e seria Deus novamente -- como já dizia São João da Cruz, é "a noite escura da alma", que não tem nada de demoníaco. É a mistura de luz e trevas que caracteriza o mundo do demoníaco.) Aí chegaríamos a uma conclusão exatamente inversa à do universalismo do Nicholas Hagger; veríamos que aquilo de que a Rússia precisa não é apenas tornar-se "mais cristã", mas voltar à Igreja de Roma -- foi o que Nossa Senhora disse.

Tudo isso não tive ocasião de explicar no debate, talvez mais tarde seja possível inserir uma coisa ou outra nele.

Remontando ainda mais para trás, minha presunção nunca foi a de criar uma teoria cíclica da História, nem uma explicação do sentido da História. Santo Agostinho diz que só a História da Cidade de Deus faz sentido; a outra não faz, é um aglomerado de fatos caóticos, sangrentos, absurdos etc. Mas desse aglomerado existem algumas partes que se destacam e se conectam com a história divina, e aí começam a fazer sentido. A teoria do Nicholas Hagger confirma isso de algum modo na medida em que ele diz que os pontos de junção da história humana são a experiência da transcendência -- essa é uma tese que já estava defendida no livro do Glenn Hugues, chamado "Transcendence and History", um livro bem menor, uma obra-prima. A minha presunção no começo era apenas compreender o que é o processo da ação humana, como seres humanos agem uns sobre os outros.

Essa questão me apareceu, também, por causa do estudo que fiz da Retórica, que é uma modalidade de ação. O principal meio de ação dos seres humanos uns sobre os outros é a fala. Se pensarmos bem, a ação física é mínima. Se compararmos, por exemplo, todas as ações físicas que acontecem durante uma guerra -- deslocamento de tropas, matanças etc. --, tudo isso remonta a um grupo de discursos que foi feito no começo, ou seja, aquilo é a transposição dos discursos dos chefes numa ação física, mas o fator decisivo são os discursos dos chefes. Uma guerra não pode ocorrer sem que haja um grupo de discursos que coloque as pessoas no caminho daquelas ações. Perguntei-me então por que as pessoas aceitam certas ordens, discursos e sugestões; de onde vem esse poder que as pessoas têm de levar os outros a fazer o que elas querem. Vi que faltava uma fenomenologia da ação, que pode ser definida como uma transformação deliberada de um estado de coisas: as coisas estão de uma certa maneira e você quer que elas fiquem de outra. A ação obviamente pressupõe continuidade: se você pára a ação no meio, ela não chega ao seu resultado. A continuidade da ação exige a continuidade da existência do sujeito da ação. Se o sujeito está construindo uma casa e morre, a construção evidentemente pára. Outro pode continuar ou desistir.

Se existem processos históricos de longo prazo -- e evidentemente existem --, das três, uma: ou essa continuidade da ação histórica se fez por si mesma como uma mistura de ações diversas que coincidentemente deram aquele resultado, ou então essa continuidade é puramente metafórica e criada a posteriori por um historiador, ou existem agentes que duram por tempo suficiente para levar a ação ao seu resultado até para além da duração dos seus agentes individuais. [00:50] Concluí que não é possível nenhuma ação histórica se não é possível reproduzir agentes individuais que continuarão com o mesmo plano exatamente nas linhas traçadas antes. Isso me parece suficientemente óbvio, sendo espantoso que os historiadores profissionais, sobretudo os sociólogos, não tenham levado isso jamais em conta. Se uma geração não prepara a geração seguinte, então a continuidade acaba. Mas para preparar não é suficiente educar o sujeito; é preciso comprometê-lo e garantir que ele continuará com aquilo.

Quais são os instrumentos que existem para assegurar a continuidade da ação? Quem tem esses instrumentos? E foi daí que eu tirei a conclusão de que só existem aqueles cinco tipos de agentes históricos, que são: as grandes religiões, as sociedades iniciáticas e secretas, os movimentos revolucionários, as dinastias nobiliárquicas familiares e similares e os agentes espirituais -- Deus, anjos e demônios. Não tem mais ninguém. Isso significa claramente que um Estado não é jamais o sujeito de uma ação histórica; ele é o terreno dentro do qual se dá uma ação histórica. Ele às vezes é o objeto em disputa na ação histórica, mas não é o sujeito. Isso significa que todo livro de história onde se lêem frases do tipo: "A Inglaterra fez isso e a Rússia respondeu daquela maneira, "a Alemanha fez tal coisa", tudo isso está construído na base da metonímia, que consiste em chamar de sujeito o instrumento da ação, e vice-versa. Não se está designando a ação por seu verdadeiro sujeito, mas por um instrumento do qual ele se serviu.

Os Estados e governos são instrumentos de ação dos verdadeiros agentes históricos, cuja duração transcende às vezes infinitamente a duração desses mesmos Estados. Toda a ciência da geopolítica e todas as análises políticas usuais estão todas baseadas em figuras de linguagem e por isso mesmo constituem um véu em cima dos acontecimentos. Por outro lado, é certo que esses agentes de longuíssima duração às vezes se tornam invisíveis pelo fato mesmo dessa duração. A ação que estão desempenhando é tão lenta e de tão longo prazo que ela se torna invisível aos observadores a cada momento, a não ser que eles tenham recuo suficiente para observar numa escala de tempo muito maior. O exemplo que dei no próprio debate ilustra isso: a Igreja Ortodoxa, que está inspirando hoje os planos do professor Duguin. Depois de ela ter sobrevivido aos sessenta anos de comunismo, de ter durado durante todo o Império de Moscou e, antes, o Império de Kiev, ela é a mesma, não mudou uma linha de seus dogmas, não mudou uma linha do ensino que transmite às gerações seguintes e não mudou em nada seus instrumentos de comprometimento dos agentes individuais -- o treinamento que o indivíduo recebe, a disciplina, os rituais, os juramentos etc. Tudo isso tem um efeito enorme sobre a cabeça dos indivíduos. No processo de transformar um cidadão comum num sacerdote, ele se transforma numa outra pessoa; ele é, por assim dizer, esvaziado de suas conexões emocionais com o mundo, com a família, e preenchido por outra coisa completamente diferente, assegurando a continuidade da ação.

Do mesmo modo, as sociedades exotéricas, ocultistas etc., têm ritos, juramentos e ameaças de morte -- vários meios de controlar a ação de cada um de seus membros em cada momento das suas vidas. Essas entidades são verdadeiros agentes históricos, e no meio delas aparecem as famosas dinastias nobiliárquicas, cuja duração é imensa. Se esses reis da Inglaterra continuam de certo modo no poder nos Estados Unidos através de seus descendentes (depois de uma independência formal obtida através de uma guerra), isso é o mesmo que dizer que a independência foi, de certo modo, "para constar", mas a Inglaterra e os Estados Unidos continuam no fundo sendo a mesma coisa. Quando se lê depois os depoimentos de Carroll Quigley a respeito do "Anglo-american Establishment", isso demonstra que o poder dinástico ultrapassa de muito as fronteiras nacionais -- isso é de sua própria natureza, através de casamentos com outras dinastias de outros países. Sempre foi assim. Na 1ª Guerra Mundial, o Kaiser alemão era sobrinho-neto da rainha Vitória, e foi preciso muito esforço e muita intriga para criar a guerra entre os dois, não foi fácil. Do mesmo modo, o Kaiser tinha parentes na família real da Rússia. Essas famílias duram muito, mais do que as nações, mais do que os partidos políticos, mais do que as situações. Elas conservam o seu poder e o ampliam ao longo do tempo -- o que quer dizer que houve uma ação deliberada que foi prosseguida ao longo dos tempos.

Outro exemplo são os Rotschilds. As pessoas têm uma idéia de que eles são uma família que existe na França e na Inglaterra, mas não têm idéia de quantos Rotschilds descendentes existem aqui com outros nomes. Os dois Roosevelts, Theodore e Franklin, eram descendentes do Rotschilds.

Isso significa que a totalidade do que conhecemos como estudos de história, ainda quando diz a verdade, não está se atendo aos fatores que são verdadeiramente decisivos no conjunto. Muitas das mutações que parecem cíclicas, ou que parecem causadas por forças históricas impessoais e anônimas -- como classes sociais, lutas de classe, leis dos três Estados etc. -- não o são, mas são ações de indivíduos humanos -- não sozinhos, evidentemente, pois o ser humano sozinho não pode nada, mas através desses imensos instrumentos que são as religiões tradicionais, as sociedades ocultistas exotéricas etc.

Não sei se alguns de vocês já tiveram em mãos a apostila "Ser e Poder", mas minha teoria do sujeito da história é a continuação natural do exame que fiz da natureza da ação, de sua estrutura e dos meios de ação. Essa continuidade, talvez para um público de fora, não seja significante; mas, para vocês, lendo as apostilas e continuando a assistir às aulas, isso ficará bastante claro com o tempo. [01:00]

Aluno: Miguel Reale, no prefácio à primeira edição da "Filosofia do Direito", afirma que um dos propósitos que firmou em sua vida foi o de "teorizar a vida e viver a teoria na unidade indissolúvel do pensamento e da ação". O sentido dessa afirmação de Reale não coincide com a definição que o senhor dá da Filosofia? Em outras palavras: ao firmar esse propósito, Miguel Reale nada mais fez do que decidir que queria ser um filósofo?

Olavo: De certa maneira, sim, mas não esqueçamos que ele está nesse texto literalmente firmando o propósito de unificar a teoria e a ação, ou seja, viver na ação conforme a teoria, e modular a teoria conforme a ação. Não é disso que estou falando; a minha definição da filosofia é a unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Ou seja, não é algo que tem de ser adotado como um programa -- a filosofia é isso, e não outra coisa. Obtive essa definição observando o que os filósofos realmente faziam ao longo do tempo. Portanto, isso não é de maneira alguma um programa de ação, mas uma definição científica do que a filosofia historicamente tem sido. É claro que, de certo modo, isso implica, até certo ponto, a adoção de um programa de vida, como o do Reale, mas não confundamos a definição de filosofia com um programa de vida.

Aluno: O que é realmente o capitalismo?

Olavo: De modo geral, a palavra capitalismo deve ser usada no sentido mais amplo de "livre comércio". Como livre comércio, o capitalismo é uma coisa que sempre existiu -- não é um regime que alguém tenha inventado, mas algo que sempre existiu em toda parte (mesmo dentro do regime comunista, continuou existindo). Historicamente se reserva o nome de capitalismo a dois fenômenos que se recortam dentro do fenômeno maior do livre comércio: o primeiro é o momento em que a forma de propriedade decisiva deixa de ser a propriedade da terra e passa a ser a propriedade financeira, que começa a pesar mais que a propriedade da terra. Isso ocorre por volta dos séculos XV e XVI, é um processo longo. Mais modernamente se cria retroativamente o capitalismo como ideologia.

A criação do capitalismo como ideologia, ou seja, a auto-justificação do livre comércio como sendo a base da sociedade, já responde a sua segunda pergunta [por que o capitalismo é visto como o grande mal da sociedade?]. Ele passa a ser visto como o grande mal da sociedade no momento mesmo em que ele se afirma como ideologia, pois a definição do capitalismo como livre comércio é suficientemente autoexplicativa, mas isso não é uma forma geral da sociedade. O livre comércio existe em todos os tipos de sociedades e regimes possíveis. Quando o livre comércio se torna ele próprio o pilar fundamental da sociedade, ele cria antagonismos no mesmo instante, pois é o livre comércio entre quem e quem? Por exemplo: pode-se fazer o livre comércio com um bandido que tem uma arma apontada na sua cabeça? Aí não existe livre comércio. O livre comércio é algo que exige um conjunto de condições sociais, morais, culturais etc., que o próprio livre comércio não pode criar por si. Os países onde o livre comércio prosperou realmente foram países onde se tinha uma moral religiosa muito forte, sendo possível contar de certo modo com a idoneidade das pessoas e onde havia o ambiente necessário para aquilo que o Alain Peyrefitte chamou "a sociedade de confiança". No instante em que essa base moral se torna secundária e o livre comércio como tal é adotado como modelo da sociedade, está criado o antagonismo na mesma hora. Uma sociedade deve conter o livre comércio, mas não é possível baseá-la no livre comércio.

Todos os seres humanos precisam respirar, mas não se pode fazer da respiração o mecanismo fundamental da saúde ao ponto de preterir a alimentação, o repouso etc. O capitalismo em si é uma abstração, só existe como doutrina abstrata, não existe na realidade. Na realidade o que existe é o livre comércio praticado em diferentes sociedades, com diferentes bases morais e fatalmente só dando certo e prosperando onde se tem uma base moral suficiente para isso. Quando John Adams disse que a constituição americana só servia para um povo moral e religioso, ele tinha toda razão. A base da sociedade não era o livre comércio, pois ele era um elemento entre outros. A partir do momento em que começa a surgir a teorização do capitalismo considerado independente de suas bases culturais, morais etc., automaticamente isso cria um antagonismo, pois, quando se propõe o impossível, o antagonismo surge na mesma hora. Os teóricos do capitalismo que fazem a defesa desse regime econômico como sendo a base, o pilar e o centro da sociedade, estão radicalmente enganados. Eles amam tanto o capitalismo, que a apologia que fazem dele o destrói.

Nos Estados Unidos, à medida que se enfraqueceu a cultura religiosa nas últimas quatro ou cinco décadas, o capitalismo se substituiu por um regime de fraudes que mais parece o regime da União Soviética: propina para tudo quanto é lado. Tamar Frankel, em seu livro, mostra que as fraudes se tornaram epidêmicas nos Estados Unidos, algo que até nos anos cinquenta e sessenta seria absolutamente inimaginável. Quando que um tipo como George Soros conseguiria prosperar no antigo capitalismo americano? Nunca. Até um bandido como John D. Rockfeller foi obrigado a se autodisciplinar e a virar um sujeito bonzinho, espalhar benefícios por toda a sociedade. A atividade de livre comércio era pautada pela moral, pois não é o livre comércio que cria a moral. Esperar que uma moral nasça do livre comércio, como os teóricos liberais esperaram, é loucura completa. Um sistema econômico qualquer que seja não pode ser a base da sociedade. O sistema econômico é por natureza a geração de meios, não pode ser a geração dos fins.

Quando o capitalismo cresce e prospera a tal ponto que algumas pessoas começam a tomá-lo como se fosse uma entidade em si, uma coisa independente da base histórica e cultural, o antagonismo se forma no mesmo momento, pois o antagonismo é gerado por uma proposta impossível. E notem bem: a proposta socialista também é impossível. Se vocês lerem a análise que eu apresentei no debate, verão que o socialismo não existe e não pode existir. O capitalismo no sentido que os "liberais" propagam -- a sociedade de livre comércio e democracia representativa, fazendo abstração de outros valores morais, religiosos etc. -- é absolutamente impossível. Isso não dura um dia. Onde quer que se tente implantar isso, só aparecerá inimizade, rancor e muitos socialistas, na mesma hora. O socialismo -- a extinção do livre mercado -- também é impossível, por motivos econômicos que o Ludwig Von Mises já explicou em 1922. Então, o que vai haver? Vai haver um capitalismo socializante, que ficará sempre tendendo a um controle maior do Estado; ao mesmo tempo, o mercado continuará, por si mesmo, gerando novos recursos, que lhe dão uma força independente do Estado. É isso que está acontecendo na China, na Rússia, nos Estados Unidos e por toda parte. Isso só parará no instante onde as pessoas desistirem de definir a sociedade eminentemente por seu regime econômico. Tão logo se restaura o senso de moralidade, religião etc., volta o livre comércio à sua condição normal de sempre. [01:10]

Aluno: Na aula 43 o senhor comentou a respeito do desconhecimento em relação aos nossos antepassados, como é difícil saber alguma coisa de antes do bisavô ou tataravô. Tenho observado que essa experiência de estar envolto em trevas também ocorre em relação ao meio físico em que vivemos. Nasci e vivo em Curitiba há trinta anos. Contudo minha existência sempre me pareceu meio flutuante, sem pés arraigados no solo, algo parecido com um estar boiando em um bote num oceano desconhecido. Suspeito que não haja exclusividade curitibana nesse fenômeno; coisa igual deve ocorrer na maior parte do país. Suspeito que também no Brasil essa sensação de ignorância é ainda mais acentuada que em outros países. Sinto que os cenários das cidades brasileiras não ressoam na alma de ninguém, não trazem o conjunto de evocações comuns que faz com que todos se sintam remando no mesmo barco. Vejo que a totalidade dos habitantes urbanos ignora o passado. Olho com espanto as construções da cidade sem saber como aqueles negócios foram parar onde estão.

Olavo: Essa pergunta é fundamental para quem vive no Brasil. A arquitetura brasileira não existe. A arquitetura brasileira é o nome que você dá a duas ou três casas feitas por arquitetos geniais, como o Zanine, para dois ou três milionários -- isso é o que se chama "arquitetura brasileira". Não existe arquitetura popular brasileira, ela foi dissolvida -- sobretudo a partir dos anos cinqüenta, com a ascensão econômica que houve, com a indústria de automóveis etc., todos começaram a construir casas, e com as coisas mais estapafúrdias do mundo. Perderam a tradição da construção portuguesa que ainda se observava nas cidades do interior até àquela época, começaram a criar monstruosidades, deformidades, fazendo com que o ambiente perdesse todo o sentido de uniformidade estética e de estilo. Vocês vivem no meio do caos visual arquitetônico mais desorientador que se pode imaginar.

Quando eu me mudei para o Rio de Janeiro em 1990, fiquei muito contente, pois ali se tinha algumas marcas da história (o Forte de Copacabana, o lugar onde foi baleado Siqueira Campos). Tive uma verdadeira emoção com isso, pois era um restinho de sinal da história. Mas nas outras cidades não se tem mais nada disso, tudo desapareceu, e a arquitetura das cidades do interior é hoje horrível -- não só disforme, mas absolutamente incongruente, uma coisa não tem nada que ver com a outra, cada um constrói conforme seu arbítrio, cometendo crimes urbanísticos monstruosos. Pior: os ricos fazem a mesma coisa: chamam arquitetos malucos para construir coisas estapafúrdias sem olhar para a rua e pensar se aquilo combina com o resto.

A burrice brasileira é em grande parte causada por isso. Escrevi um artigo sobre isso vinte anos atrás, na revista Bravo. As pessoas são criadas dentro de um caos visual, e, se não se tem um mínimo de ordem estética no ambiente, é difícil se criar uma ordem lógica em cima do nada. Quando nos mudamos para os Estados Unidos, eu reparava a harmonia estética. Existem alguns estilos americanos cuja continuidade histórica aparece na sua cara. A casa onde moro obedece a uma certa linha de construção. Na frente tem uma velhinha que tem uma casa que pertence a um outro estilo, mas se vêem casas de quatro ou cinco estilos. A evolução desde as primeiras cabanas de pioneiros até a casa atual é visível com os olhos da cara. Não só aqui, na Romênia, no Museu das Aldeias, foram em cada aldeia e pegaram uma cabaninha típica da aldeia e reconstruíram no museu. Vendo os vários estilos locais, vê-se a harmonia, como se fosse um diálogo entre várias regiões: as mesmas marcas, adornos aparecendo sob formas diferentes, as mesmas técnicas usadas, e percebe-se a unidade da cultura romena com os olhos da cara -- como se vê a unidade da cultura americana aqui.

Faz muita diferença ser criado num ambiente assim, em que se sabe de onde as coisas surgiram e onde o passado está presente sob formas atuais. No Brasil foi tudo apagado. Na hora em que se apagam as marcas físicas do passado, não adianta construir monumentos, pois o passado não pode aparecer só em grandes obras públicas, mas tem de aparecer no formato da casa onde cada pessoa mora, tem de ser em alguma coisa que está na vida do povo mesmo. Essa tradição arquitetônica é tão óbvia que todos os países a conservam -- só no Brasil foi tudo destruído. Então se nos perguntarmos o que a arquitetura de Brasília tem a ver com a tradição arquitetônica portuguesa? Nada. Brasília foi a invenção que um tarado comunista tirou da cabeça de outro tarado comunista suíço para construir aquela besteira, aquela bobagem. Agora, se acompanhamos a arquitetura do Rio de Janeiro, vemos que, até uma certa época, houve uma continuidade, as marcas ainda estão lá, soterradas sob bobagens que se construíram nas últimas décadas (como, por exemplo, a catedral do Rio de Janeiro. O formato da catedral do Rio de Janeiro é para mim como aqueles cones de defumador -- um dia vai chegar uma gigantesca macumbeira velha e vai acender aquilo.) A catedral de Brasília é um cacho de bananas virado para baixo (quem é que não sabe que essa foi a inspiração do cara? Pegue um cacho de bananas, vire de cabeça para baixo e verão que é a catedral de Brasília). São formas arbitrárias deformadas que expressam a mentalidade deformada.

Foi escrito um livro aqui nos Estados Unidos sobre a nova arquitetura sacra americana, que se chama "Feio como o pecado". Só que aqui essas deformidades aparecem num lugar ou noutro. As igrejas daqui, em geral, obedecem a um estilo que é atual, mas mostra a marca de sua história, de onde ele veio. Quando se perde isso, perde-se a consciência histórica, e as pessoas ficam exatamente como você diz: "soltas no ar" -- não sabem quem são os antepassados, e, sem marcas da história, não sabem onde estão. Isso é uma coisa criminosa. O que foi feito na arquitetura e urbanismo brasileiro é um crime. E quer saber quem fez grandes crimes? O regime militar. Pois a engenharia militar é feita desse modo: você faz uma ponte hoje e sabe que ela será dinamitada amanhã. Não se pensa, portanto, no lado estético, faz-se qualquer porcaria, a fim de fazer atravessar os tanques rapidinho antes que venha a bomba. Então os arquitetos começaram a usar princípios de engenharia militar para fazer pontes, viadutos etc. Eles fizeram coisas medonhas. O que fizeram em São Paulo na praça Roosevelt foi uma coisa imperdoável. A praça da Sé era um local simétrico, com coerência, forma e história. Alguns edifícios da praça da Sé se tornaram históricos, o edifício Santa Helena, onde havia os estúdios dos grandes pintores paulistas, Fúlvio Pelnac e outro grupo de estudos chamado "grupo Santa Helena". Derrubaram o prédio Santa Helena, estenderam a praça para o lado, quebrando a simetria completamente, botando um chafariz medonho. O sujeito que fez aquilo devia ser afogado no chafariz. Não sei quem o fez, mas foi feito no tempo em que os milicos nos governaram. Eles não tinham o menor senso estético e de urbanismo. Tudo era feito "Nas Coxas Produções Limitadas". Foi tudo feito por essa empresa.

O efeito disso na mente das pessoas é devastador. É preciso tampar os olhos para a paisagem urbana brasileira. Pode-se ir para um lugar onde só se tem mato, onde ninguém meteu a mão, onde não há nenhuma administração pública para mexer lá, ou então é possível sair, viajar pelo mundo e ver o que são as cidades da Europa e as dos Estados Unidos, Washington ou qualquer cidadezinha do interior. Para mim, mudar para cá tem sido uma cura estética, uma cura para meus olhos. Inclusive porque me recordo que, no céu do Brasil, só se vêem urubus voando. Aqui tem águias. Isso faz uma diferença enorme! Mas se você olha para baixo, as cidades brasileiras também estão cheias de urubus.

Transcrição: Emanuel Franchetti

Revisão: Antonia Javiera Cabrera Muñoz

Revisão final: Marcela Andrade

Footnotes

  1. N.R: nota do revisor.

  2. "O que é um milagre": http://www.voegelinview.com/what-is-a-miracle.html (texto em inglês) [N.R.]